Compreender, imaginar, conjecturar
Fui deportada para o campo de concentração Ravensbrück, na Alemanha, em 1943, com todos os meus manuscritos. Somente então reformulei minhas classificações “humanistas” e aprendi sobre o crime e os criminosos, sobre o sofrimento e aqueles que sofrem, sobre a covardia, o medo, a fome, o pânico e a raiva
Em 1934, eu não tinha nenhuma experiência e estava consciente disso. Para decifrar os novos fatos que observava, seria necessário, antes, coletar uma profusão de dados. Afinal, para compreender é preciso primeiro aprender –, e, se possível, de forma ordenada. Os sociólogos e os historiadores enfrentam o mesmo problema: dispõem de fatos, ou seja, de efeitos; porém, o que importa são as causas. Quando se trata de escolher ou inventar causas para efeitos coletados durante um longo tempo, é preciso fazer uma triagem, guiada pelas experiências adquiridas no processo.
Eu aprenderia mais tarde que a única experiência válida é a que sentimos em nossos próprios nervos. Desde aquela mais banal que um ser humano conhece ou pensa conhecer – a fome –até a mais sofisticada – os conflitos agudos nos quais uma personalidade se afirma ou se destrói –, nada, absolutamente nada se inventa. Compreender, imaginar, conjecturar é associar modalidades inesgotavelmente diversas de sensações adquiridas com a experiência, e somente com a experiência. A mecânica de nossa erudição é similar às notas de uma partitura musical e nossa experiência é a gama sonora sem a qual a partitura estaria morta.
Podemos acessar o conhecimento apenas na condição de seres humanos, razão pela qual é impossível listar aqueles que não se relacionam a esse inventário primeiro, que encontramos apenas em nós mesmos. Se não nos conhecemos, nunca poderemos conhecer o outro. E eu ousaria dizer que nos conhecemos apenas praticando. A prática de conhecer a si mesmo remonta ao nosso nascimento, e é por essa razão que a experiência pode parecer, a alguns seres especiais, intuição.
Após 14 meses de encarceramento, fui deportada para o campo de concentração Ravensbrück, na Alemanha, numa terça-feira, dia 19 de outubro de 1943, com todos os meus manuscritos. Foi então, e somente então, que reformulei minhas classificações “humanistas” e aprendi sobre o crime e os criminosos, sobre o sofrimento e aqueles que sofrem, sobre a covardia e os covardes, sobre o medo, a fome, o pânico, a raiva – elementos sem os quais não temos a chave do humano, pois existem em estado latente em qualquer sociedade, mas que não identificamos até o momento em que observamos longamente o bicho adulto, em sua forma completa.
As derrotas prováveis
Relatar detalhes dessa experiência representa para mim um desafio que, só de pensar, me sucumbe. Mas não posso negligenciá-la, omiti-la nem admitir que haja dois tipos de derrota – a dos outros e a nossa –, dois tipos de humilhação, de alienação, de tortura – aquela que nos é submetida e aquela que nos infligimos –, dois tipos de rancor – aquele que nos ressente e aquele que nos inspira.
É certo que senti instintivamente os pudores em torno dos ritos da comida em países onde a fome é crônica. Podia naturalmente percebê-los, mas não pude compreendê-los até o momento em que, na alvorada fria, vi vultos frágeis se virarem todos, num movimento único, para não cruzar o olhar com outro vulto que – bruscamente isolado dos demais – roía algo na escuridão. Quando o silêncio tornou-se total, o único som que se escutava era o barulho forte dos dentes raspando em alguma coisa e o da garganta se contraindo para engolir aquilo.
Nesse período, acumulei uma série de conhecimentos que afirmo terem aperfeiçoado meu aprendizado científico numa proporção no mínimo equivalente à dos muitos anos dedicados aos estudos propriamente ditos. Para mim, portanto, os relatórios “científicos” – ou seja, baseados nas observações de outros – são falsos e artificiais: para conhecer uma população é preciso “vivê-la” e observá-la. É por isso que os que vivem devem aprender a observar – e aqueles que observam devem aprender a viver.
Em 1946, uma época de extrema fraqueza e degradação, após meu cativeiro na Alemanha, um instituto internacional solicitou um artigo com os resultados das pesquisas científicas que eu havia realizado na Argélia entre 1934 e 1940. Meus três principais manuscritos tinham desaparecido e minha documentação era muito minuciosa para que eu pudesse reconstituí-la como relatório. Comecei a folhear algumas fichas e rascunhos que escaparam do desastre – que datavam exclusivamente da primeira série de missões –, e não pude evitar compará-los, mentalmente, ao material coletado no fim da segunda estadia.
Eu não conseguia, naquele momento, discernir nada além das lacunas do material – na verdade, migalhas de documentos encontrados em meio à desordem da minha casa, devastada e vazia. No entanto, me sentia moralmente endividada frente aos serviços científicos que me haviam confiado e, para sanar essa dívida, iniciei a reconstituição do inventário das obras que eu tinha acabado de perder.
Ao mesmo tempo, estava obcecada pela preocupação com o “bem público”: o sentimento de uma utilidade objetiva poderia me fazer reagir contra o esgotamento físico contínuo e a falta de vontade de viver. Ora, além da justificativa puramente formal de apresentar os resultados, para que serviria, na prática, esse inventário?
Com o intuito de dar à experiência adquirida uma chance de servir a alguma coisa, comecei a escrever um manual e decidi intitulá-lo Métodos de pesquisa social em país berbere, a fim de deixar clara a direção prática que pretendia dar ao trabalho. Como se portar quando chegamos diretamente de Paris no meio de tribos africanas com o objetivo de estudá-las?
Ambicionava realizar um trabalho sério, competente e seco – “científico”, em uma palavra –, apresentando os problemas materiais e intelectuais que se colocaram no meu caminho, as soluções que escolhi e as retificações feitas posteriormente. Contudo, para encontrar essas memórias da África de apenas cinco anos antes, era preciso descartar a carga atribulada de outro passado próximo. Assim que a muralha desse outro passado caiu, brotou um manancial de lembranças límpidas, torrenciais, irresistíveis…
Durante alguns dias, esse passado ressurgido se interpôs como uma tela no irrespirável presente. Sob o abrigo dessa tela, retomei o fôlego. Mas assim que cheguei na última fase da pesquisa, outra vez os filmes se misturaram: de um lado, o fio da observação científica se pretendendo objetivo; de outro, o conhecimento vivido e candente dos seres e das situações.
Para se conhecer bem
Por conformismo escolástico, por desejo de satisfazer as pessoas às quais destinava meu texto, me esforcei para lutar contra essas interferências – sem, no entanto, estar convicta da necessidade de descartá-las totalmente. Parecia-me (e me parece cada vez mais) que, para discorrer sob
re as ciências humanas, a erudição pura não seria suficiente, e que uma experiência vivida, profunda e diversa constituiria o substrato indispensável do conhecimento autêntico de nossa espécie: basta viver para se convencer de que os eventos vividos são a chave para entender os eventos observados… Alguns espíritos atormentados e raros podem, às vezes, compreender de súbito a experiência dos outros, mas a maior parte dos homens não conhece e não compreende o outro se não for por meio da aprendizagem pessoal e minuciosa. A recíproca é verdadeira: para se conhecer bem é necessário aprender a considerar sua própria experiência com olhos estrangeiros. Graves erros poderiam ser evitados se pudéssemos ampliar um pouco esse sistema de dupla referência.
Em resumo, assim que terminei de escrever a última página de minha exposição, percebi, não sem um pouco de preocupação, que ela estava de acordo com o que eu queria ter feito – transmitir aos outros uma forma de se aprender um ofício –, mas não ao que me fora pedido: um artigo para uma revista científica internacional. Após suprimir algumas passagens que me pareciam pouco científicas e muito pessoais, coloquei uma cópia no correio e o resto do manuscrito em uma gaveta, onde permaneceu.
Quando decidi levar adiante a empreitada de confrontar essas duas visões de um mesmo passado, meu objetivo era reconstituir um aprendizado dentro das ciências ditas humanas. Busquei esse aprendizado, primeiramente, numa série de eventos observados e, em seguida, naqueles vividos – os primeiros, tratados com atenção constante e distanciamento escrupuloso; os segundos, vividos com paixão e sem comedimento.
Observar uma civilização, e nos observar enquanto observamos, são coisas bem distintas. Entre 1934 e 1940, eu não refletia sobre nada além do que via objetivamente e sobre qual a melhor forma de descrever tudo aquilo, mas, alguns anos mais tarde, fui levada a dar essa volta para dentro de mim – algo que todos os sociólogos devem fazer um dia –, sem a qual não há observação de fato. O que é a Sociologia? O que é a Etnologia? Trata-se, em primeiro lugar, de colocar em questão algo que é consagrado e, só depois disso, observar o funcionamento de uma civilização e identificar aquilo que nela resistirá ao tempo – distinguir quais as plantas que apenas se inclinarão daquelas que terão suas raízes arrancadas com a passagem da corrente da vida.
Quando buscamos as transições entre o “pensamento selvagem” (como nos descreveu Claude Lévi-Strauss) e o “pensamento moderno”, constatamos que as ciências ditas exatas e as ciências ditas humanas evoluíram em sentidos exatamente opostos.
O homem selvagem acreditava que “participava” do universo, que tal astro, tal animal, tal orientação, tal dia da semana não eram estranhos à sua vida, ao seu ser, a ponto de hesitar quanto a se diferenciar com precisão em relação a eles – notemos que o homem selvagem ainda é massivamente representado, em nossos dias, nas capitais, pelos inúmeros leitores de horóscopo. Por outro lado, esse mesmo homem (sem qualquer certeza sobre suas fronteiras com relação a Marte) afirma, sem hesitação, que tem uma essência diferente de todos os seres que não necessariamente fazem parte de seu domínio.
Hoje, os físicos, químicos e astrônomos se distinguem, sem hesitação, de seus objetos de pesquisa, e são os humanistas que “participam”: digamos que, nas ciências exatas, quando um pesquisador observa um fenômeno no microscópio, diferenciam-se o olho que observa, o instrumento utilizado e o objeto que se estuda. Nas ciências humanas, ao contrário, o observador, a lente de aumento e o micróbio que se
agita na placa de vidro não estão separados, a não ser por barreiras muito tênues, e a “experiência” (em geral apaixonada) enche de vapor o microscópio.
Essa solidariedade fundamental entre o observador e o observado, e a lentidão de percebê-la, explica porque as ciências humanas, muito mais do que as outras, conseguiram, a duras penas, obter um vocabulário preciso, emancipando-se de pesadas hipotecas do passado: hoje, pode-se falar longamente de Química ou de Astronomia sem saber nada sobre alquimistas e astrólogos; mas, antes de escrever a palavra etnólogo no subtítulo de um trabalho, é preciso prestar atenção e definir bem o que se entende pelo termo.
*Germaine Tillion, etnóloga e escritora, faleceu em 2008.