Contra Olavo
Mistura de fantasia política, reacionarismo e autocomiseração dá mostra das razões pelas quais Olavo conseguiu tanto sucesso na internet brasileira
As críticas à modernidade não são novas. Muito ao contrário, são contemporâneas dos próprios autores intelectuais e sociais do processo. Ao mesmo tempo, a biografia sobre o que é a modernidade se estenderia por páginas. Alguns situam no começo do século XIX; outros pensam que a colonização da América seria o verdadeiro marco. Sejamos tradicionais e marquemos o processo como o fazem os livros de História: a queda do último vestígio da Antiguidade, o Império Bizantino, nas mãos dos turco-otomanos, em meados do século XV.
Bizâncio surgiu da separação do Império romano em dois, o Império do Ocidente, com sede em Roma, e aquele do Oriente. De língua grega, graças aos bizantinos muitas obras da Antiguidade foram preservadas e, especialmente, as obras no original grego, visto que, dos autores antigos, boa parte havia chegado ao Ocidente medieval através de traduções do siríaco e do árabe. Curiosamente, o mesmo movimento histórico que levou ao fim do Império Bizantino, e sua concomitante islamização, não sem resistências, levou a uma verdadeira diáspora de intelectuais helenizados ao mundo ocidental, engrossando o caldo de um processo que então se desenrolava no outro lado da Europa, o Renascimento. Com o conhecimento desses sábios bizantinos, e, mais importante, com as obras que trouxeram na bagagem, especialmente para a Península Itálica, então dividida em vários pequenos Estados, os bizantinos foram fundamentais para reposicionar o conhecimento das obras antigas e da ciência dos gregos. Afinal, se há Renascimento, há o que renasça, e o que ressurgiu foi exatamente o conhecimento dos velhos gregos, apagados após as assim ditas invasões bárbaras, as quais desencadearam o fim do Império Romano do Ocidente.
No centro do processo estava a reação às condições de vida medievais as quais, a essa altura, já passavam por mudanças decisivas. O feudo, fechado sobre si, tinha se tornado pequeno para as ambições dos humanos. As divisões dos distintos países em pequenas propriedades e o domínio de uma aristocracia guerreira, de um lado, e da rígida hierarquia católica, de outro, dava sinais de esgotamento. A Europa se movia no sentido de questionar as duras condições impostas aos povos por uma situação social desfavorável. No campo das ciências, a teologia reinava absoluta, inspirada nos trabalhos de Alberto Magno e de Tomás de Aquino, os quais fizeram uma leitura incompleta e enviesada de Aristóteles, e o aclimataram com a doutrina católica.
Esse mundo de verdades reveladas estava a ponto de implodir. A revolução comercial, as constantes revoltas camponesas, a reforma protestante, a revolução científica e o surgimento de uma classe com meios para se impor, chamada de burguesia porque era citadina (vivia nos burgos), logo imporia uma mudança decisiva nos rumos do Velho Continente que terminaria por alterar o próprio destino do globo.
No campo do pensamento, um dos mais destacados estudiosos contemporâneos da filosofia renascentistas, Ernst Cassirer, considera o também germânico Nicolau de Cusa, eclesiástico de alto grau, como a figura mais bem acabada do pensamento do período. Cusa viveu no século XV e se destacou não só como filósofo, como também enquanto teólogo e político. Sua obra mais famosa, Da douta ignorância, lançou algumas das bases do pensamento posterior, do qual ainda hoje nos nutrimos. Por exemplo, Cusa recupera a noção da necessidade de matematizar a natureza, já desposada por pitagóricos e platônicos na Antiguidade. Mas Cusa vai além, muito além. Ele considera o universo indeterminado, guardando assim, com cuidado, o epíteto de infinito a deus.
Outras figuras relevantes do período são Lutero e Copérnico, no século XVI, iniciadores, respectivamente, da reforma protestante e da revolução científica, e Galileu Galilei, na charneira entre o período renascentista e aquilo que ficou conhecido como Iluminismo. Com este último, algo novo aconteceu: já não se tratava de recuperar os antigos, mas de interpretar a natureza; não mais se fiar em velhos tratados, mas olhar para o grande livro do mundo e, através de um instrumental matemático, interpretá-lo. Em outros termos, Galileu escrevia contra a tradição escolástica e o domínio que nela tinha a teologia enquanto rainha das ciências, enquanto topo do saber que, dessa forma, deveria regular as demais ramas do conhecimento, de modo que tudo aquilo que fosse contra as assim chamadas leis de deus, na verdade os dogmas religiosos, fosse descartado como herético. Com Galileu, um processo lento e, até o presente, inexorável de laicização da sociedade alcançava níveis incomparáveis desde os tempos antigos. É, o Iluminismo não como movimento intelectual do século XVIII, mas como processo histórico; trata-se da desmistificação do mundo, especialmente importante em um momento em que pessoas eram queimadas na fogueira por serem divergentes e a Europa vivia as guerras de religião, com trágicas consequências, especialmente para os protestantes continentais e judeus. Galileu não era, a rigor, materialista, mas estava tomado pela necessidade de saber, de descobrir a verdade do mundo, de inquirir, como em um tribunal, a natureza. Se Copérnico havia descoberto que a Terra gira em torno do sol, foi Galileu um dos mais destacados divulgadores de sua teoria e um arguto continuador.
Nos séculos seguintes, com a revolução industrial e as descobertas de Newton, as intuições de todos esses grandes homens seriam alargadas. O questionamento da autoridade extravasou o campo teórico e foi dar nas inúmeras revoltas contra o estado de coisas da Europa de então. Seu fruto mais maduro foi a Revolução Francesa, marco considerado pelos historiadores como indicando o fim da era moderna e início do mundo contemporâneo. Outro fruto dessas descobertas foi o Iluminismo, o qual preparou a dita Revolução e criticou acerbamente o Antigo regime, propondo coisas que hoje nos soam normais, como soberania popular, igualdade de todos, homens e mulheres, perante a lei, democracia, separação entre Estado e Igreja, liberdade de imprensa, de organização e de reunião etc. Um processo no qual ainda estamos inseridos e que deve ser alargado a fim de que realizemos as promessas, já distantes meio milênio, da modernidade.
Tudo isso não ocorreu sem resistências. As críticas à modernidade são contemporâneas da mesma. Para que tenhamos uma ideia, após a Reforma protestante, a Igreja Católica lança o movimento da Contrarreforma, destinado a minimizar o dano à unidade da fé cristã. Em vão, hoje sabemos, mas que na época levou à censura, ao controle do pensamento e a mortes, como a de Giordano Bruno, na fogueira, encarceramentos, como a de Campanella, outro filósofo do período, ou a humilhações, como a de Galileu, isso para ficar somente nos casos mais famosos. Milhares pereceram nas garras de uma Inquisição fortificada, especialmente nos países ibéricos, aonde nós, brasileiros, entramos na conta. Que ninguém se surpreenda que a crítica ao processo da modernidade tenha partido, pois, sobretudo dos defensores da monarquia e do dogmatismo religioso, muitas vezes pagos a peso de ouro para defender as tradições de um mundo que então se assomava como verdadeira jaula de aço às forças vivas da multidão.
Já a contestação da ordem feudal, dogmática e monárquica extravasou para as massas, e os ataques contra o movimento intelectual da modernidade se intensificaram. No seio da Revolução Francesa, cujo mote era liberdade, igualdade, fraternidade, surgiram teorias da conspiração que indicavam que o povo francês era manipulado pela maçonaria ou por Iluminattis, que tinham por objetivo a destruição da fé cristã. Fake news em estado bruto.
Para quem se aventurou pelas páginas de Olavo de Carvalho o exposto acima soa familiar. Com um linguajar conspiratório e um rascunho de teoria, Olavo defende coisas similares. Para ele, todos os governos do mundo são controlados pela maçonaria, talvez com a exceção dos países tradicionalistas. Por tradicionalista não se pense que estamos falando da bombacha dos gaúchos ou do cuscuz dos nordestinos. Trata-se de uma corrente filosófica cujas raízes remontam a uma figura obscura da cena francesa, René Guénon e mais ainda, para personagens como Blavatsky e outros membros de sociedades secretas e autodeclarados portadores de um saber oculto, iniciático. A história de Guénon é uma história de feroz luta pelo poder, tentativas de lutar contra a modernidade e a defesa de uma sociedade tradicional, nos moldes das sociedades islâmicas (teocráticas) e hindus (de castas) do período.

Para Guénon, como para seu seguidor Julius Evola, considerado radical demais mesmo pelos nazistas, o mal maior que afligia o mundo da primeira metade do século XX era a modernização acelerada que tomava todos os lugares. Os ideais da Revolução Francesa eram-lhes insuportáveis e, mais ainda, a separação entre Estado e Igreja se lhes assomava como um mal que deveria ser revertido a todo custo. A fim de efetuar esse programa literalmente reacionário, Guénon defendia a formação de uma elite, organizada em sociedades secretas, que, depois, se encarregaria de tomar nas mãos os destinos das diferentes sociedades. Para Guénon, o Ocidente seria engolido pelas sociedades tradicionais e ele se enxergava como um cavaleiro solitário a lutar contra esse destino.
Olavo, um guénonista, defendia coisas similares. Seus cursos de “filosofia’ e seu ataque constante aos bens culturais brasileiros e às universidades tinham como função preparar e formar uma elite que posteriormente deveria dirigir o país e expurgar o mal da modernidade de nossas entranhas. Isso significa que os elementos mais avançados da sociedade brasileira, como o reconhecimento da soberania popular, a liberdade de credo e culto, a igualdade legal de todos contra lei, a liberdade de imprensa e a abolição da monarquia, tudo isso deveria ser benefício em nome de um passado que, com muito custo, conseguimos deixar para trás, ainda que suas marcas permaneçam e vão permanecer por muito tempo na sociedade brasileira, a menos que ações concretas não sejam efetuadas. Para Olavo, por exemplo, o fato do Estado, ou seja, a comunidade política, estar acima das religiões na forma da lei civil, constitui um disparate que precisa ser revertido. A Verdade, com V maiúsculo, está em alguns teóricos de extrema direita, os quais seriam, injustamente, perseguidos pelo consórcio gayzista-abortista-comunista. A direita, pobre direita, só contaria com um único cavaleiro solitário, a única mente pensante do país, que combateria os males da modernidade em benefício da tradição: o próprio Olavo.
Essa mistura de fantasia política, reacionarismo e autocomiseração, que explica, segundo ele mesmo, por que Olavo não terminou seus estudos formais (foi perseguido pela esquerda), e a luta contra as conquistas civilizacionais, especialmente as advindas com a derrota do nazismo, dá mostra das razões pelas quais Olavo conseguiu tanto sucesso na internet brasileira. O Brasil é um país de modernização conservadora, uma democracia manca, um Estado que não está ou esteve muitas poucas vezes a serviço de seu povo. A modernização brasileira se fez de forma autoritária, especialmente em duas ditaduras, a de Vargas e a empresarial-militar de 1964. Porém, os traços arcaicos permaneceram os de uma sociedade sem democracia. No campo, uma reforma agrária incompleta. Nas cidades, especulação imobiliária e favelização. Na educação, conforme os pobres adentravam na escola pública, esta perdeu a qualidade. As polícias e o aparato armado do Estado existem para garantir a segurança da parcela mais rica da sociedade e estão especialmente voltados para matar e controlar pretos, pardos e indígenas. Torturadores e financiadores do golpe de 1964 gozaram de anistia. Criminosos do colarinho branco e mercadores do templo operam sobre as bênçãos do Estado. Enfim, uma modernização para àquilo que interessa às elites e aos poderes do mundo, elite esta que não se identifica com um povo muito preto, muito indígena, muito mestiço, digamos, muito brasileiro.
Como não resolveu os problemas do seu passado, como o maior problema do Brasil é exatamente seu passado, que redunda em um presente de trevas e em um futuro não muito auspicioso, deixadas as coisas como estão, os invocadores desses fantasmas não deixam de aparecer para lembrar, como assombração que são, que o Brasil precisa de um encontro com sua história, a fim de democratizar-se e dar ao mundo mais que samba e caipirinha: dar o exemplo de uma nação que se modernizou e se democratizou valorizando o que de mais precioso um país possui: seu povo.
Morto Olavo, que odiava tanto o Brasil que foi viver nos Estados Unidos, outros surgirão enquanto uma parcela da sociedade brasileira sentir-se à vontade em comemorar tortura, ditadura e desigualdade. Afinal, quem mantém esqueletos no armário, pede para ser assombrado. Por isso é necessário que os crimes do período Bolsonaro sejam punidos, que uma espécie de Comissão da Verdade dos crimes da pandemia e da recém-descoberta tentativa de genocídio dos ianomâmis, que os financiadores de fake news sejam apurados e enquadrados na lei; e, mais importante, que a sociedade brasileira seja educada no sentido de valorizar suas conquistas civilizacionais. Tarefa hercúlea, mas factível. Só assim conseguiremos enterrar Olavo de vez e dar-lhe o que merece: o olvido.