Contrastes do destino belga
Na Bélgica, a extrema-direita tem tradição. Mas sua implantação e êxito eleitoral variam de uma região para outra. Por que os eleitores de La Louvière expulsaram, no ano 2000, os seis neofascistas que, seis anos antes, haviam sido eleitos vereadores?Sergio Carrozzo
Céu fechado e fachadas cinzentas, carcaças amarronzadas de fábricas desativadas e entulho de escória invadido pela vegetação, tudo se ergue como uma testemunha atual, petrificada e silenciosa, de um passado industrial glorioso: situada a mais ou menos cinqüenta quilômetros a sudoeste de Bruxelas, La Louvière se parece, sem dúvida, com todas as cidades atingidas pela desindustrialização. No entanto, recuperou o colorido – apesar de uma sombra de preocupação ainda subsistir no rosto de seus moradores. E com razão: depois das eleições municipais de 2001, a Câmara Municipal já não tem nenhum vereador de extrema-direita, embora tenha tido que agüentar, com a morte na alma, seis deles durante seis anos, depois da eleição de 1994.
Na época, o trauma foi horrível. “Ninguém imaginava a amplitude do mal. Um vereador, vá lá. Mas seis! E hoje a ferida continua doendo. Entendo como um voto de vingança. Uma forma de dizer ao partido: ?Vocês não fizeram nada por nós diante das profundas transformações induzidas pela globalização, então punimos vocês?”, conta Claudine Cornet1 , militante socialista por tradição familiar, mas também por convicção pessoal. Ainda amarga, acrescenta: “Avaliamos muito mal a iminência da ameaça, iludindo-nos a respeito do poder democrático das pessoas.”
Explicações insuficientes
Situada a mais ou menos cinqüenta quilômetros de Bruxelas, La Louvière se parece, sem dúvida, com todas as cidades atingidas pela desindustrialização
É necessário voltar um pouco atrás. Inexistente em termos eleitorais na Valônia em 1988, a extrema-direita teve um grande sucesso na eleição municipal de 1994. A Frente Nacional obteve 5% dos votos em Liège, 7% em Mons, 10,5% em Charleroi. E 14,4% em La Louvière! Apesar desses resultados impressionantes, os partidários da “nova ordem” quase desapareceram do tabuleiro político uma legislatura mais tarde, colocando apenas um ou outro eleito – mesmo que a soma dos votos da Frente Nacional e do Bloco Valão tenha chegado a quase 4%2 .
Milagre? É preciso analisar. No dia seguinte à eleição municipal de outubro de 2001, os principais tenores dos partidos políticos tradicionais não hesitaram em se atribuir todos os méritos por essa volta à tranqüilidade democrática, invocando, entre outras, as vantagens de uma campanha eleitoral baseada no contato direto com a população. Explicação insuficiente. A menos que seja uma forma de não questionar demais as verdadeiras causas da brutal irrupção da extrema-direita nas principais cidades da região valona.
A classe operária vai ao inferno
“Havia um contexto geral propício ao êxito das teses dos extremistas: imigração, falta de segurança, desarticulação social. La Louvière não escapou à atmosfera de depressão”, lembra Cornet. O governo federal da época, formado por socialistas e democrata-cristãos francófonos e flamengos, tem, aliás, uma enorme responsabilidade pelo crescimento da extrema-direita, o qual, indiretamente, foi alimentado pela aplicação de uma lógica orçamentária implacável que aumentou as desigualdades sociais. Por outro lado, esse clima de austeridade se tornou mais pesado com os escândalos político-financeiros que respingaram em ministros, dirigentes partidários e políticos locais, sobretudo socialistas. O que acabou por deslegitimar uma classe política vista, por boa parte da população, como parasitária e ineficaz3 .
Em La Louvière, que tem cerca de 76 mil habitantes, a classe operária compreendeu bem demais que não iria ao paraíso – e sim ao inferno, para dizer melhor. “Entre 1960 e 1990, a região perdeu quase 60 mil postos de trabalho. Todos os principais setores econômicos submergiram: as minas, a siderurgia etc. Viram-se as filas dos sem-emprego crescerem de forma exponencial”, enfatiza Cornet. “A indústria metalúrgica Boël, instalada à entrada da cidade por ela alimentada, sofreu uma sangria. Enquanto, há vinte anos, empregava 3.700 pessoas, hoje, tendo passado para as mãos de estrangeiros, emprega apenas 1.250 trabalhadores”, esclarece Vincent Fretto, ex-presidente do Conselho Municipal Consultivo dos imigrantes.
O avanço dos neofascistas
Inexistente até 1988, a extrema-direita teve um grande sucesso na eleição municipal de 1994. A Frente Nacional obteve 14,4% dos votos em La Louvière!
Em tais condições, não causa nenhuma surpresa ver desenvolver-se, na década de 80, o fenômeno dos “negreiros da construção” que iriam infestar esse canto do país conhecido como “região do centro”. Ninguém – nem mesmo os grandes empresários, os dirigentes políticos, a polícia, os sindicatos – ignorava o que eles faziam. “Apesar de tudo, davam emprego. Com a crise, que atingia praticamente uma de cada duas famílias, as pessoas não reclamavam”, murmura um observador. E pouco importa se essa “máfia” deixa em seu rastro, como num filme de Francesco Rosi, um ou outro cadáver de cúmplices tagarelas demais ou gulosos demais. Tais derrapagens, como o assassinato de um jornalista – que não investigava essas práticas mafiosas – iriam provocar a reação das instituições.
Foi, portanto, num contexto sócio-econômico sombrio que a “cité des loups” (ou cidade dos lobos, como é conhecida La Louvière) e a Bélgica votaram nas eleições municipais de 1994, as quais iriam confirmar o avanço das organizações neofascistas: nas legislativas de 1991, a FN obtivera mais de 30 mil votos na Valônia. Esse resultado – como o de toda a extrema-direita no norte e no sul do reino – deixaram indiferentes os dirigentes governamentais, que preferiram entendê-lo apenas um acidente de percurso. A realidade eleitoral comprovou que esse diagnóstico foi um tanto apressado. Nas eleições européias de junho de 1994, a Frente Nacional duplicou seu resultado em relação a 1989: obteve cerca de 175 mil votos, ou seja, 6,5%4 . Essa progressão deveria ter soado ainda mais como um alerta à medida que não correspondia nem à implantação nem ao ativismo da extrema-direita na Valônia, e menos ainda em La Louvière, onde a FN não tem sequer uma representação local.
A política do “não”
Escândalos e aumento das desigualdades sociais acabaram deslegitimando uma classe política vista, por parte da população, como parasitária e ineficaz
Nessa terra de imigração, um acontecimento iria funcionar como catalisador do descontentamento latente da população: a possível abertura de um centro de abrigo para refugiados. Essa possibilidade provocou protestos. Se alguns cidadãos expressaram pacificamente sua hostilidade a respeito, outros cometeram atos de vandalismo contra o prédio destinado a receber os que “escolheram” o exílio: na realidade, um cancro urbano sempre à espera de restauração, porque a Cruz Vermelha renunciaria a seu projeto de implantação. “A possibilidade de que o projeto se concretizasse pôs lenha na fogueira, sem dúvida. As pessoas que estavam perdidas, e que não encontravam resposta para seus problemas junto às autoridades, não compreenderam por que teriam que dividir sua miséria com outros mais perdidos que eles. A extrema-direita capitalizou esse medo, inclusive nos bairros chiques da cidade. As eleições estavam muito próximas”, comenta Claudine Cornet.
Uma análise que Fretto não partilha inteiramente: “Penso que todo mundo, inclusive dentro do município que, no entanto, é majoritariamente socialista, estava contra esse centro para refugiados. Mas não houve informações claras sobre o assunto, assim como não havia sobre política de imigração ou direito de voto aos estrangeiros. Eu acrescentaria a política do ?não? praticada pelo município em relação a muitas propostas surgidas de associações com o objetivo de aumentar a participação dos cidadãos na gestão de sua cidade”. Nas circunstâncias, o Partido Socialista local surgiu ultrapassado e gasto por mais de quarenta anos de poder ininterrupto5 E nem a esquerda comunista, nem os grupos ecologistas constituíam uma “câmara de descompressão” para a parcela mais desorientada do eleitorado.
Recuperar o respeito do cidadão
Foi num contexto sócio-econômico sombrio que a Bélgica votou nas eleições de 1994, as quais confirmariam o avanço das organizações neofascistas
Num marasmo desses, bastou a FN apresentar candidatos para fazer o maior sucesso. Sem saber que, muito depressa, ele iria acabar sufocado pelo torniquete democrático criado pela sociedade civil de La Louvière a partir do dia seguinte à eleição. “Imediatamente, redigimos uma Declaração da Cidadania em que dizíamos que não podia haver nenhuma dúvida: nem colaboração nem familiaridade com os vereadores da extrema-direita por ocasião das sessões da Câmara Municipal, criação de um cordão de isolamento em volta deles. A isso se acrescentou um trabalho de campo permanente. Fez-se um porta-a-porta para ouvir a população, dialogar, mostrar-lhe que existiam outras soluções que não a extrema-direita”, esclarece Marie-Louise Oruba, presidente da Liga dos Direitos Humanos de La Louvière. E prossegue: “Foi preciso restabelecer o contato entre a população e o poder político que vivia como que num circuito fechado, surdo às reclamações que subiam das ruas”.
Essa constatação foi confirmada pela pesquisa que se realizou na seqüência das eleições do outono de 1994. Esta concluiu que “a hipótese mais interessante é a de um ressentimento popular […] manifestado por eleitores que utilizaram o escrutínio como um instrumento de protesto no interior de um sistema de representação política dominado por uma classe de personalidades; […] a pesquisa remete a uma imagem negativa da classe política, a uma alteração da confiança que esta inspira6 “.
A mensagem, apesar de violenta, dessa vez seria ouvida. Cornet fala de um questionamento total da gestão do município: “O que, no momento de preparar a lista do PS para as eleições de 2000, levou à exclusão de todos os que não haviam compreendido, ou não quiseram compreender, que era necessário recuperar o respeito dos cidadãos, inclusive dos que haviam votado na extrema-direita. Na associação La Louvière Cidadania, organizamos atividades nos bairros, desenvolvemos planos de luta contra a exclusão social etc.”
Um mal endêmico dissimulado
O sucesso da extrema-direita seria sufocado pelo torniquete democrático criado pela sociedade civil de La Louvière a partir do dia seguinte à eleição
Esse trabalho de formiga iria mostrar-se compensador também graças ou por causa da indigência política e intelectual da meia dúzia de eleitos de extrema direita. “Muito pouco organizados politicamente, nunca apresentaram nenhuma proposta. Dividiram-se e ridicularizaram-se aos olhos de todos. Felizmente, não aproveitaram a tribuna que a Câmara Municipal representava para derramar seu ódio”, alegra-se Claudine Cornet.
Quando chegam as eleições de outubro de 2000, a conjuntura parecia melhor. O turbilhão de indignação provocado pela questão Dutroux7 permitiu que muitas pessoas manifestassem seu mal-estar. As legislativas de junho de 1999 e a formação de uma equipe governamental inédita, sem os democrata-cristãos, mas com os ecologistas, liberais e socialistas8 , devolveram a esperança, sem contar o direito de voto aprovado para os que pertencem à esfera da União Européia9 e mudanças ocorridas na direção do PS local, que escolheu para comandá-lo Willy Taminiaux, ex-ministro e dotado de um carisma indubitável.
Contudo, há problemas graves que permanecem. Nessa “cité des loups” que viu nascerem, entre outros, o dramaturgo Jean Louvet e o jogador de futebol Enzo Scifo, perto de 40% dos indivíduos com menos de 25 anos não têm trabalho10 . É evidente que as “forças vivas” tentam de todos os modos reativar a economia. Zonas de atividades desenvolvem-se aqui e ali e remendam um tecido industrial que continua profundamente dilacerado. Seria importante, portanto, não cantar vitória cedo demais. Sobretudo porque a “peste marrom” não é um flagelo dos céus. É, sim, um mal endêmico dissimulado que exige uma vigilância e um engajamento permanentes.
(Trad.: Iraci D. Poleti)
1 – Membro do grupo de escrita e reflexão “Encrage” e co-autora de Soigne ta gauche, Edições Labor, Bruxelas, 1992.
2 – Ler, de Manu Abramowicz, La bête rouge encore, ed. Avancées, Bruxelas, novembro de 2000.
3 – Ler, de Sergio Carrozzo, “Discrédit politique en Belgique”, Le Monde diplomatique, maio de 1995.
4 – L?extrême droite en Europe et en Belgique. État des lieux et stratégies, Cepess, Bruxelas, 21 de fevereiro de 2000. Os números são ainda mais importantes se forem somados aqueles obtidos por outras organizações extremistas que apresentaram candidatos.
5 – De um total de 41 vereadores na Câmara Municipal, o Partido Socialista elegeu 29.
6 – Enquête sur la citoyenneté, Município de La Louvière, Richard Lorent, novembro de 1995.
7 – Ler, de Jean-Marie Chauvier, “En Belgique, l? ?année blanche? vire au gris”, Le Monde diplomatique, outubro de 1997.
8 – Ler, de Serge Govaert, “Un paysage politique éclaté”, Le Mo