Controvérsia sobre o populismo de esquerda
A crise sanitária reabriu a caça aos “populistas”. Como suas caricaturas – Donald Trump e Jair Bolsonaro –, eles desprezariam a ciência, a separação de poderes, a complexidade, o estado de direito. Defensor de uma democracia tranquila, consensual, Pierre Rosanvallon retoma certas críticas, arbitrárias, do populismo. Chantal Mouffe, teórica dessa corrente, responde a ele
Em sua recente obra, Le siècle du populisme,1 Pierre Rosanvallon se surpreende com o fato de que, ao contrário de outras ideologias da modernidade, como o liberalismo, o comunismo e o anarquismo, o populismo não está associado a nenhuma obra de envergadura. No entanto, segundo ele, trata-se de uma proposição política dotada de uma coerência e de uma força positiva, mas que não foi formalizada nem desenvolvida. Em seu livro, Rosanvallon se propõe a definir a doutrina populista e a criticá-la.
Ele construiu essa doutrina de maneira arbitrária, com base em elementos provenientes de fontes muito heterogêneas e retomando os clichês já apresentados na maior parte das críticas feitas ao populismo. Sua definição não acrescenta nada à tese, retomada por um grande número de autores, segundo a qual o populismo consiste em opor um “povo íntegro” a uma “elite corrompida” e a conceber a política como a expressão imediata da “vontade geral” do povo.2 Com algumas variações, essa visão se encontra em Le siècle du populisme.
Quando ele se refere a autores que defendem outra posição, ele o faz deturpando as ideias desses autores para conformá-las à tese que defende. Vários trabalhos meus são, assim, tão caricaturados que seria o caso de perguntar se esse historiador, apesar de reputado, os leu ou se dá prova de uma má-fé metodologicamente duvidosa. Ele afirma, por exemplo, que eu rejeito a democracia liberal representativa, enquanto minha obra Pour un populisme de gauche salienta a importância de inscrever essa estratégia no quadro da democracia pluralista e de não renunciar aos princípios do liberalismo político. Ao contrário do que pretende Rosanvallon, sustento em Le paradoxe démocratique3 que a democracia liberal resulta da articulação de duas lógicas, em última instância incompatíveis, mas que, quando a tensão entre a igualdade e a liberdade se manifesta de modo “agonístico”, sob a forma de uma luta entre adversários, garante a existência do pluralismo. Da mesma maneira, segundo ele, eu defenderia a unanimidade como horizonte regulador da expressão democrática, embora o tema da divisão social e da impossibilidade de um consenso inclusivo se encontre no centro de minhas reflexões.
No entanto, se essa obra, que visa elaborar a teoria do populismo, não contribui para uma melhor compreensão do fenômeno, isso se deve, antes de tudo, à vaidade de sua ambição: o populismo não existe enquanto entidade da qual seria possível elaborar a teoria ou produzir o conceito. O que existe são simplesmente diversos populismos, o que, aliás, explica por que a noção dá margem a tantas interpretações e definições contraditórias.
Mais do que procurar definir os princípios do populismo, é preciso analisar a lógica política posta em prática pelos diferentes movimentos chamados de “populistas”. Seguindo esse caminho, Ernesto Laclau mostra em La raison populiste4 que se trata de uma estratégia de construção da fronteira política, estabelecida com base em uma oposição entre as camadas inferiores e as superiores, entre os dominantes e os dominados. Os movimentos que adotam essa estratégia surgem sempre no contexto de uma crise do modelo hegemônico. Visto dessa maneira, o populismo não aparece nem como uma ideologia, nem como um regime, nem como um conteúdo programático específico. Tudo depende da maneira como se constrói a oposição nós/eles, assim como dos contextos históricos e das estruturas socioeconômicas nos quais ele se desenvolve. Apreender os diferentes populismos exige partir das conjunturas específicas de sua emergência em vez de, como faz Rosanvallon, reduzi-los a manifestações de uma mesma ideologia.
“República do centro”
Em vez de esclarecer seu objeto, Rosanvallon revela em seu estudo do populismo a natureza e os limites de sua própria concepção da democracia. A teoria democrática que estrutura a ideologia populista demanda, segundo ele, uma “forma-limite da democracia”, que consiste em condenar a natureza liberal e representativa das democracias existentes. E isso opondo-lhes uma alternativa baseada em três características: uma democracia direta, um projeto de democracia polarizada e uma concepção imediata e espontânea da expressão popular.
A essa suposta doutrina populista, o ex-secretário da Fundação Saint-Simon contrapõe sua própria concepção desenvolvida em suas obras anteriores. No plano filosófico, nelas se encontra uma versão sofisticada da doutrina dominante dos partidos social-democratas sob hegemonia neoliberal. Essa doutrina foi elaborada nos anos 1980 e 1990 pelos teóricos da “terceira via”, como Anthony Giddens no Reino Unido e Ulrich Beck na Alemanha, e sua tese é: entramos em uma “segunda modernidade”, em que o modelo antagônico da política se tornou obsoleto por falta de adversários sociais. As identidades coletivas, como as classes, perderam sua pertinência, e as categorias direita e esquerda perderam a validade. Subsistem diferenças de opinião potencialmente conflitantes, mas que se reduzem e se apaziguam reconciliando a diversidade de demandas individuais. Consequentemente, uma “política da vida”, ligada às preocupações ambientais e familiares e às identidades pessoais e culturais, seria acompanhada, segundo Giddens, da “política de emancipação”.5
A adoção de uma concepção como essa pelos partidos social-democratas esteve na origem do social-liberalismo que domina a Europa ocidental desde o fim dos anos 1980. Na França, esse projeto de uma “república de centro” encontrou seus mais fervorosos adeptos em torno de Pierre Rosanvallon e de intelectuais do Centro de Estudos Sociológicos e Políticos Raymon Aron, da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais (Ehess).6 Essa corrente privilegia a dimensão liberal da democracia e enfatiza a defesa dos aspectos constitucionais em detrimento da participação do povo. Essa predominância do liberalismo sobre a soberania popular leva a um impasse na divisão social, nas relações de poder e nas formas de luta antagônicas relacionadas à noção de luta de classes.
Esse tipo de visão “pós-política”, centrada na ausência de alternativa à globalização neoliberal, longe de construir um progresso para a democracia, designa ao sistema político a tarefa de “governar o vazio”, como mostrou Peter Mair.7 Em 2005, eu sustentava que a ausência de luta entre projetos de sociedade opostos priva as eleições de seu sentido e fornece um terreno favorável ao desenvolvimento de partidos populistas de direita8 que podem, assim, querer restituir ao povo o poder confiscado pelo establishment. Quinze anos depois, o panorama político europeu confirma essa hipótese.
Rosanvallon não se dá conta de que o modelo consensual de uma política sem fronteiras está na origem da escalada extraordinária do populismo. Para ele, a única forma de interrompê-la é a elaboração de uma alternativa forte, uma “segunda revolução democrática”, que implica repensar tanto a atividade quanto as instituições democráticas. Ele formula então uma série de proposições, que não deixam de ser interessantes, visando diversificar e multiplicar as instituições democráticas e ampliar o alcance da atividade cidadã. À “democracia de autorização”, que pelas eleições entrega o poder de governar, deveria, por exemplo, se acrescentar uma “democracia de exercício”, que submete o exercício do poder a critérios democráticos. Mas, como essas proposições participam da concepção pós-política, ignoram os antagonismos que estruturam a sociedade e não colocam em questão o modelo neoliberal, é difícil ver como a “segunda revolução democrática” contribuiria para fazer as forças populistas recuarem.
Conceber o populismo como uma estratégia de construção da fronteira política torna compreensível o “momento populista”, o que a perspectiva de Rosanvallon não permite. Esses movimentos rejeitam o governo de especialistas e a redução da política a questões de ordem técnica. Eles se valem de uma visão sectária e apontam as falhas da abordagem consensual. Enfim, eles recusam a pós-política e exigem a possibilidade de os cidadãos participarem das decisões concernentes às questões públicas, e não só de controlar sua prática. Alguns experimentam suas reivindicações sob a forma de um populismo “de direita”, tipo “imunitário” e xenófobo, com o desejo de restringir a democracia a quem nasceu no país; outros o fazem sob a forma de um populismo “de esquerda”, visando estender a democracia a um grande número de áreas e a aprofundá-la.
Para atingir esse objetivo, a estratégia populista de esquerda propõe uma ruptura com a ordem neoliberal e com o capitalismo financeiro que, como mostrou o sociólogo Wolfgang Streeck,9 se revelam incompatíveis com a democracia. Ela visa estabelecer uma nova formação hegemônica capaz de assumir a centralidade dos valores de igualdade e justiça social. Um projeto como esse não implica a rejeição, mas, ao contrário, a reconquista das instituições constitutivas do pluralismo democrático. Para pôr em prática essa ruptura, a estratégia do populismo de esquerda pretende reunir as lutas democráticas de modo a criar uma vontade coletiva, um “nós” suscetível de transformar as relações de poder e instaurar um novo modelo econômico-social por meio do que Gramsci chamou de uma “guerra de posição”. O enfrentamento entre esse “nós”, que articula as diferentes demandas ligadas a condições de exploração, de dominação e de discriminação, e seu adversário, esse “eles”, constituído pelos poderes neoliberais e seus aliados, é a forma pela qual se expressa, hoje, o que a tradição marxista chama de “luta de classes”. Portanto, não é de espantar que Rosanvallon lhe seja hostil. Prisioneiro de seu modelo centrista, ele vê qualquer forma de populismo como uma ameaça à democracia.
Exaustão do modelo neoliberal
A estratégia populista de esquerda parece particularmente pertinente na perspectiva de uma saída da crise da Covid-19 que anteciparia a construção de um novo contrato social. Desta vez, ao contrário da crise de 2008, poderia se abrir um espaço de enfrentamento entre projetos opostos. Voltar-se pura e simplesmente para as questões atuais parece pouco possível e, provavelmente, o Estado desempenhará um papel crucial e, ao mesmo tempo, maior. Talvez a gente assista ao aparecimento de um “capitalismo estatizado” que utilize o poder público para reconstruir a economia e restaurar o poder do capital. Ele poderia assumir formas mais ou menos autoritárias de acordo com as forças políticas que o dirigirem. Esse cenário significaria ou a vitória das forças populistas de direita ou o último sobressalto dos defensores do neoliberalismo para garantir a sobrevivência de seu modelo. Todavia, uma estratégia populista de esquerda, visando construir uma vontade coletiva em torno de um “new deal verde”, pode também aproveitar essa crise para democratizar profundamente a ordem socioeconômica vigente e criar as condições de uma verdadeira transição ecológica.
Ao exacerbar as desigualdades, a crise do coronavírus confirma o esgotamento do modelo neoliberal. Ao recriar fronteiras políticas e confirmar a existência de antagonismos, ela assinala uma “volta do político” e dá uma nova dimensão ao momento populista. Conforme as forças sociais que se apropriarem dela e a maneira como elas construírem a oposição eles/nós, essa pandemia pode desencadear soluções autoritárias ou levar a uma radicalização dos valores democráticos. Uma coisa é certa: ao contrário do que afirma Pierre Rosanvallon, longe de ameaçar a democracia, o populismo de esquerda representa, hoje, a melhor estratégia para orientar num sentido igualitário as resistências à ordem pós-democrática neoliberal.
Chantal Mouffe é filósofa. Autora de Pour un populisme de gauche [Por um populismo de esquerda], Paris, Albin Michel, 2018.
1 Pierre Rosanvallon, Le Siècle du populisme: Histoire, théorie, critique [O século do populismo: história, teoria, crítica], Seuil, Paris, 2020.
2 Cf. Cas Mudde e Cristobal Rovira Kaltwasser, Brève introduction au populisme [Breve introdução ao populismo], Editions de l’Aube, La Tour-d’Aigues, 2018.
3 Chantal Mouffe, Le paradoxe démocratique [O paradoxo democrático], Beaux-Arts de Paris, Paris, 2016.
4 Ernesto Laclau, La Raison populiste [A razão populista], Seuil, 2008.
5 Anthony Giddens, Modernity and Self-Identity. Self and Society in the Late Modern Age [Modernidade e autoconsciência. Ego e sociedade no final da Idade Moderna], Polity Press, Cambridge, 1991.
6 François Furet, Pierre Rosanvallon e Jacques Julliard, La République du centre. La fin de l’exception française [A república do centro. O fim da exceção francesa], Calmann-Lévy, Paris, 1988.
7 Peter Mair, Ruling the Void. The Hollowing-out of Western Democracy [Governar o vazio. A escavação da democracia ocidental], Verso, Londres, 2013.
8 Chantal Mouffe, L’illusion du consensus [A ilusão do consenso], Albin Michel, Paris, 2016 (primeira publicação em inglês em 2005).
9 Wolfgang Streeck, Du temps acheté. La crise sans cesse ajournée du capitalisme démocratique [O tempo comprado. A crise ininterruptamente prorrogada do capitalismo democrático], Gallimard, Paris, 2014.