COP 29 e Artsakh: transição energética e a limpeza étnica esquecida
Neste momento em que grande atenção se concentra na COP 29 e em seu país sede, o Azerbaijão, é hora de superar a cegueira seletiva e pressionar os seus governantes para que respeitem o Direito Internacional e os Direitos humanos.
COP 29: transição energética
Durante o mês de novembro de 2024, o Azerbaijão irá sediar em sua capital Baku a Conferência sobre Mudanças Climáticas da ONU – a COP 29. O objetivo do encontro este ano é o cumprimento das metas já pactuadas e definir o financiamento da transição energética de maneira justa.
A COP 28, sediada pelos Emirados Árabes Unidos em 2023, realizou um primeiro “balanço global” sobre os esforços mundiais para enfrentar as alterações do clima. Verificou-se que o progresso foi excessivamente lento e chegou-se a um consenso de eliminar de forma progressiva os combustíveis fósseis da matriz energética e de triplicar a capacidade de energia renovável até 2030.
Para o Brasil, a COP 29 deve ser focada nas finanças. De acordo com a Ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, o objetivo é “que saiamos do Azerbaijão com uma ideia robusta de implementação, de resultado, e dos meios para isso. O Brasil quer apresentar Contribuições Nacionais Determinadas (NDCs) à altura do desafio que estamos atravessando com a mudança do clima”.
Apesar das propostas robustas, a COP 29 já se inicia sob severas críticas. A começar pela escolha da sede: o Azerbaijão. A economia do país é baseada em petróleo e gás, sendo difícil (até mesmo para os otimistas) acreditar em seu interesse genuíno pela transição energética.
A COP da “trégua” e limpeza étnica
A COP 29 promete, ainda, ser a Conferência da Trégua. Yalchin Rafiyev, Ministro das Relações Exteriores da República do Azerbaijão e negociador-chefe da COP29 afirmou em um evento em Bruxelas que a chama por uma trégua tem como objetivo “não apenas promover a paz, mas também porque as atividades militares pelo mundo são a fonte de 5% a 6% das emissões globais”.
À primeira vista, a proposta do Ministro Azerbaijano poderia até parecer arrojada. A promoção tem um duplo intuito: reforçar a necessidade de transição energética e trazer a paz ao conflito entre Israel e Gaza.
Na realidade, a retórica busca fazer um “peacewashing” da sua própria empreitada belicosa. Ao final de 2022 e meados de 2023, o Azerbaijão cercou por 9 meses a República de Artsakh e em seguida invadiu militarmente a área e deportando forçadamente 120 mil habitantes da região (majoritariamente composta por armênios étnicos).
Durante o deslocamento forçado, os principais líderes políticos da República de Artsakh foram detidos pelos Azerbaijanos, incluídos três ex-presidentes da República: Rayik Harutyunyan, Bako Sahakyan e Arkadi Ghukasyan. Também foram presos outros ex-funcionários, David Babayan, Levon Mnatsakanyan, Davit Ishkhanyan e Davit Manukyan. Ainda no grupo de líderes políticos o filantropo e ex-ministro de Estado, Ruben Vardanyan, também se encontra entre os custodiados.
Há fundadas suspeitas de que a expulsão da população armênia de Artsakh possa resultar, ainda, em crimes de genocídio ou crimes contra a humanidade e que deverão ser investigados e julgados por tribunais, nacionais ou internacionais. Enquanto os fatos não chegam às Cortes Internacionais, a mais aceita opinião é de que tenha ocorrido autêntica limpeza étnica de armênios na região de Artsakh.
Cegueira seletiva
Entre os casos do Oriente Médio e da região do Cáucaso, especificamente em Artsakh, destaca-se fatos trágicos e comuns em todos os conflitos armados: a imposição do sofrimento e do sacrifício de civis, seja pelo ataque direto, seja pela fome e sede, por meio da privação de medicamentoso dentre outras técnicas desenvolvidas como armas de guerra/dominação. No caso das mulheres, também de homens e até mesmo crianças, a violação sexual continua sendo instrumento de opressão comumente utilizado de modo previamente concebida e altamente eficaz nos processos de limpeza étnica e resultante em crime de guerra.
Em ambas as situações o grupo é segregado fisicamente e submetido a condições capazes de provocar sua destruição total ou parcial: seja pelo desabastecimento de alimentos e medicamentos, pelo colapso econômico ou pela interrupção do fornecimento de energia e calefação.
Na República de Artsakh, o governo Azerbaijano impediu a livre circulação de pessoas e mercadorias pela única estrada que ligava a região ao mundo: o Corredor de Lachin. Desrespeitando decisões da Corte Internacional de Justica e da Corte Europeia de Direitos Humanos o governo de Aliyev manteve a passagem bloqueada por mais de nove meses.
Neste sentido, recorde-se que, em 22 de fevereiro de 2023, a Corte Internacional de Justiça (CIJ) proferiu decisão sobre os pedidos de medidas provisórias apresentados pela República da Armênia e pela República do Azerbaijão nos casos envolvendo a aplicação da Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial.
Assim, a CIJ atendeu a um dos três pedidos apresentados pela Armênia, determinando que o Azerbaijão assegurasse a livre circulação de pessoas, veículos e mercadorias pelo Corredor de Lachin, acima citado, que liga a Armênia à região de Nagorno-Karabakh, além de rejeitar os pedidos feitos pelo Azerbaijão.
Quando a população já estava enfraquecida pela fome e pelo colapso econômico, o Azerbaijão invadiu militarmente a República e deportou seus cidadãos.
Ao contrário do ocorrido em conflitos em curso como no caso da guerra entre Rússia e Ucrânia ou entre Israel e o Hamas, pouco se noticiou sobre a limpeza étnica na República de Artsakh.
Embora o Direito Internacional e o Direito Internacional dos Direitos Humanos apregoem que todos os Estados e suas populações são iguais e têm no reconhecimento de seus direitos humanos universais uma garantia imprescritível, a prática insiste em demonstrar que alguns Estados são mais iguais que outros.
Neste momento em que grande atenção se concentra na COP 29 e em seu país sede, o Azerbaijão, é hora de superar a cegueira seletiva e pressionar os seus governantes para que respeitem o Direito Internacional e os Direitos humanos.
Entre a promessa de liderar a transição energética e promover a trégua em gaza, reforçamos aqui, a premente necessidade de o atual governo brasileiro incluir em sua agenda na COP 29 a demanda pela soltura dos presos políticos ilegalmente detidos em Baku (capital do Azerbaijão) e pelo pleito de indenização dos 120 mil deslocados forçados de Artsakh.
Precedentes perigosos: Artsakh, o massacre esquecido
Num momento em que o mundo enfrenta profunda instabilidade e no qual vem se rearmando como nunca, desde o final da Segunda Guerra Mundial, o Direito Internacional e a Diplomacia tendem a simbolizar alguma luz no fim do túnel, centelha de esperança especialmente para milhões de seres-humanos empobrecidos e martirizados pelos fuzis e bombas que despedaçam seus futuros.
O desrespeito ao Direito Internacional vem pavimentando, há algumas décadas, a via dolorosa que nos conduziu a um momento crucial na história humana, isto é, a conflitos que, se ampliados, podem marcar o início de uma terceira guerra mundial, fato que interromperia em grande medida o caminhar da civilização.
Fatos como a Guerra do Vietnã; a invasão soviética do Afeganistão; a invasão do Iraque pelos Estados Unidos da América sob a falsa justificativa de encontrar armas químicas; as guerras dos Balcãs ou a anexação da Criméia, sem dúvida, constituem trechos da mencionada via pavimentada rumo às guerras atuais e futuras.
Assim como insistimos em que a desconsideração ao genocídio do povo armênio cometido pelo Império Otomano (1915–1923) foi a antessala do Holocausto do povo judeu da Europa, uma vez mais encontramo-nos na contingência de alertar que à medida em que o mundo ignora de modo solene a limpeza étnica e os massacres cometidos contra a população armênia de Artsakh, está fertilizado o terreno para que futuras violações ainda mais amplas ocorram na região do Cáucaso, assim como em outras regiões do globo.
Premiar o Estado do Azerbaijão como sede da COP 29 implica na expressa concordância do mundo com os crimes praticados em Nargorno-Karabakh contra o povo armênio, fase preliminar para a concretização do sonho pan-túrquico de alguns Estados da região.
Afinal, não é suficiente que o passado seja narrado; relevante é que seja compreendido criticamente para que se possa propor um futuro seguro para todos os povos.
Nathalia Hovspeian é Mestre em Direitos Humanos pela PUC-SP. Especialista em Genocídios e Direitos Humanos pelo “International Institute for Genocide and Human Rights Studies” (Zoryan Institute) e Universidade de Toronto (Canadá).
Flávio de Leão Bastos Pereira é Pós-Doutorado em Direitos Humanos e Novas Tecnologias (Reggio Calabria, Italia). Doutor e Mestre em Direito Político e Econômico (Mackenzie). Professor convidado da Universidade Tecnológica de Nuremberg Georg Simon Ohm (2021-2024). Especialista em Genocídios e Direitos Humanos pelo “International Institute for Genocide and Human Rights Studies” (Zoryan Institute) e Universidade de Toronto (Canadá). Membro do Conselho Editorial do Journal of International Criminal Law.