Cortázar, o mágico
É sempre rico revisitar a obra de Cortázar. Mestre de uma escrita revolucionária e uma imaginação sem limites, e militante das causas libertárias, ele continua a revelar, 24 anos após sua morte, o mais íntimo da condição humana, com sua literatura esférica, complexa e crítica
Julio Cortázar teve sem dúvida uma das imaginações mais ricas e abundantes da literatura no século 20. O que, para ele, não excluía um comprometimento firme com as lutas anti-imperialistas. A recente publicação de sua obra completa em um volume [1] é, sem dúvida, uma grande oportunidade para redescobrir toda a complexidade desse escritor.
Em qualquer trecho de seus contos ou romances, o encantamento é imediato. Em Apocalipse de Solentiname, um homem viaja por diferentes países da América Central. Ele tira fotografias – especialmente fotos de pinturas naïfs e populares, que descobre fascinado. De volta a sua casa, em Paris, manda revelar e fazer cópias dos filmes e projeta seus slides. Nota, então, que as imagens das pinturas naïfs desapareceram e foram substituídas por cenas de
violência, de repressão policial – remetendo, talvez, à Argentina da ditadura militar, onde não colocou os pés durante a viagem. O laboratório fotográfico teria, por engano, trocado os rolos de filmes? Ou, na verdade, trata-se de um fenômeno muito mais misterioso – como se a própria violência da História o interpelasse e lhe impusesse,
de forma mágica, o espetáculo daquilo que ele não soube ou não quis ver? O homem é tomado por uma angústia, um mal-estar e vai vomitar no seu banheiro, enquanto sua mulher, que acaba de chegar, observa os slides. Quando volta para junto dela, esta lhe diz que acha magníficas essas fotos de pinturas populares.
Ou então, no conto A noite em face do céu, em que um homem, depois de sofrer um acidente, tem de passar por uma cirurgia. Ao ser anestesiado, sonha que é um índio dos tempos pré-colombianos, perseguido e capturado pelos astecas. Progressivamente, o sonho torna-se cada vez mais claro, até o momento em que as coisas se
invertem: a realidade é aquela cena de sacrifício humano – e é o homem, o índio, antes de ser morto, que é invadido por um estranho sonho situado no futuro, quando se encontra deitado em uma mesa de operação, enquanto um cirurgião agita um bisturi acima do seu corpo imobilizado.
Ou ainda, em O outro céu, uma galeria comercial de Buenos Aires detém a misteriosa propriedade de comunicar-se, por meio de uma passagem coberta, com a Paris do século 19. O narrador tem, assim, a possibilidade de ser transportado, de tempos em tempos, para o meio de uma pitoresca multidão há muito desaparecida – onde lhe apontam a presença de outro enigmático sul-americano, que acabamos por adivinhar tratar-se do uruguaio Lautréamont.
Sua obra é um lugar onde escapamos das aparências e causalidades lógicas comuns; onde o próprio mundo real assume sentido figurado e nele se inflitram elementos insólitos, incertos, ilógicos, inquietantes e oníricos
As histórias desse tipo não se esgotam. Por isso considero uma excelente iniciativa ter reunido, em um único volume, o essencial das “formas breves” escritas por esse mestre do gênero que era Cortázar: não somente os contos e novelas já reunidos em coletâneas quando o autor era vivo (em livros como As armas secretas, Final de jogo, Octaedro, Alguém que anda por aí, etc.), mas também as narrativas escritas como contraponto de obras pictóricas ou gráficas e inúmeros textos até o momento dispersos, por vezes inéditos em francês.
O resultado? Mil páginas de encantamento permanente. Um lugar onde escapamos do mundo das aparências, assim como das causalidades lógicas comuns. Onde é o próprio mundo real que assume um sentido figurado (desde os detalhes da vida cotidiana até os contextos históricos ou políticos) e nele se infiltram, imperceptivelmente, elementos insólitos, incertos, ilógicos, maravilhosos, inquietantes, oníricos. Uma recomposição incessante do espaço e do tempo, em que se abrem rachaduras naquilo que consideramos como o mais sólido de tudo, brechas que autorizam toda sorte de perturbações, de traduções imprevistas, de colisões, de transmutações.
Apesar do pré-julgamento escolar ou jornalístico, a vida de um autêntico escritor resulta daquilo que ele escreve. Cortázar e suas narrativas estão entrelaçados por circulações, por travessias, deixando entrever um homem perpetuamente entre dois espaços, dois continentes, que nunca pôde ser confinado a nenhuma nacionalidade. Nasceu em Bruxelas, em 1914, e, quatro anos depois, foi repatriado para a Argentina, berço de sua família. De imaginação precoce e formação em grande parte auto-didata, teve suas primeiras atividades literárias motivadas por um sentimento de asfixia na Argentina peronista, de onde se exilou deliberadamente em 1951, para Paris.
Na França, publicou os primeiros livros e fez múltiplas viagens, entre elas um encontro, durante os anos 1960, com aqueles que constituem a grande constelação romanesca latino-americana da segunda metade do século 20: Carlos Fuentes, Gabriel García Márquez, Mario Vargas Llosa e Lezama Lima. Geração essa da qual é um primogênito solidário. Conquistou uma reputação cada vez maior e se empenhou cada vez mais nas grandes causas da América Latina – apoio às lutas anti-imperialistas, aos combates às ditaduras militares etc. Um reconhecimento tão grande que uma das primeiras decisões tomadas por François Mitterand depois de eleito presidente foi a de conceder-lhe a nacionalidade francesa – ao mesmo tempo, aliás, que a concedia ao tcheco Milan Kundera. Cortázar morreria em 1984 por complicações decorrentes de uma doença bastante estranha, que não parava de fazê-lo crescer – esta é, pelo menos, a lenda.
É na arte do conto que Cortázar mostra-se mais singular. Ele queria “vencer o leitor por nocaute” e eliminar “todas as etapas intermediárias” das quais os romances longos não podem escapar
Entre os grandes romances de Cortázar, a citação de O jogo da amarelinha é essencial. Essa obra-prima barroca, abundante e verdadeiramente aberta, permite ao leitor escolher entre dois romances diferentes no interior do mesmo livro, apenas modificando a ordem dos capítulos. De seu texto urde toda uma rede de ecos e contrastes entre a Europa e a América Latina – entre a utopia que a América Latina
representava para a Europa e a utopia em que a Europa se transformou para a América Latina. Mas é na arte do conto, da narrativa breve, que Cortázar é mais singular. Uma arte que ele explicou muito bem durante uma conferência dada em Cuba, em 1963, ao dizer que é preciso, desde as primeiras linhas, captar a atenção do leitor introduzindo essa “ruptura do cotidiano” que “vai muito além do relato anedótico”; que o faz escapar desse “falso realismo que consiste em acreditar que todas as coisas podem ser descritas ou explicadas”. Essa tática implicaria uma tensão constante – o leitor, diz ele, deve ser vencido “por nocaute, não por pontos” -, um princípio de condensação máxima que exige “a eliminação de todas as situações intermediárias”, todas essas “frases de transição” às quais os romances longos não podem escapar. A narrativa deve lembrar, em suma, uma intensa fonte magnética suscetível de atrair “todo um sistema de relações conexas”.
Ora, o esforço de Cortázar, que se impõe com a leitura desses “contos”, é reunir em poucas páginas tudo aquilo que caracteriza e qualifica a arte dos “grandes” romances: a variação das vozes narrativas (em muitos casos), a multiplicidade dos pontos de vista, a exploração de territórios até então ignorados, a habilidade de sugerir espaços e tempos paralelos para além da realidade cotidiana, os deslizamentos progressivos de um universo a outro. Como se, para ele, os constrangimentos da narração breve, elíptica, longe de conter a imaginação, servissem apenas para lhe dar mais densidade. Daí esses mundos fabulosos, prodigiosos, nos quais o leitor é projetado imediatamente: onde um músico de jazz tem a faculdade, em alguns minutos, de “reviver” dias inteiros de sua vida, em todos os seus detalhes e, assim, às vezes, experimentar essa estranha dilatação do tempo em sua própria música; onde uma moça, simplesmente imaginada por crianças no decorrer de suas brincadeiras, acaba por se materializar aos olhos de um adulto, que se apaixona por ela; onde os relógios de sol da ilha de Páscoa avançam ou atrasam de acordo com o local da orla em que são colocados e onde alcachofras podem substituir os pêndulos – basta desfolhá-las para saber a hora.
Cortázar, seguindo Borges de modo muito mais fervilhante e exuberante, foi um dos maiores mestres do registro fantástico no século 20 e contribuiu para ampliá- lo muito além de seus usos convencionais. E, para ele, não havia nada de incompatível em se interessar pelo mundo real. Seus compromissos concretos são testemunhas disso: sua participação no Tribunal Russell [2]; sua adesão entusiasta à revolução cubana, pouco a pouco moderada pela consciência dos desvios autoritários do castrismo – daí seu protesto, por exemplo, contra o destino dado ao poeta Heberto Padilla, mas sem que isso o conduza, como inúmeros de seus amigos escritores, a condenar o regime em bloco; seu apoio ao poder de Salvador Allende, no Chile – e depois, após o golpe de Estado de Pinochet, sua efetiva participação no auxílio aos refugiados chilenos na Europa; sua luta aberta contra a ditadura militar na Argentina; sua alardeada solidariedade ao movimento sandinista na Nicarágua, alvo de uma ofensiva dos “contras” mantidos pela CIA. Em suma, uma contribuição generosa e constante a todos os combates anti-imperialistas, fundada sobre o “difícil e simples princípio segundo o qual a humanidade começará a merecer seu nome no
dia em que a exploração do homem pelo homem tiver cessado” [3].
Ora, isso não significava, em absoluto, que fosse necessário fazer concessões aos modelos constituídos da literatura militante. No auge de seu comprometimento, Cortázar não deixou de se opor inflexivelmente aos “critérios estreitos daqueles que confundem literatura e pedagogia”: “Acredito mais do que nunca que a luta pelo socialismo na América Latina deve enfrentar o horror cotidiano (?) guardando, de maneira preciosa e zelosa, aquela capacidade de viver que desejamos para esse futuro, com tudo aquilo que isso supõe de amor, de jogo e de alegria”.
A literatura não deveria estar “a serviço” de uma revolução: é, em si mesma, uma revolução positiva, um jogo maior, uma experiência dos limites repelidos sem fim, uma liberdade antecipada
Decididamente, para Cortázar a literatura tem seus direitos, sua complexidade, sua própria história. Ela deve ininterruptamente
se dedicar a investir e conquistar novos domínios (mesmo que imaginários) e não se contentar em ilustrar aquilo que já sabemos. Ela não deve estar “a serviço” de uma revolução: é, em si mesma, uma revolução positiva, um jogo maior, uma experiência dos limites repelidos sem fim, uma liberdade antecipada. E essa exigência, de acordo com ele, não se baseava no desprezo do povo, mas, pelo contrário, em uma confiança nele que nada partilha com aqueles que caem na “demagogia fácil de exigir uma literatura acessível a todo mundo”. “Não prestamos nenhum serviço ao povo se lhe propomos uma literatura que pode assimilar sem esforço”, dizia.
Em outras palavras, “escrever de modo revolucionário”, para Cortázar, não quer dizer “escrever obrigatoriamente sobre o tema da própria revolução”. Não há nada mais significativo do que seu relato mais político, Reunião: nele, realiza a proeza de imaginar o monólogo interior de Che Guevara quando desembarcou em Cuba, em companhia dos primeiros guerrilheiros castristas. Mas toma muito cuidado em evitar todo tom convencionalmente heróico ou épico – se permitindo até mesmo fugas surpreendentes em direção ao irracional. O Che, em seus devaneios, acaba por perceber que a História também funciona misteriosamente, com harmonias, dissonâncias, contrastes rítmicos e contrapontos, como um quarteto de cordas de Mozart.
Ao acompanhar Cortázar, o imaginário não é aquele que nos afasta da realidade, mas aquele que a inventa e a enriquece. É precisamente aí que ele pode unir-se à grande esperança “afirmativa” e “vital” do homem, “sua sede erótica e lúdica”, “sua exigência de uma dignidade partilhada sobre uma terra liberta do horizonte diário do trabalho opressivo e do dinheiro”.
*Guy Scarpetta é escritor e autor do romance La Guimard, Paris, Gallimard, 2008, entre outros.