Uma polêmica feroz opôs na França, recentemente, cineastas e críticos de cinema. Se temos o direito de nos indignar com certas passagens do texto redigido por cineastas anônimos [1], é preciso, entretanto, admitir que não se trata de uma banal querela entre pessoas. Na verdade, existe um verdadeiro problema. Há alguns anos, assistimos efetivamente uma real confusão de gêneros. Tanto os cineastas quanto os críticos confundem cada vez mais criação e publicidade. Perguntamos às vezes se certas cenas não foram rodadas unicamente para o triller promocional. Acontece também que uma ou outra frase do texto foi escrita com o único objetivo de ser utilizada na propaganda de lançamento do filme criticado. Isolada de seu contexto e às vezes sem o acordo do realizador, uma simples frase torna-se, assim, um slogan publicitário perfeito, utilizado sem escrúpulos — e sem gastos suplementares — por numerosos distribuidores ou agências de comunicação encarregadas da promoção das obras.
Se a crítica tem ainda um papel importante, especialmente para tornar conhecidas cinematografias pouco difundidas, é preciso reconhecer, em certas mídias, uma certa tendência à facilidade, às modas e ao parisianismo. Nesse sentido, existem também concessões diárias à indústria do divertimento. É evidente que a imprensa que adere às “leis do mercado” não é um fenômeno específico do cinema…
De acordo com certos jornalistas, os cineastas franceses, que se beneficiam de um complexo sistema de auto-proteção [2], seriam uns “privilegiados”. Também quando surgiram nos últimos anos, graças a este sistema, filmes que clamavam alto e forte a sua vontade de romper com aquilo que seria uma espécie de pensamento único cinematográfico próprio à FrançaCom seu estilo oportunista, Erick Zonca dá mostras de um real talento ao pregar cinicamente a renúncia ao combate cotidiano. Como Bruno Dumont, que acalenta a idéia de uma lei natural, Zonca pensa que os seres são predestinados. Idéias velhas na cabeça de cineastas modernos 7. Com sua carreira feita e cortejado pelas agências de comunicação, Erick Zonca esqueceu-se rapidamente dos proletários do norte para realizar uma série de anúncios publicitários, diagnosticando assim a morte do cinema., poucos foram os jornalistas lúcidos sobre a questão. Cada filme à sua maneira, mas sempre baseando-se numa estética realista, eles valorizaram um estilo com caráter. Nesses casos, a crítica, aproveitando-se de uma espécie de “efeito biombo” não soube ver a realidade de um discurso social e politicamente muito ambíguo.
Tomemos, por exemplo, Só contra todos (Seul contre tous) , o filme de Gaspar Noé (1998), elogiado pela crítica. Realizado graças aos recursos da emissora de televisão Canal Plus e da estilista Agnès B., este filme, como deixa entrever seu título, é bem amargo. Na zona suburbana de Lille um açougueiro [3] desempregado decide recomeçar sua vida do nada. Ele abandona sua amante grávida após dar-lhe uma surra de ponta-pés no ventre. Depois, com um revólver carregado com três balas, dirige-se à capital à procura de um trabalho. Uma voz em off acompanha as peregrinações deste homem cheio de ódio, de misoginia, de xenofobia e de racismo, isto é, formado numa filosofia de botequim, com suas fantasias de vingança, de crime e de incesto… Vejamos um extrato das litanias de uma parte da imprensa, que não hesitou em comparar o filme à prosa do escritor Céline: “Se você nasceu com um pau, é preciso que ele esteja sempre bem duro para ser usado em todos os buracos. Se não for assim, você nasceu para ser enrabado” .(sic)
Pequeno provocador influenciado pelos cinemas pornográficos, Gaspar Noé tem uma complacência fascistóide para com o sórdido e o abjeto. Um aviso, entretanto, oferece ao espectador uma última chance, convidando-o a abandonar a sala antes do final desolador… Após imaginar o estupro, em seguida o assassinato de sua própria filha num banho de sangue filmado com complascência, o açougueiro entrevê, finalmente, ao consumar uma relação incestuosa com a filha, a felicidade?
Ainda outro exemplo: Sombre, de Patrick Grandieux (1998). Os criminosos também podem amar, é a opinião do autor. Neste primeiro longa metragem, ele nos propõe acompanhar o itinerário macabro de Jean, violador e assassino de mulheres, até o encontro dele com uma moça virgem, evidentemente chamada Clara, a qual ele não estuprará, mas com quem terá uma relação sexual… sobre um leito de pedras. O filme hesita entre o autismo e a verborragia digna de um talk show televisivo para, no final de contas, acenar com a idéia de que um criminoso psicopata é um ser humano capaz de sentir e de provocar sentimentos. Isso ninguém nega. Aí reside a audácia do filme. O último plano é eloqüente. Ele faz um longo travelling sobre a prova de ciclismo Tour de France; em seguida, se detém nos espectadores que estão ao longo da pista numa etapa montanhosa da prova, para desembocar, no mesmo movimento, sobre…um rebanho de vacas! Devemos entender isso como um desprezo do realizador pelo público?
Outro exemplo: Assassinos (Assassins) , de Mathieu Kassovitz (1997). Após o êxito de Ódio (La haine) (1995), seu clipe caricatural sobre a zona suburbana, que na época seduziu as manchetes das mídias, este autor foi assediado pelos canais de televisão Arte e TF1, interessados em co-produzir seu novo filme, cujo roteiro, no entanto, era extremamente confuso.
Aprendizagem do crime por um jovem ingênuo ou lição sobre a falta de sentido da vida dada por um velho matador viciado em heroína. Trata-se da cínica apologia do pequeno comércio do crime numa sociedade onde os verdadeiros assassinos seriam os responsáveis políticos, os jornalistas, os publicitários e os comerciantes da comida contaminada. “Toda sociedade tem os crimes que merece”, afirma o slogan publicitário do filme. Mathieu Kassovitz desempenha o papel do jovem “nem bom, nem ruim, apenas influenciável”. Esta é talvez a sua única boa intuição. Engessado na sua trama muito teórica, o realizador mata seu personagem e delega a continuação do drama a um menino de origem — naturalmente — magrebina, alimentado pelos vídeos de crime vídeo e incapaz de distinguir a realidade da ficção.
Imagem-clichê do proletariado
Desepero, decadência, impasse, impotência e crime: estes mesmos ingredientes reencontramos em A vida de Jesus (La vie de Jésus) (1997), primeiro longa metragem de Bruno Dumont. Este antigo professor de filosofia se expressa como um marxista, em termos de classes sociais, e afirma não desejar filmar seu universo de origem — a burguesia católica — com medo de se entediar.
Do pedestal de seu estatuto de diretor de cinema, ele prefere dar aos burgueses, potenciais espectadores de seu filme austero, a imagem-clichê que eles têm do proletariado e dos pobres, contanto que não caia na caricatura duvidosa dos Deschiens [4]. Dumont coloca sua câmara, aparentemente de influência bressoniana, em Bailleul, “cidade morta do norte da França”. Como entomologista, ele observa e disseca os fatos e gestos cotidianos de Freddy, jovem epilético desempregado, e seus amigos vagabundos. O trabalho simplesmente não existe. Quanto a qualquer outra perspectiva, é inútil sonhar. Exite Marie, a namoradinha de Freddy, um débil raio de luz no pessimismo do filme. Porém, quando ele a encontra em seu quarto é para possuí-la como um animal, sem outro diálogo que aquele do sexo brutal, única maneira — é evidente — que têm as camadas populares de fazer o amor.
Bruno Dumont, católico, parece se esbaldar, realizar seus fantasmas e propõe alguns planos verdadeiramente pornográficos, cedendo assim à moda que há algum tempo, nos meios cinematográficos, glorifica este gênero na França. “Os benefícios desta crueza são imensos”, afirma Gerard Lefort , no jornal Libération [5].
Bruno Dumont também deseja perdoar o assassino. Freddy e seus amigos, após terem estuprado uma garota por a considerarem muito gorda, matam um jovem de origem magrebina que rondava Marie. “No fundo, você é realmente responsável?”, pergunta no final o policial encarregado do interrogatório de Freddy. O jovem criminoso escapa sem dificuldade da delegacia e se deita na grama para implorar ao céu. De acordo com o autor, que filma seu personagem de cima para baixo, “Jesus encarna a mais bela ascensão moral e espiritual que se possa encontrar. Comparada com esta, a de Freddy é miserável e ridículo”.
No seu filme seguinte, L’Humanité, Grande Prêmio do Juri do Festival de Cannes de 1999 e aplaudido pela imprensa, Bruno Dumont atiça os temores e a falta de esperança dos franceses. Após a apresentação do personagem principal, um policial amável chamado Pharaon e morador (ele também) de Bailleul, o filme se detém num longo plano sobre o sexo ensangüentado de uma garotinha violada. Dumont exibe esta imagem horrível para satisfação dos espectadores. Seu argumento? Ter fabricado seu exato contraponto quando coloca, mais adiante, um plano de “sexo vivo”. Mais uma vez , o olhar pornográfico é justificado pelo mesmo meio sórdido no qual se desenvolve a trama do filme. As jovens operárias, evidentemente, só pensam nisso.
Querendo sem dúvida justificar o título do filme, Bruno Dumont elimina todo o campo social. É assim que vemos o policial cuidar de seu jardim, interrogar um vendedor de drogas (obviamente outro magrebino), chorar abraçando a terra e também trabalhadores incapazes de levar adiante uma greve… “Trato de encontrar lugares algo podres, pátios de granjas não muito bonitos, porque sempre temo que o cenário tenha um sentido” [6], confessa este cineasta após rodar uns quarenta filmes institucionais com uma estética bem desleixada…
Em A vida sonhada dos anjos (La vie revée des anges) (1998), vemos outros cenários “um pouco sórdidos” — sempre no norte da França — e uma realidade social das mais negras, amplamente apreciados pela crítica. Este primeiro longa metragem de Erick Zonca traça o retrato de duas jovens contemporâneas: Marie, a loira, e Isa, a morena, preocupadas com sua própria sobrevivência numa sociedade em crise e que não oferece nenhuma saída, nenhuma perspectiva, nenhuma esperança.
Elas se encontram numa fábrica. A primeira é “revoltada contra a sua condição social”, afirma o realizador. A outra é cantora e se orienta por uma “filosofia de resignação”. Ela chega até mesmo a rezar para agradecer seu destino: o de morar gratuitamente num apartamento cujos proprietários sofreram um acidente automobilístico. Isa submete seu orgulho e aceita qualquer trabalho degradante. Marie tem mais dificuldade, debocha de sua amiga, se lança numa aventura amorosa destrutiva e acabará por suicidar-se. Moral da história: ao aceitar a servidão, Isa terá êxito… retornando à fábrica.
Com seu estilo oportunista, Erick Zonca dá mostras de um real talento ao pregar cinicamente a renúncia ao combate cotidiano. Como Bruno Dumont, que acalenta a idéia de uma lei natural, Zonca pensa que os seres são predestinados. Idéias velhas na cabeça de cineastas modernos [7]. Com sua carreira feita e cortejado pelas agências de comunicação, Erick Zonca esqueceu-se rapidamente dos proletários do norte para realizar uma série de anúncios publicitários, diagnosticando assim a morte do cinema.
Psicanálise de botequim
“Para o cineasta, não existe nada além da morte e do cu”, declara François Ozon [8], autor de Amantes criminais (Amants criminels) (1999), filme inspirado na crônica policial. Um novo crime racista, filmado num hilariante banho de sangue, serve de ponto de partida para um funesto conto de fadas.
Fugindo de seu ato, o jovem casal de assassinos é rapidamente seqüestrado, como João e Maria, por um ogro da floresta. Acorrentados, sem comida, trancados num porão cheio de ratos, estes pobres amantes são ameaçados pelo canibalismo do sequestrador. Aqui tudo é ainda sexual. François Ozon pretende ser o cineasta da transgressão. Após ter convocado Charles Laughton [9], os irmãos Grimm e Walt Disney, o realizador não vacila em recorrer a um psicanalista de almanaque. O ogro estupra o rapaz, revelando-lhe, assim, sua “homossexualidade recalcada”, causa de sua pulsão criminosa. Através de uma série de flash-backs de uma leveza paquidérmica, o espectador aprende que na origem do mal está a mulher sexualmente atraída pelo jovem descendente árabe que ela preferiu matar. Terrível manipuladora, ela será abatida como um cão (referência aqui à Bonnie and Clyde).
Um cheiro de enxofre precedeu o lançamento de Romance de Catherine Breillat (1999), também com sexualidade e morte no programa. A realizadora desejava rodar um filme de autor com características pornográficas. Para isso ela contratou uma ator de filme pornô, um verdadeiro profissional do gênero. É o único traço de sinceridade de um filme falsamente audacioso que, é claro, não contém um grama de romance, levando o espectador pelos meandros imundos de fantasmas lúbricos já gastos.
Uma jovem abandonada por seu amante, bela top model, parte em busca de emoções fortes. Após ter-se entregue sem reticência e sem prazer ao sado-masoquismo e ter sido estuprada, ela ficará grávida e feliz. Expulsa brutalmente do leito, ela saciará seus novos fantasmas de futura mãe visitando regularmente um hospital universitário, para fazer um exame de toque vaginal por estudantes imberbes. Com o álibi de mulher cineasta, Catherine Breillat se atribuiu a legitimidade de pôr os pingos nos is no que diz respeito à representação do desejo feminino. O resultado nos deixa a céticos: raramente a misoginia foi tão violenta.
Sob as aparências libertinas de modernidade e fascinados pelas “classes perigosas”, estes filmes rejeitam toda tomada de posição política. No fundo, sua fascinação pelo abjeto e pelo sórdido revela um