Cuba e o cooperativismo
Joana Salém Vasconcelos, doutoranda em História Econômica (USP), autora de História agrária da revolução cubana e coorganizadora de Cuba no século XXI, entrevista Camila Piñeiro Harnecker, uma das maiores referências em estudos sobre cooperativismo em Cuba
Em memória de Paul Singer
“Os clássicos parecem ter caído num reducionismo evidente. Pensavam que, se a propriedade privada dos meios de produção é a causa da divisão da sociedade em classes, a abolição daquela implica eliminação desta. Mas a abolição da propriedade privada exige a criação de um regime de propriedade coletiva, sobre o qual eles nada tinham a dizer (…). O planejamento centralizado, que foi a marca registrada do ‘socialismo’ soviético, nada tem a ver com a socialização dos meios de produção. Se todos eles pertencem ao Estado, em tese cada cidadão é proprietário de meios de produção. Mas isso não passa de uma ficção jurídica. Na prática, o controle sobre a economia era exercido pela cúpula do partido, que também era a cúpula do Estado. E os trabalhadores continuaram tão subordinados quanto no capitalismo. A experiência do socialismo ‘realmente existente’ constitui uma grande lição histórica, que nos ensina que socializar tem que necessariamente significar descentralizar o poder, ou seja, o controle dos meios de produção tem que ser exercido diretamente pelos trabalhadores sobre cada unidade produtiva”.
Paul Singer, 1999[1]
Desde que as reformas econômicas destinadas a ampliar o setor privado em Cuba foram anunciadas, em 2011, muitas interrogações surgiram sobre os destinos do socialismo na ilha.[2] Será que o país iria seguir os rumos mercantilistas da China? Seria uma perestroika cubana? Será que, apesar de anunciar a continuidade do socialismo, as reformas conduziriam a uma espécie de “retorno controlado ao capitalismo”? Com qual intensidade e em qual ritmo? Ou seria mesmo uma mudança lenta e dentro dos marcos do socialismo? Nesse caso, como lidar com as novas desigualdades sociais? Afinal, quais critérios determinam a fronteira entre capitalismo e socialismo no mundo contemporâneo?
Essas e outras dúvidas às vezes apareciam acompanhadas de uma tentativa frustrada de rotulação. Quem os cubanos copiavam? A China? A Rússia? O Vietnã? A Venezuela? O Brasil? Nos debates correntes sobre Cuba, a rotulação costuma ser um impulso político tentador. Mas nunca é um método confiável. De modo geral, apesar da forte interferência soviética nos anos 1970 e 1980, é possível afirmar que a revolução cubana nunca se rendeu completamente à importação de modelos. A originalidade do socialismo cubano na feitura de seus próprios caminhos pautou e torceu cada inspiração externa ao sabor caribenho. Agora, mais do que nunca, não haveria motivo para que fosse diferente.
Cuba teima em criar, dentro das margens da sua soberania. Por isso também, observadores externos precisam ler e escutar com muita atenção o que dizem os próprios cubanos. O setor estatal precisava ser reduzido. Esse ponto de partida se tornou praticamente um consenso. Mas como conduzir a desestatização?
Em outra oportunidade, no Le Monde Diplomatique Brasil, tratei das ambivalências da propriedade privada no socialismo cubano. Em um esforço complementar, queria apresentar outra reflexão igualmente estratégica: qual seria o papel das propriedades cooperativas nas atuais mudanças? Sobre esse assunto conversei com Camila Piñeiro Harnecker, uma das maiores referências em estudos sobre cooperativismo na ilha. Ela é pesquisadora e professora do Centro de Estudos de Economia Cubana da Universidade de Havana e especialista em processos cooperativistas ocorridos em distintas partes do mundo. Em 2011 organizou o livro Cooperativas y socialismo: una mirada desde Cuba. Ultimamente, tem se dedicado a compreender as novas cooperativas não agropecuárias, resultantes das atuais mudanças.
O sistema cooperativo agropecuário de Cuba foi formado nos primeiros anos da revolução, composto por associação de pequenos camponeses que compartilhavam crédito e serviços, sobretudo no setor de tabaco. No entanto, desde cedo a agricultura canavieira tornou-se completamente estatal. A partir dos anos 1990, como consequência do colapso soviético, as cooperativas cresceram sobre os canaviais e diversificaram seus formatos. A novidade do atual momento são as cooperativas não agropecuárias, organizadas em três setores principais: gastronômico, mercados agrícolas e construção civil.[3]
No dia 2 de abril, tive a oportunidade de rever e escutar Camila Harnecker junto ao coletivo editorial da revista Latin American Perspectives, na Universidade da Califórnia, em Riverside. Depois seguimos em diálogo por email e o resultado foi essa entrevista. Trata-se de uma breve contribuição para ampliar nosso entendimento dos dilemas da revolução cubana no século XXI, do papel do cooperativismo e, quem sabe, tecer algumas ligações oportunas com o debate sobre os horizontes das esquerdas brasileiras.
Joana Salém – Em julho de 2017, o governo cubano anunciou um novo período de ajustes e correções das reformas econômicas iniciadas em 2011. O que isso significa?
Camila Harnecker – Segundo foi explicado, é uma tentativa de corrigir o curso das mudanças antes de continuar. Um dos aspectos positivos desse processo de reforma é que os formuladores da política contam com um conselho técnico assessor, integrado por numerosas instituições acadêmicas e de investigação que existem no país. Esse conselho entrega resultados de estudos sobre os impactos das medidas tomadas. Os deputados das Assembleias de Poder Popular, em distintos níveis (municipal, provincial e nacional) e os núcleos do Partido Comunista também transmitem o sentimento da cidadania sobre as mudanças até agora realizadas. Por isso, é uma resposta a reclamações de uma parte da população, assim como de instituições estatais que se viram afetadas. Penso que era mesmo importante corrigir o caminho antes da mudança de liderança do país.
Joana Salém – No processo de desestatização, qual é a dimensão do setor cooperativo dentro do setor não estatal? Qual a importância desse setor no conjunto dos desafios que enfrenta o socialismo cubano?
Camila Harnecker – O setor não estatal está composto pelo setor cooperativo, privado, estrangeiro ou misto. Atualmente, em termos de emprego, o setor privado passou a ocupar mais espaço que todas as cooperativas (incluindo as agropecuárias e as novas cooperativas, não agropecuárias). O setor estrangeiro ou misto oferece muito menos emprego que ambos. Contudo, em termos de aporte ao PIB, esse último contribui mais. Embora não existam dados precisos sobre os setores privado e cooperativos, é possível estimar que o setor cooperativo contribua significativamente mais que o privado ao PIB. Segundo foi declarado por Raul Castro e Marino Murillo, que estão à frente do processo de reforma, as cooperativas serão prioritariamente promovidas, recebendo um trato preferencial e vantagens em relação ao setor privado, pois são reconhecidas como uma forma mais socialista de organização empresarial que a empresa privada.
As novas cooperativas não agropecuárias foram concebidas como um complemento da empresa estatal socialista, que contribua para o melhor funcionamento desta última e como ferramenta para solução de problemas locais. Por isso, é de se esperar que o setor cooperativo cresça consideravelmente nos próximos anos, sobretudo se levarmos em conta que uma parte considerável das atividades que hoje realiza o Estado vai ser transferida ao setor não estatal, priorizando a organização cooperativa.
A Conceptualización[4] do novo modelo de socialismo cubano reconhece que as relações socialistas de produção deveriam predominar, isto é, que as cooperativas “verdadeiras” são orientadas aos interesses mais amplos que os interesses de grupos particulares que as compõem, estabelecendo relações socialistas de produção. No entanto, até agora o que ocorreu é que o setor privado [não cooperativo] cresceu mais rápido. O número de cooperativas não agropecuárias que se constituíram está limitado ao número autorizado pelo Conselho de Ministros. A questão é que qualquer pessoa pode solicitar uma licença para o “trabalho por conta própria” [propriedade privada individual] e obtê-la inclusive de forma imediata, enquanto as novas cooperativas não agropecuárias precisam ser autorizadas pelo Conselho de Ministros.
A criação e o funcionamento das cooperativas não agropecuárias ainda têm atualmente um caráter “experimental” e por isso é limitado a cerca de 429 organizações. Esse experimento foi iniciado em 2013 e concebia-se nesse momento que em dois ou três anos seria um processo generalizado, mediante o estabelecimento de uma Lei Geral de Cooperativas. Mas isso acabou sendo postergado. Penso que não obtivemos os resultados esperados porque o experimento não contou com as instituições necessárias para o correto funcionamento das cooperativas (uma instituição de fomento, outra de supervisão, uma de articulação e representação das próprias cooperativas e, idealmente, uma de coordenação de políticas para o setor). Além disso, se deu pouco espaço para atuação dos governos locais.
Assim, os ministérios se encarregaram de tudo e para eles essa era apenas uma tarefa mais entre tantas outras que precisavam executar. Dessa maneira, em alguns casos, não se realizou com a qualidade requerida. Na maioria dos casos porque as pessoas encarregadas tiveram, primeiramente, que aprender sobre essas organizações socioeconômicas tão sui generis que são as cooperativas. Em outros casos, porque a criação de cooperativas é rechaçada por funcionários estatais, já que implicam na futura desaparição de empresas estatais ou porque veem seus interesses particulares afetados.
Joana Salém – Nesse sentido, quais são os principais problemas das cooperativas não agrícolas que você encontrou nas suas investigações?
Camila Harnecker – Desde 2014, quando as primeiras cooperativas não agropecuárias cumpriram um ano, realizamos um diagnóstico e encontramos os principais problemas que enfrentavam. Esses problemas foram agrupados em cinco eixos: 1) processo de criação; 2) educação e informação; 3) acesso a insumos; 4) situações que incidem no aumento de custos de operação; e 5) o marco institucional, incluindo a coordenação com os governos locais. Esses problemas se mantiveram, ainda que alguns tenham melhorado.
Joana Salém – E como os ajustes e correções anunciados em 2017 impactam o setor cooperativo? Os problemas identificados serão objeto de correção? Pode dar alguns exemplos?
Camila Harnecker – Desde 2015 se corrigiram em certa medida algumas das deficiências da promoção de cooperativas por empresas estatais, sobretudo do setor de gastronomia e comercialização de produtos agropecuários. Nas medidas mais recentes para o setor, o que se faz fundamentalmente foi corrigir o funcionamento das supostas cooperativas de construção, que foram criadas pela iniciativa de pessoas (e não de empresas estatais), sem que estas recebessem nenhuma capacitação, na grande maioria dos casos. Assim, em muitas situações o que surgiu foram empresas contratadoras de mão de obra, que apenas guardavam “cooperativa” no nome.
Basicamente, o principal problema que se identificou no experimento das cooperativas não agropecuárias foi o insuficiente ou não efetivo controle destas pelo Estado. Uma das medidas que se deverá adotar é a criação de que se chamou, no Lineamiento 16, de “instância de governo que conduza à atividade”. Como se explicou, considero que o mais adequado para o desenvolvimento do setor é criar várias instituições e não somente uma. Penso também que os formuladores da política conhecem os principais problemas enfrentados pelas cooperativas desde sua criação. Espero que, ao cumprir o anunciado nos Lineamientos 15 e 16,[5] se tomem as medidas necessárias para melhorar o marco institucional das cooperativas. Isso é imprescindível para que funcionem como devem e contribuam com a sociedade tal como se espera.
Joana Salém – Como o novo comando do Conselho de Estado e de Ministros afetará as reformas? E particularmente no setor cooperativo?
Camila Harnecker – Não penso que a nova liderança vá realizar nenhuma mudança de rumo, pois isso já está estabelecido nos documentos que guiam o processo de reformas: os Lineamientos e a Conceptualización do novo modelo. O que pode mudar são os ritmos e os meios que se utilizam para conquistar os mesmos objetivos. Ainda que nos primeiros meses não creio que se tomarão medidas de grande impacto, também penso que a nova liderança vai ser pressionada para entregar resultados palpáveis de melhoria da vida das pessoas e por isso deveriam aprimorar não somente o ritmo, como a qualidade da implementação das mudanças.
*Joana Salém Vasconcelos é historiadora (USP), mestre em desenvolvimento econômico (Unicamp) e doutoranda em História Econômica (USP). Autora do livro História agrária da revolução cubana: dilemas do socialismo na periferia (Alameda/Fapesp, 2017) e coorganizadora do livro Cuba no século XXI: dilemas da revolução (Elefante, 2017).
[1] Ver Paul Singer e João Machado, Economia socialista. São Paulo: Perseu Abramo, 2000.
[2] O primeiro documento que definia diretrizes das reformas foi publicado em abril de 2011 com título Lineamientos para la Política Económica y Social del Partido y de la Revolución. Pode ser acessado aqui: http://www.cuba.cu/gobierno/documentos/2011/esp/l160711i.pdf.
[3] Sobre a história do cooperativismo agrário em Cuba, ver Joana Salém Vasconcelos, “Qual o lugar das cooperativas no socialismo cubano?”. In: Fábio Luis Barbosa dos Santos, Joana Salém Vasconcelos, Fabiana Rita Dessotti (orgs.), Cuba no século XXI: dilemas a revolução. São Paulo: Elefante, 2017.
[4] A Conceptualización del modelo económico y social cubano de desarrollo socialista é um documento publicado em julho de 2017, como parte do processo de ajuste e aperfeiçoamento das mudanças. Acesse completo aqui: http://www.granma.cu/file/pdf/gaceta/Conceptualizaci%C3%B3n%20del%20modelo%20economico%20social%20Version%20Final.pdf.
[5] Os itens 15 e 16, mencionados por Camila, são diretrizes políticas para o setor cooperativo do documento Actualización de los Lineamientos de la Política Económica y social del partido y de la revolución para el período 2016-2021. Dizem: “15. Avanzar en el experimento de las cooperativas no agropecuarias, priorizando aquellas actividades que ofrezcan soluciones al desarrollo de la localidad, e iniciar el proceso de constitución de cooperativas de segundo grado. 16. La norma jurídica sobre cooperativas regulará todos los tipos de cooperativas y deberá ratificar que como propiedad colectiva, no serán vendidas, ni trasmitida su posesión a otras cooperativas, a formas de gestión no estatales o a personas naturales. Proponer la creación de la instancia de Gobierno que conduzca la actividad”. Disponível em: http://www.granma.cu/file/pdf/gaceta/01Folleto.Lineamientos-4.pdf.