Cuba resiste
A população tem consciência de que o governo tudo faz para contornar as dificuldades e que a culpa das carências é do bloqueio.
Estive três vezes em Cuba neste início de 2020, a serviço da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO). O país está seriamente afetado pelo bloqueio usamericano, agravado pela política agressiva de Donald Trump. Falta gás de cozinha e combustível para veículos. Os navios mercantes são ameaçados de sanções caso aportem em Cuba para descarregar seus contêineres. Todos os voos dos Estados Unidos à ilha estão suspensos por ordem da Casa Branca, exceto os que pousam em Havana.
Apesar de tudo, Cuba resiste. A população tem consciência de que o governo tudo faz para contornar as dificuldades e que a culpa das carências é do bloqueio, que já dura 59 anos.
Em janeiro, participei do Cuba Sabe, evento internacional gastronômico que reuniu chefs e produtores de alimentos, com destaque para as culinárias cubana e italiana. No início de fevereiro, estive no seminário promovido pelo Ministério da Agricultura daquele país e a FAO sobre soberania alimentar e educação nutricional. Hoje, Cuba importa 60% dos alimentos que consome, a um custo de US$ 2 bilhões/ano.
Participei ainda da Feira do Livro, dedicada este ano à literatura vietnamita, que funcionou a todo vapor, e do 12º Congresso Internacional de Educação Superior, que reuniu, em Havana, representantes de 45 países para debaterem a Agenda 2030 dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável.
Hoje, para obter divisas, Cuba depende da remessa de dinheiro feita por cubanos que vivem fora do país (cerca de US$ 1 bilhão/ano); dos contratos obtidos com o envio de médicos e professores a mais de cem países; do turismo, que chegou a quase 5 milhões de visitantes/ano na época de Barack Obama e agora sofre redução (o que se reflete na produção de bens e serviços); e da exportação de produtos como vacinas, charutos e rum.
Em dezembro de 2019, Miguel Díaz-Canel, presidente do país, resumiu o garrote que tenta estrangular Cuba: “No 61º aniversário da Revolução, atiraram em nós para matar e, no entanto, estamos vivos”.
Os Estados Unidos nunca se conformaram de não ter pleno domínio sobre a ilha, como acontece com Porto Rico. Por isso, violam o direito internacional com declarado intuito genocida, como disse, em abril de 1960, Lester D. Mallory, do Departamento de Estado: “A maioria da população apoia Fidel Castro. O único modo previsível de tirar-lhe apoio interno é por meio do desencanto e da insatisfação provenientes do mal-estar econômico e das dificuldades materiais. Há que empregar rapidamente todos os meios possíveis para debilitar a vida econômica de Cuba, de modo a provocar fome, desespero e a queda do governo”.
Os prejuízos causados pelo bloqueio somam US$ 138,843 bilhões nos últimos sessenta anos. De abril de 2018 a março de 2019, houve perdas de US$ 4 bilhões, média de US$ 12 milhões/dia. Só em 2019, a Casa Branca adotou contra a ilha 85 medidas agressivas.
Ao deixar de receber por suas exportações, Cuba perdeu US$ 2,34 bilhões em um ano. Produtos de alta qualidade e reconhecida eficácia, como charutos e Heberprot-P (para regenerar a pele de diabéticos e evitar a amputação da parte afetada), estão proibidos de entrar no mercado dos Estados Unidos, e Washington impede que os demais países exportem para Cuba qualquer produto que contenha 10% ou mais de componentes de origem estadunidense, como matérias-primas, tecnologia, softwares etc. Isso se reflete em setores básicos, como alimentação, medicamentos e transporte.
O bloqueio financeiro impede Cuba de obter financiamento externo para adquirir insumos e matérias-primas. Um cubano que padece de descompasso cardíaco grave não pode dispor de equipamento de apoio ventricular, o que lhe permitiria prolongar a vida até o transplante. Os Estados Unidos também dificultam o acesso à internet ao encarecerem a conexão e condicionarem o acesso a plataformas e tecnologias.
Na ONU, dos 193 países-membros, 190 repudiaram o bloqueio em 2019. Houve apenas três exceções: Estados Unidos, Israel e, agora, o Brasil. No entanto, quem haverá de punir o Tio Sam? Mas ele aprendeu, ao ser derrotado pelos vietnamitas, que é possível derrubar governos, jamais um povo unido e decidido como os cubanos.
Frei Betto é escritor, autor, entre outros livros, de Paraíso perdido, viagens ao mundo socialista, Rocco, 2015.