Cuidar é trabalho: por que ainda é uma responsabilidade das mulheres?
A HQ Nos braços dela é um livro inspirado em relatos reais de mulheres à frente dos trabalhos de cuidado, tanto produtivos quanto reprodutivos
O trabalho de cuidado é um tema essencial para a sociedade. A pandemia de Covid-19 evidenciou a crise nessa área, quando mulheres tiveram que conciliar o trabalho remoto com o cuidado de crianças, doentes, idosos e pessoas com deficiência, além das responsabilidades domésticas e da gestão de serviços como educação, transporte e alimentação. Em 2023, a redação do ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio) abordou o desafio da invisibilidade do trabalho de cuidado realizado por mulheres no Brasil. No final de 2024, a Política Nacional de Cuidados foi aprovada na Câmara dos Deputados.
Desde então, pesquisas sociais e de gênero reforçam a necessidade de ações individuais, coletivas e institucionais para reconhecer, valorizar e remunerar esse trabalho. O cuidado é um pilar essencial da sociedade, sem o qual não sobrevivemos, mas segue invisível em diversas esferas: na representatividade política, nos indicadores econômicos, no atendimento à saúde física e mental e nas relações interpessoais e profissionais.
Diante desse contexto, nasceu a HQ Nos braços dela (NADA∴Studio Criativo), um livro inspirado em relatos reais de mulheres à frente dos trabalhos de cuidado, tanto produtivos quanto reprodutivos. As histórias retratam maternidade, maternidade atípica, cuidados com idosos e doentes, além de profissões como enfermagem, educação e trabalho doméstico. Essas narrativas revelam sentimentos comuns a muitas mulheres: desamparo, exaustão, sobrecarga e solidão. O livro abre janelas reflexivas para debater a economia do cuidado, a desvalorização e a precarização desse trabalho essencial, muitas vezes mascarado como um ato de amor ou uma habilidade inata das mulheres.

As artimanhas do patriarcado para manter as mulheres no papel do cuidado
Durante a produção do livro, fomos identificando as estratégias do patriarcado e o pacto social que impõe às mulheres a responsabilidade pelo cuidado, impedindo-as de priorizar seus próprios interesses e ganhos. Enquanto os homens têm a liberdade de buscar seus objetivos, às mulheres cabe sustentar relações fragilizadas em nome de um amor que precisa ser preservado.
Embora a palavra “economia” deriva do grego oikos, que significa “casa”, os economistas desse sistema desigual e obsoleto raramente demonstraram interesse pelo que acontece dentro dos lares. A jornalista sueca Katrine Marçal, em seu artigo Quem fazia o jantar de Adam Smith?, expõe como, para os economistas clássicos, o altruísmo das mulheres as mantinha na esfera privada. Cuidar dos filhos, limpar, cozinhar e lavar não gerava bens tangíveis comercializáveis, tornando esse trabalho economicamente irrelevante.
Essa realidade persiste. No livro Quem vai fazer essa comida?, Bela Gil destaca: “Nós, mulheres, somos vistas como doadoras do nosso tempo e trabalho em nome do afeto que sentimos pelos filhos, marido e familiares, o que nos leva a assumir as tarefas de cuidar das crianças, cozinhar, limpar e muitas outras funções domésticas”.
Katrine Marçal reforça essa ideia ao afirmar: “O trabalho doméstico é cíclico por natureza. Portanto, o que as mulheres fazem não era considerado uma atividade econômica. Ele era visto como uma extensão de sua natureza amorosa. Como sempre continuariam a trabalhar, não fazia sentido quantificar ou qualificar esse trabalho. Ele pertencia a outra lógica, não à econômica, mas à do feminino, ao outro.” Dessa forma, a carga imposta às mulheres segue invisível, perpetuando privilégios e violências de gênero. Já dizia Silvia Federici: “O que eles chamam de amor, nós chamamos de trabalho não pago”.
Nosso livro busca trazer à tona reflexões sobre a desigualdade de gênero na distribuição do trabalho de cuidado, a falta de reconhecimento e apoio institucional e a ausência de políticas públicas. Esse cenário resulta na sobrecarga e isolamento de muitas mulheres, no afastamento do mercado de trabalho e da vida política, além de impactos negativos em sua saúde física e mental. Quando as mulheres cuidadoras estão vulneráveis, aqueles que dependem desse cuidado também ficam desamparados — um problema social urgente que precisa ser enfrentado.
Bárbara Ipê é escritora, quadrinista e ilustradora. Já publicou as obras infanto-juvenis Dona Cida (Editora Patuá), em 2021; e a HQ Meliponi & SuperApi (NADA∴Studio Criativo), em 2023, projetos contemplados por Editais do ProAC/SP.
Tatiana Achcar é jornalista, escritora e ativista pelos direitos das pessoas com deficiência e pelos direitos das mulheres. Em sua trajetória profissional, foi repórter de grandes redações cobrindo pautas de educação e sociobiodiversidade. Escreveu e produziu o livro-reportagem Vida caiçara (Editora ABooks, 2008).