Cultura e o capitalismo de crise permanente
Na emergência da pandemia e suas consequências sociais e econômicas para os trabalhadores da cultura, é imprescindível entender que a Covid-19 escancara as contradições já existentes – o que para os trabalhadores da cultura significa um acirramento de condições já bastante precarizadas de trabalho
Ao contrário da perspectiva do capitalismo organizado, a substância das crises no regime capitalista (crise especulativa, crise bancária, crise financeira) vem de fundamentos estruturais e sistêmicos. É como se o capitalismo vivesse uma permanente crise estrutural, conforme expressão cunhada por István Mészáros, uma vez que, por não ter limites para a sua expansão, acaba por converter-se em uma processualidade profundamente destrutiva. As contradições fundamentais, no entanto, são tratadas como disfunções passageiras. E é assim que, de tempos em tempos, para a sua auto reprodução, o capitalismo é chamado a reestruturar-se para redefinir e assegurar seus padrões de acumulação e rentabilidade.
Nesse contexto, desde a década de 1980, o mundo tem vivido um estado de crise prolongada de reestruturação. E quando a crise se torna duradoura, transforma-se na causa que explica todo o resto, como os cortes nas políticas sociais. Daí a sua específica periculosidade: nublar as verdadeiras causas da crise, que é sempre proporcionar os obscenos patamares de acumulação. Em outros termos, esconder que o problema não são as despesas do Estado, mas sim as receitas. Na atualidade, a Covid-19 nos impõe um agravamento dessa crise que desemboca no capitalismo do desastre, expressão utilizada por Naomi Klein para explicar as situações de caos e instabilidades que se tornam terrenos propícios para a ascensão da doutrina de choque, desenvolvida por Milton Friedman na Escola de Chicago, que significa fundamentalmente executar a lógica neoliberal e as políticas de austeridade.
O que está em jogo na retórica da crise, portanto, é a disputa por uma concepção de Estado diante de uma crise estrutural do capitalismo. Nesses diferentes momentos históricos de reestruturações do capitalismo, em que as contradições são postas à mesa, a agenda da cultura é constantemente ainda mais reduzida, por meio de extinção de ministérios e compressão de recursos. Na cultura, inclusive, a crise vem de antes. Os teóricos que nos ajudam a entender as políticas culturais no Brasil, como Antonio Rubim e Lia Calabre, afirmam que a história das políticas da cultura em nosso país está marcada por tristes tradições, como autoritarismo, caráter tardio, descontinuidades e fragilidade institucional, sendo que nos últimos dois anos essa política pública setorial se converteu em um grande deserto por parte do nosso poder executivo federal.
Cultura
É nesse solo de sistemas de interações políticas, econômicas e sociais que os artistas e todo o conjunto de trabalhadores da cultura realizam as suas atividades. Nas duas bases de dados que permitem uma referência ao trabalho artístico no Brasil nos últimos anos – IBGE/PNAD e MTE/RAIS -, observa-se um crescimento absoluto do número de profissões relacionadas ao campo cultura e do espetáculo, comparado com o restante do mercado de trabalho no país. Quer dizer, a cada dia mais, as pessoas se ocupam das atividades culturais. Hoje são cerca de 5 milhões de pessoas que trabalham no setor cultural brasileiro (IBGE, 2018). Esses dados, por sua vez, estão relacionados a um movimento maior de economização da cultura ou culturalização da economia, conforme teorizado por George Yúdice. A projeção econômica do setor na sociedade contemporânea atribui à cultura um protagonismo maior do que em qualquer outro momento da história.
Mas a atividade artística contém múltiplas dimensões. É, ao mesmo tempo, expressão artística, realização de um trabalho e exercício de uma profissão. Embora a ideia do artista não se dê de forma homogênea em todas as formas históricas e em relação a todos os tipos de arte, é possível identificar a emergência da modernidade que, somando várias influências ligadas ao romantismo, prepara o terreno para o nascimento ideológico do gênio. Os contornos da racionalidade burguesa moderna sugerem, então, a noção de individualização do artista, valorizado por suas capacidades criativas subjetivas. Com o sujeito econômico burguês surge também o sujeito artista, que, por sua vez, desdobra-se no gênio criador.
O resultado analítico dessa construção histórica hoje integram noções como dom, talento, genialidade, criatividade e inovação, mas que pouco acrescentam ao debate “como viver de arte no Brasil” – pauta cada vez mais urgente em nosso contexto. Afinal, como ideias de liberdade e autonomia se conectam para desaguar na constante precarização e insegurança desse tipo de atividade? A arte é uma atividade reconhecida, transmitida, apreendida, organizada, celebrada, e, como toda atividade, obedece a regras, a constrangimentos, insere-se numa divisão do trabalho, em carreiras profissionais, trajetórias financeiras e políticas públicas e privadas de financiamento. Como abrir uma fresta na tessitura do tecido social e político para entender essa categoria sem cair nas idealizações e abstrações?
Trabalho precário
Nesse debate, é importante evidenciar que “classe criativa” é um dos mitos centrais do trabalho precário na atualidade. As informações das bases de dados do trabalho artístico no Brasil, junto com as conclusões de pesquisa própria com artistas, nos ajudam a desenhar o seguinte quadro: no seio da população ativa, as pessoas que se declaram artistas são mais jovens, mais qualificados formalmente e mais concentrados nas metrópoles. Ao mesmo tempo, os seus ganhos são em média inferiores aos ativos de sua categoria de pertença e os seus rendimentos são mais variáveis de um período a outro. A administração dos riscos, própria da atividade artística, faz com que este tipo de trabalho reúna, então, três características essenciais: descontinuidade, perspectivas incertas e variações de remuneração. Polivalência, versatilidade e flexibilidade, critérios apresentados usualmente como positivos, significam mais intensidade, acúmulo de atividades, insegurança e subjugação do processo criativo.
A proposição neoliberal que vem a reboque da justificação da crise do capitalismo trouxe significativa redução de políticas públicas voltadas ao setor. O movimento de retração do Estado e avanço da lógica de mercado expressa mais que uma configuração econômica, mas também uma escolha política que privatiza a gestão cultural. Quando o Estado, por meio de sua gestão, se isenta progressivamente do papel de garantidor de direitos, sobra sempre a lógica do mercado, oferecida como uma instância substituta para a cidadania. Tornar-se empreendedor cultural passar a significar a integração individual ao mercado. Essa integração, contudo, é realizada de forma bastante desigual. Enquanto o Estado prescinde de sua atuação direta para descentralizar e democratizar os projetos culturais, o mecenato, pela lógica do mercado, centraliza os recursos nos principais centros do país, áreas de interesse do marketing cultural das empresas, cuja visibilidade e retorno comercial é mais provável.
Projetos e editais
Nesse contexto da lógica neoliberal, o mercado determina não só o preço como as formas de contrato, de pagamento e as condições de trabalho artístico. Na era dos projetos, a organização das atividades se dá a partir da demanda constante na reorganização dos fatores de produção, de forma a mapear e recrutar o profissional de maneira rápida, por meio de redes de conhecimento, pelas quais são identificados os melhores artistas para cada espetáculo, para responder a cada edital, de acordo com diferentes possibilidades de remuneração. Observa-se, pois, a diferenciação horizontal de competências na multiplicidade de elos contratuais temporários com profissionais autônomos constituindo equipes que se juntam ou se separam de acordo com as circunstâncias. Um exército artístico de reserva qualificado parece ser uma pré-condição para a manutenção dessa forma de organização.
Em meio à corrida de editais e patrocínios, o artista é chamado a comportar-se como empresário da sua própria carreira, um portfólio worker, a custo de uma forte gestão de racionalidade dos seus capitais pessoais (tempo, esforço, competências, reputação). Tais fatores configuram o artista quase-firma. Operando individualmente, em freelancer e/ou em rede, associações e parcerias, os artistas entram, então, na corrida do empreendedorismo precário. Emergem as políticas alternativas de financiamento privado, como o crowdfunding, além do estabelecimento de parcerias diversas com empresas e mesmo fornecedores de produtos para publicidade, como tênis, instrumentos, roupas etc.
Esse laboratório de flexibilidade em uma economia política das incertezas faz com que a esfera das ocupações artísticas desenvolva as mais variadas formas flexíveis de trabalho e hibridações de atividades. Esses destaques apontam para a ironia de que não só as atividades de criação artística deixaram de ser a face oposta do trabalho, como elas são, cada vez mais, assumidas como a expressão mais avançada dos novos modos de produção. As artes que, desde há dois séculos, têm cultivado uma oposição radical em relação ao mercado, aparece exatamente como precursora na experimentação da flexibilidade, ou até da hiperflexibilidade em um mercado de trabalho ultraindividualizado.
Contradições
Na emergência da pandemia e suas consequências sociais e econômicas para os trabalhadores da cultura, é imprescindível entender que a Covid-19 escancara as contradições já existentes – o que para os trabalhadores da cultura significa um acirramento de condições já bastante precarizadas de trabalho. Nesse contexto, é sempre saudável lembrar que o coronavírus é, em todos os sentidos, um evento antropoceno, e quem produz as condições nas quais o vírus se manifesta é o ser social. Em nossa configuração de Estado neoliberal, austero, negacionista, patriarcal, eugenistas e fascistas isso toma proporções de uma grande necrópole. Afinal, na lógica do engenho não pode parar, quem nunca paga pelo sacrifício? Ao Estado coveiro, miliciano e suicidário, para utilizar um texto muito pertinente do Vladimir Safatle, é conveniente se livrar ou minimizar a arte, a cultura e qualquer outro campo que tem a potência de disputar narrativas, de produzir memória e identidade em nossa sociedade.
Mas o interessante é que exatamente nesse período a busca e o consumo por experiências artístico-culturais tem explodido por meio das diferentes formas e plataformas de virtualização. Segundo o Youtube, as buscas por conteúdo ao vivo cresceram 4.900% no Brasil após a quarentena. Apesar dos dados mesmo antes da pandemia já indicarem a importância da cultura do ponto de vista econômico (2,64% do PIB, segundo o Atlas Econômico da Cultura Brasileira), o setor nunca foi tão importante enquanto esfera econômica, simbólica e social. Nesse momento, tornam-se ainda mais urgentes as pautas de monetarização nesses meios, fortemente concentrados e capitalizados. A forma de remunerar na internet vai ser sempre assegurada ao intermediário, ou seja, ao conglomerado da mídia e do entretenimento? A internet se apresenta como plataforma de trabalho efetivamente universalizante em um país em que 1 em cada 4 pessoas não tem acesso à essa rede (IBGE, 2018)? Como fica a renda do artista e de todos os trabalhadores da cultura hoje se não há a possibilidade da bilheteria – principal fonte de renda desse tipo de trabalho?
Importância
Vários países – como Alemanha, Reino Unido, França e Equador – reconhecem a importância do setor cultural durante a pandemia e implementaram, de alguma forma, políticas sociais de proteção aos trabalhadores da cultura. No Brasil, a frente de luta e resistência está ativa. Embora a Secretaria da Cultura, no âmbito federal, tenha se limitado, após mais de uma mês de pandemia, a emitir a Instrução Normativa nº 5 que fundamentalmente flexibiliza alguns prazos para captação e execução (cujos trabalhadores serão os últimos a terem condições de retomarem suas atividades, já que as suas atividades dependem quase sempre da aglomeração de gente), os estados, o poder legislativo e os coletivos de cultura têm travado algumas batalhas no sentido de assegurar editais públicos, mas, principalmente, uma renda mínima para a categoria.
Essas articulações resultaram em um importante avanço no último dia 26 de Maio, data em que foi aprovada em votação virtual na Câmara dos Deputados a Lei Nacional de Emergência Cultural (PL nº 1075/2020), também chamada de Lei Aldir Blanc. O projeto, de autoria da deputada Benedita da Silva (PT-RJ) e com relatoria da deputada federal Jandira Feghali (PC do B RJ), destina R$ 3 bilhões para ações emergenciais no setor cultural, descentralizando os recursos a estados e municípios, Trata-se de uma verba já destinada para a cultura e que estava parada no FNC (Fundo Nacional de Cultura) desde o ano passado. Repassada aos governadores e prefeitos, a verba poderá ser aplicada de três formas. A primeira é no formato de uma renda emergencial para trabalhadores da cultura. A segunda modalidade é por meio de subsídios mensais voltados para a manutenção de espaços artísticos e culturais. A terceira será no financiamento de editais, chamadas públicas e prêmios. O texto segue para o Senado e, se der tudo certo, para a sanção do Presidente da república.
Por fim, precisamos sempre reivindicar a ideia de que a cultura não está na ordem do supérfluo, conforme afirmou Cláudia Leitão. Além de ter uma forte dimensão econômica, a cultura disputa formas de ver, viver e sentir a vida. Por isso, em todo esse debate dos trabalhadores e trabalhadoras da cultura, a oposição entre arte e política / arte e trabalho são extremamente prejudiciais para compreensão das atividades artísticas em nossa sociedade. Ser artista é (também) ser trabalhador e (também) ser um sujeito político, no sentido de requisitar uma identidade que reivindique o fortalecimento de condições econômicas e de políticas públicas que ensejem a sustentabilidade e diversidade na arte. Senão embora a imagem do artista possa se aproximar da imagem do herói, a modernidade heroica vai, cada vez mais, se revelar como tragédia em que o papel do artista está disponível. Neste momento patogênico de asfixia coletiva precisamos disputar concretamente, no plano político-jurídico, econômico e social, uma reprodução que nos confira vida.
Amanda Coutinho é doutora na área das políticas culturais na Unicamp e pós-doutoranda em cultura e sociedade na UFBA