Cultura não é turismo - Le Monde Diplomatique Brasil

Preservar e não lucrar

Cultura não é turismo

por Raisa Pina
8 de novembro de 2019
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Defesa do patrimônio não significa abertura ao turismo ou incentivo à visitação. Tomemos como exemplo a Cachoeira Sagrada de Iauaretê, reconhecida patrimônio imaterial e inscrita no Livro de Registro de Lugares em 2006. O local é considerado sagrado aos povos indígenas dos rios Uaupés e Papuri, no Amazonas.

Desde que teve ministério próprio, em 1985, a Cultura retrocedeu à secretaria em três momentos: na gestão de Fernando Collor, na de Michel Temer e agora com Jair Bolsonaro, por meio de decreto que dispensa a análise e o aval do Congresso Nacional.

Na época de Temer, o encerramento da pasta durou pouco, graças às pressões do movimento Ocupa MinC, que reestabeleceu a estrutura ministerial, apesar das políticas esvaziadas. Dessa vez, não apenas reduziram a diversidade das culturas brasileiras a atrações turísticas como entregaram a chefia de políticas históricas para alguém conhecido por desrespeitar publicamente a classe artística.

Flauta tradicional Rikbaktsa elaborada com osso de gavião. (Crédito Ana Caroline de Lima_OPAN)
Flauta tradicional Rikbaktsa elaborada com osso de gavião. (Crédito Ana Caroline de Lima/OPAN)
Cultura popular e tradicional

Consta nos artigos 215 e 216 da Constituição Federal de 1988 a proteção das manifestações culturais populares, indígenas e afro-brasileiras, além de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional. Isso pressupõe, às vezes, controle de acesso da população em geral a algumas áreas, como santuários, aldeias e quilombos. Contudo, o governo atual entende que é necessário intensificar o turismo nesses locais, construir resorts e levar um conceito desenvolvimentista que passa necessariamente pelo lucro de empresas alheias e pelo silenciamento de demandas locais.

Defesa do patrimônio não significa abertura ao turismo ou incentivo à visitação. Tomemos como exemplo a Cachoeira Sagrada de Iauaretê, reconhecida patrimônio imaterial e inscrita no Livro de Registro de Lugares em 2006. O local é considerado sagrado aos povos indígenas dos rios Uaupés e Papuri, no Amazonas. São 14 etnias presentes na região, articuladas em uma visão de mundo que não inclui abertura massiva a visitantes ou capitalização de suas riquezas patrimoniais.

Pensemos no Ritual Yaokwa, celebração realizada pelo povo indígena Enawene Nawe, que habita uma única aldeia no estado do Mato Grosso. O ritual foi reconhecido patrimônio imaterial e inscrito no Livro de Registro de Celebrações há nove anos. Em 2011, a Unesco incluiu a atividade na lista de patrimônios que requerem medidas urgentes de salvaguarda.

O ritual é uma homenagem aos espíritos da floresta para garantir a manutenção da ordem cósmica, relacionando a frágil biodiversidade local com a cosmologia específica dessa etnia. Tendo-se em vista que a prática depende da preservação do meio ambiente, a Unesco acendeu o alerta para uma possível extinção, o que requer mais ações de proteção. Aí imagine transferir o cuidado desse patrimônio a uma pasta que quer incentivar visitação e emprego e gerar dinheiro.

Prioridade econômica e não cultural

Nota oficial do Ministério do Turismo ressalta que o Brasil representa o 9º país em atrativos culturais do mundo, segundo Índice de Competitividade Global do Fórum Econômico Mundial. O texto ainda destaca a geração de emprego e renda por atuação da pasta, que aumentou em mais de 43% os gastos de turistas no país após isenção de vistos a países que eles consideram estratégicos. O discurso do governo evidencia a prioridade econômica por trás da manobra de transferência, que nada tem a ver com preocupação de preservação ou defesa da memória cultural brasileira.

Necessário pensar também em uma outra possibilidade, de transferência desenfreada e violenta de comunidades que deveriam ser protegidas para construção de centros turísticos. Se parece exagero essa suposição, que nos lembremos do quilombo de Alcântara, removido à força de seu litoral maranhense para construção de uma base militar. O grupo quilombola, de base econômica pesqueira, está impedido há anos de pisar na praia que pertencia a ele. Foram obrigados a reconfigurar toda sua cadeia produtiva de subsistência, depois de perder diversas batalhas para recuperação de suas casas.

Visit us and love us

A percepção do Turismo é voltada para fora do Brasil e está bastante coerente com a política de Bolsonaro, de vender tudo para empresas estrangeiras, incluindo agora a nossa diversidade cultural. Querem exotizar o indígena e cobrar por visita; querem transformar quilombos em Casas Grandes, escravizando uma população cujos ancestrais lutaram intensamente pela liberdade. Como eu já disse em outro momento, o Brasil nunca soube a sua história. E antes de preservar nossas culturas para nosso próprio crescimento e construção de uma sociedade melhor, querem entregar ao capital estrangeiro.

Preservação não pode ter o lucro como objetivo. Se fosse assim, não existiriam artigos constitucionais nem uma lei específica que institui a Política Nacional de Cultura, conquistada a duras penas, promulgada em 2010. “Turismo” é uma palavra que até aparece no texto da Lei 12.343, mas vem depois de educação, de comunicação, de ciência, de direitos humanos e de meio ambiente. Desde a década de 1960, o turismo luta para se desenvolver. Colocar esse esforço na conta da Cultura de forma instrumental e parasitária, ainda mais sem dialogar com a sociedade, é mais do que irresponsável, é criminoso.



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