Da acumulação das vagas carcerárias à policialização da governança
Após a cruzada seletiva contra a “corrupção”, o superministro Sérgio Moro e seu Pacote pretendem devolver à “guerra” da segurança pública, na forma da lei, o excludente de ilicitude, mais encarceramento, o controle e a gravação do contato entre réu e advogado e a reabertura do debate a respeito da proibição de progressão de regime
Em meados da década de 1970, o Diretor-Geral do Departamento do Sistema Penitenciário do Estado do Rio de Janeiro, Augusto Thompson, em seu indispensável A questão penitenciária (Vozes, 1976), chegava a uma conclusão que deveria servir como precaução às nossas débeis certezas contemporâneas a respeito da segurança pública: o sistema penitenciário não pode exercer um efeito regenerador sobre os apenados, pelo contrário, provoca, quase sempre, efeitos nocivos. Adjacente a essa conclusão, o autor emitia um prognóstico que parece não ter alcançado os seus destinatários: “Em face da superlotação prisional, que aflige o país, dificilmente poder-se-á contar com disponibilidade de recursos para dotá-lo de um sistema penitenciário capaz de absorver toda demanda existente”. Penalista que era, ousou imaginar um sistema regressivo, denunciando o absurdo (segundo suas palavras) do sistema progressivo, que hipocritamente pretende ressocializar o preso impondo-lhe uma experiência carcerária que inicia nas piores condições que podem ser imaginadas. Ciente dos limites das reformas que propunha, soube desviar-se da surda sanha punitivista, à qual só pode ocorrer a exigência por mais prisões e extermínios.
Poucos anos depois, durante o Seminário sobre criminalidade violenta, promovido pela OAB – Conselho Federal, em 1980, o ex-secretário de Justiça do governo Paulo Egydio (1975-79), Manoel Pedro Pimentel, sentenciava, com o desalento de quem conhecia como ninguém o “sistema”: “sou um homem descrente, porque não acredito que possa haver o interesse necessário, não digo para encontrar-se a solução, porque ela não existe na prisão fechada, mas para reduzir ao máximo os efeitos deletérios desse Sistema Penitenciário que está aí, custando uma fabulosa fortuna ao Estado, e que só faz piorar o homem”. Sua relatoria evidenciava a inviabilidade das propostas de expansão do parque carcerário para sanar a superlotação tanto da rede prisional administrada pela Secretaria de Segurança (xadrezes de delegacias e cadeias públicas) quanto do sistema penitenciário administrado pela Secretaria de Justiça. E ainda tinha a Casa de Detenção, que já era um enorme problema desde os anos 1970.
O que houve para que não acolhêssemos esses apelos explícitos de quem mais conhecia o sistema carcerário? Se eles nos alertavam para os efeitos deletérios da prevalência da ideia de punição sobre a ideia de recuperação no regime penitenciário, porque fechamos nossos olhos para o excesso punitivo contra os que haviam perdido apenas o direito ambulatorial de ir e vir? Porque insistimos numa tecnologia social, a detenção em regime fechado, quando seus principais operadores nos diziam que ela não só falhava, como provocava reincidência em aproximadamente 70% dos casos? Como pudemos nos manter indiferentes às violações que obrigávamos o “sistema” a impor sobre os presos, germe de um “guerra” que hoje mostra sua face mais destrutiva para os de fora?
Desde então, insistimos, quantitativamente, na piora deste quadro – já muito grave. Consideremos o timoneiro do encarceramento em massa brasileiro, o Estado de São Paulo. A confiarmos no secretário de Planejamento do governo Montoro, José Serra, entre março de 1983 e março de 1987, foram construídas sete unidades prisionais, somando-se às 14 existentes que, por sua vez, foram adaptadas para receber mais presos. Resultado: a capacidade penitenciária do Estado dobrou. Durante o governo Quércia (março/1987–março/1991), mais 16 unidades foram construídas. Por sua vez, o governo Fleury (1991–1994) construiu mais seis unidades. Seu sucessor, Covas, construiu 31 unidades durante os seis anos em que esteve à frente do governo paulista. Após seu falecimento, Alckmin assume o governo e em apenas dois anos entrega 38 unidades. O saldo dessa política carcerária: 109.341 pessoas aprisionadas em 112 unidades superlotadas!
Paradoxalmente, o sinal legitimador dessa política de expansão carcerária fora os “direitos humanos”, bandeira do governo FHC. Com o debute do PT na Presidência da República, essa política foi intensificada por meio do que veio a ser chamado de “PAC da Segurança Pública”, mas também pelo acréscimo do sinal legitimador “segurança pública com cidadania”. Neste período, o governo federal realizou três ações de enorme impacto: tornou federal o tratamento como inimigo que o governo paulista dispensava aos presos considerados membros de facções, por meio da promulgação da Lei no 10.792, que instituiu o Regime Disciplinar Diferenciado; exportou o modelo de parque carcerário paulista para as demais unidades da federação, por meio da expansão vertiginosa do Fundo Penitenciário; e, finalmente, criou seu próprio parque carcerário: o sistema penitenciário federal. Com efeito, se nossa população carcerária em meados de 2002 era de aproximadamente 230 mil pessoas, ela somava 420 mil em 2008 e quase 610 mil em junho de 2014, próximo à conclusão do primeiro mandato de Dilma Rousseff. Se não fizéssemos ouvidos moucos aos apelos do passado, não precisaríamos nos confortar com reelaborações do Mito de Sísifo para lidar com o embaraçoso déficit de 230 mil vagas mesmo após duas décadas e meia de esforços para sextuplicar a capacidade carcerária.
Desde que Geisel e Golbery anunciaram a abertura lenta, gradual e segura, construímos nossa política de segurança pública sob o signo do medo, nunca como uma questão pública, na qual concorrem pontos de vista divergentes. Para justificar essa postura antipolítica, produzimos diligentemente o medo dos “trombadinhas”, da “criminalidade violenta”, depois do “narcotráfico” e, por fim, do “crime organizado”. Sempre sob o signo da emergência: ou “combatemos” eles ou eles invadem nossas casas. Eis a impossibilidade da política e do pensamento. Não é fortuito que as noções básicas dos especialistas da área sejam as mesmas que são usadas por secretários de governo, por policiais e por âncora de programas televisivos. Na outra ponta deste dispositivo de poder, as análises críticas feitas pelos presos ao longo dessas quatro décadas foram silenciadas sistematicamente. Ignoramos suas tentativas de fala durante o governo Montoro, condenando-os como Serpentes Negras; ignoramos as centenas de apelos que fizeram durante as dezenas de massacres dos anos 1980; ignoramos as formulações críticas dos sobreviventes e dos familiares que sofreram as brutalidades do Massacre do Carandiru, reduzindo-os a vítimas, quer dizer, corpos que não podem expor seus pensamentos; ignoramos as exigências do PCC – assim como a própria existência do PCC –, ainda nos anos 1990, para que esse massacre não se repetisse e para que o Anexo da Casa de Custódia de Taubaté fosse desativado. Contra isso, fizemos com que o regime brutal desse Anexo se tornasse uma lei federal, pronta para nacionalizar a transmutação de presos em inimigos (quem não pode ver que o Regime Disciplinar Diferenciado é a diferenciação do regime prisional?). Produzimos muitos massacres desde então.
Ignoramos até mesmo os pontos de vista de ex-presidiários vertidos em esplêndida literatura: estamos abertos, politicamente, para acolher as letras de Luiz Alberto Mendes, de William da Silva Lima, de Jocenir, de André du Rap, de Humberto Rodrigues e de tantos outros? E para ouvir as finas análises políticas que o Rap Nacional proliferou aos longo dos anos 1990? É evidente que não.
A expansão quantitativa do sistema prisional brasileiro ao longo das últimas quatro décadas, em nome da “democracia”, dos “direitos humanos” e da “cidadania”, a despeito de tantos avisos pelo caminho, nos coloca agora em face de uma transformação qualitativa. Herdeiro de uma população carcerária que ultrapassa as 700 mil vidas, o atual regime de governança não se preocupa nem com democracia, nem com direitos humanos, mas sabe mobilizar algumas exigências que foram cuidadosamente cunhadas durante os governos FHC, Lula e Dilma. Ele parece suficientemente capaz de avançar alguns “temas” produzidos em democracia (e pela nossa leitura governamental estreita dos direitos humanos) e, ao mesmo tempo, se dar a legitimidade para ignorar os freios que os “controles democráticos” (e os direitos humanos) impunham. Ora, mas argumentar que operações de exceção são uma novidade do novo regime de governança seria ignorar completamente nossos antecedentes político-econômicos, de um lado, e, de outro, o que sempre foi feito com nossos prisioneiros. O ponto de virada, portanto, não é a instauração do estado de exceção, mas a invenção de uma excepcionalidade que parece juntar duas operações distintas: o hiperpunitivismo imposto aos pobres, no campo da segurança pública, e as provas indiciárias como conjunto suficiente (e não apenas necessário) para eliminar a presunção de inocência, no campo da política-judiciária. Em duas expressões: combate ao crime organizado e combate à corrupção.
Mas o que há de revelador nessa junção? Com a Operação Lava Jato a gestão diferencial dos ilegalismos deixou de ser apenas a natureza da seletividade penal dirigida aos pobres, pretos e periféricos. Em outro registro, o dos crimes de colarinho branco, essa famigerada Operação orquestrou uma gestão diferencial dos ilegalismos político-partidários. Ironia do destino? Há 40 anos, as esquerdas – ainda que por um instante – voltaram seus olhos para os “presos comuns”, após serem obrigadas a abri-los diante das atrocidades cometidas contra os “presos políticos”. Agora, os sinais do crepúsculo de nossa mitigada democracia parecem exigir o qualificativo política para as prisões tanto de Lula quanto a de milhares que adentram delegacias e CDP’s todos os dias.
Há, todavia, um movimento de retorno à segurança pública. Após a cruzada seletiva contra a “corrupção”, o superministro Sérgio Moro e seu Pacote Anticrime pretendem devolver à “guerra” da segurança pública, na forma da lei, o excludente de ilicitude (principalmente para agentes de segurança que cometem homicídios), mais encarceramento, o controle e a gravação do contato entre réu e advogado e a reabertura do debate a respeito da proibição de progressão de regime. Tudo com bastante heroísmo e um patriotismo provinciano que enxerga na tragédia penal estadunidense um bom modelo para nossas mazelas! E ainda nem vimos no que resultará, sob essas circunstâncias atemorizantes, a combinação do alargamento das possibilidades de requerer a posse de arma e de reivindicar legítima defesa.
Muito se tem falado de judicialização da política. Mas eu gostaria de colocar à prova um outro argumento. O estraçalhamento da presunção de inocência, levado a cabo pela Operação Lava Jato contra o Partido dos Trabalhadores, trata-se de uma velha prática policial conduzida contra os pobres e pretos deste país: pé na porta de barracos, faro policial, prisão para averiguação, canseira no “corró”, testemunhas policiais. Todas essas práticas são espécies de produções de provas indiretas/indiciárias que sempre serviram para meter “gente perigosa” no fundo das celas. A seletividade penal é mais velha entre pobres e pretos, porque foi o recurso de controle com o qual dotamos nossas forças policiais para nos livrarmos da “gentalha”. Por isso deveríamos falar de policialização da governança. Com essa noção, gostaria de propor que o mecanismo de combate à “corrupção” seja lido como figura irmã dos combates à “criminalidade violenta”, ao “narcotráfico” e ao “crime organizado”. Figuras difusas, promotoras de medo, de ódio, da interdição ao pensamento. Antipolíticas por excelência, por que retiram do espaço público aqueles que o alargariam se pudessem emitir sua divergência.
Redefinamos os termos sob essa perspectiva. “Corrupção”: meio pelo qual se pode transformar divergências à esquerda (partidos, institutos, universidades, movimentos) em inimigos, reduzindo as disputas em torno da condução de nossos destinos governamentais a uma questão jurídico-policial. “Crime organizado”: meio pelo qual se pode transformar presos – condenados por assassinato, roubo, latrocínio, tráfico – em inimigos, retirando suas capacidades de falar sobre os crimes estatais que erigiram a “guerra” em que foram metidos.
Estamos diante de um redesenho da forma de gestar a política e a punição. Ao que tudo indica, as práticas policialescas servem-lhe como uma de suas principais figuras.
Adalton Marques é Professor da Universidade Federal do Vale do São Francisco (UNIVASF), doutor em antropologia pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e autor dos livros Humanizar e expandir: uma genealogia da segurança pública em São Paulo (IBCCRIM, 2018) e Crime e proceder: um experimento antropológico (Alameda, 2014).