Da guerra colonial ao terrorismo de Estado
Os 55 dias da batalha de Dien Bien Phu, que determinaram a derrota do Exército francês pelos vietnamitas, abriram caminho para a descolonização da África, mas também para a “guerra suja” no Cone SulMaurice Lemoine
A resistência vietminh1 na Indochina começava seu oitavo ano. Em 20 de novembro de 1953, Dien Bien Phu estava cercado por seis batalhões de pára-quedistas franceses (nome de código: Operação Castor). Em 7 de maio de 1954, as tropas vietminh haviam feito prisioneiros os sobreviventes das tropas de retaguarda. Muita coisa foi relatada sobre esses 55 dias e 55 noites de pavor, heróicos (militarmente falando) de ambos os lados, mas descrevendo essencialmente os acontecimentos a partir do campo francês2. Finalmente, nos é dado conhecer o ponto de vista vietnamita com a obra do general Vo Nguyen Giap, comandante-em-chefe do exército popular do Vietnã durante 30 anos e um dos principais atores da batalha. Meio século depois, ele faz um relatório preciso e detalhado, acrescido de seus próprios julgamentos e reflexões3.
O vietminh escolheu então o Noroeste para sua próxima ofensiva. “As autoridades francesas tinham perdido todas as esperanças de ganhar a guerra”, escreve Giap. “Mas continuavam convencidas de que tinham o tempo necessário para reunir as condições que permitiriam pôr fim às hostilidades com vantagem para elas”. Embora os franceses contassem então com o apoio dos norte-americanos (a ajuda de Washington já cobria 73% das despesas), não tencionavam ceder-lhes o lugar na Indochina. Com essa finalidade, o corpo expedicionário devia obter um sucesso militar decisivo.
Maior feito de um povo oprimido
Nessa guerra ignorada ou amaldiçoada pela população francesa “os brancos usam os negros para proteger os amarelos contra os vermelhos”
O Estado-Maior francês descobriu os preparativos das forças populares no Noroeste. O general Henry Navarre decidiu cortar-lhes o caminho e derrotá-los na bacia de Dien Bien Phu, vasto celeiro de arroz situado a 300 quilômetros de Hanói, centro comercial que permitia as ligações entre a região média do golfo de Tonquim, o Laos, a Tailândia, a Birmânia e a China. A continuação é narrada por Giap: “Se conseguíssemos encaminhar sem transtorno armas, munição e os soldados da artilharia, já poderíamos considerar 60% da operação como bem sucedida”. Isso foi feito. O general dirigiu aos futuros combatentes a seguinte mensagem: “Vocês devem consertar as estradas, superar todos os obstáculos, vencer todas as dificuldades, combater sem nunca esmorecer, vencer o frio e a fome, transportar cargas pesadas através das montanhas e dos vales, e avançar até o campo do inimigo para aniquilá-lo e libertar nossos compatriotas…”
Sem nunca perder de vista o contexto geopolítico – segundo fontes vietnamitas e ocidentais – Giap descreve Ho Chi Minh “com um cigarro entre dois dedos4“, menciona a bandeira vermelha com a estrela de ouro, as tropas regulares regionais e as milícias da guerrilha, as intermináveis fileiras de soldados e jovens voluntários, os conselheiros chineses, o transporte de peças de duas toneladas em descidas abruptas de 30 a 40 graus e sob a ameaça da artilharia, o dilúvio de fogo que se abateu sobre a zona militar defendida por 12 mil homens perfeitamente equipados. Depois, a vitória, o maior feito já realizado por um povo oprimido. “O que fizemos o inimigo padecer excedia a capacidade de resistência de homens que não sabiam para quem e por que razão combatiam.”
Sangue e lágrimas
A derrota de Dien Bien Phu e o cativeiro nos “campos de reeducação iriam marcar terrivelmente as mentes, sobretudo entre os mais graduados das tropas de elite”
Cinqüenta anos mais tarde, a pergunta continua. Como se chegou a essa palavra cheia de sangue e de lágrimas: Dien Bien Phu? É a isso que se esforça em responder Paul Boury, ex-oficial na Indochina e sobrevivente da batalha5. Voltando a essa guerra ignorada ou amaldiçoada pela população francesa6 na qual “os brancos usam os negros para proteger os amarelos contra os vermelhos” (referência às origens étnicas e culturais extremamente variadas das tropas da União Francesa), ele explicita seu contexto e sua estratégia. Inicialmente, a das tropas de retaguarda, atribuída ao general Raoul Salan. Essa teoria partia do princípio de que era conveniente atrair uma parte do corpo de batalha vietminh para uma posição na qual se apresentavam fragilidades tais que ele atacaria, mas na qual se seria forte o suficiente para, com a artilharia e a aviação, desferir ataques decisivos. No caso, o inimigo revelou um poderio superior ao que se havia avaliado.
Três objetivos foram determinados à retaguarda, lembra Boury: barrar o caminho do Laos (que assinara um tratado de defesa com a França); constituir um ponto de referência para as guerrilhas anticomunistas; e servir de ponto de partida contra as linhas de comunicação vietminh. Para a execução desse projeto, o general Navarre pediu mais efetivos e recursos. O governo recusou concedê-los. Além disso, a decisão do comandante-em-chefe provocara reticências, por razões técnicas e táticas, de certos membros do Estado-Maior das Forças terrestres do Vietnã do Norte: “Neste país, não se barra uma direção. É uma noção européia sem valor aqui. O Viet passa por qualquer lugar”. Prisioneiro da missão ambígua que lhe foi dada pelo governo, Navarre persiste e assume, lança suas tropas num combate em pouco tempo desesperado “que lhe pedirão que prossiga, com a desculpa da honra, contando com um socorro do exterior ou com um último recurso à diplomacia”.
Os “soldados perdidos”
Diante de um inimigo impossível de ser identificado, por estar disseminado entre a população, surge o conceito de “inimigo interno”
No contexto da Guerra Fria, o conflito na Indochina é considerado como um confronto entre forças comunistas e o “mundo livre”. Efetivamente, em Washington, observa Paul Boury, o Estado-Maior inter-exércitos, presidido pelo almirante Arthur Radford, visava a uma intervenção aérea com cerca de sessenta bombardeiros pesados B-29 (aviões de carga, pilotados por militares norte-americanos em civil, já desempenhavam um papel essencial no abastecimento em víveres e munição para o Grupamento Operacional do Noroeste- Gono). “Sem que isso fosse explicitado de uma forma clara, a operação poderia consistir no lançamento de uma bomba atômica” (com o risco de destruir a guarnição ao mesmo tempo que os “Viets”!). O projeto fracassou. Para Washington, um apoio desse tipo ao esforço francês passava pela elaboração de uma coalizão ad hoc. “A situação não lhes permitia tomar parte no conflito diretamente”, lembra o general Giap. “Se este se internacionalizasse, não lhes seria fácil levar junto seus aliados, já cansados devido à guerra da Coréia”. Por outro lado, os ingleses ocupavam Hong Kong e não queriam perder a oportunidade de melhorar suas relações com a China Popular. Finalmente, os norte-americanos queriam aproveitar a derrocada do colonialismo francês para transformar os países indochineses em nações satélites. É essa a importância de Dien Bien Phu. Jean-Paul Sartre diria, pouco depois, em Les Temps Modernes de maio de 1954: “O heroísmo dos combatentes condena a política que o impôs.”
A derrota de Dien Bien Phu e o cativeiro nos “campos de reeducação7“, analisa o autor, “iriam marcar terrivelmente as mentes, sobretudo entre os mais graduados das tropas de elite (oficiais e suboficiais) que receberam diretamente o choque”. Retornando dos campos vietminh “com um duplo sentimento de injustiça e humilhação, sentiram-se cortados da Nação e absolutamente incompreendidos. Os que se tornariam ?soldados perdidos? (mercenários), foram naturalmente levados a se referirem a uma ética específica, a construírem uma escala de valores que não mais correspondia, a não ser muito aproximativamente, àquela que era muito geralmente partilhada”.
O conceito de “inimigo interno”
Sem que se saiba, as imagens da batalha de Argel, em 1957, assemelham-se
àquelas que serão vistas, na década de 70, na Argentina e no Chile
O fim dessa guerra (francesa) 8 inaugurou a era das independências obtidas pacificamente ou com luta, como na Argélia. Lançados nessa nova batalha, os oficiais “doentes da Indochina” (muitos vindos das fileiras da resistência ao nazismo) analisaram a técnica de guerrilha desenvolvida pelo vietminh. Ela é apenas a face emergente de um programa político que se baseia no “controle ideológico das populações”, que se tornara a verdadeira questão da guerra, através de um sistema de “enquadramento das massas”. Desde 1952, o coronel Charles Lacheroy, considerado um dos principais pensadores militares franceses da segunda metade do século XX, usa a expressão “guerra revolucionária”, que vai se tornar a marca registrada da “doutrina francesa”.
Numa sólida investigação, Marie-Monique Robin traça a história desta última e de seu desenvolvimento, pouco conhecido, na… América Latina9. Através dos nomes, familiares ou não – Roger Trinquier, Pierre Château-Jobert, Marcel Bigeard, Charles Massu, Paul Aussaresses -, ela conta como muitos oficiais passaram, sem (ou com) consciência, da resistência à “guerra suja”. “Pois se o exército”, observa, “se empenha em tirar lições da guerra da Indochina, não é para se questionarem as raízes sociais ou econômicas dos movimentos nacionais nos países subdesenvolvidos ou a inevitabilidade da descolonização”. Do ponto de vista desses militares, o conflito ultrapassa o âmbito colonial francês para inserir-se no confronto latente que opõe, por intermédio dos países, o Kremlin e o “mundo livre”.
“Num caso tão perigoso quanto a guerra”, diria posteriormente o coronel Trinquier, “os erros causados pela generosidade são (…) a pior coisa. Como o uso da força física não exclui de forma alguma a cooperação da inteligência, aquele que a usa sem piedade e não recua diante de nenhum derramamento de sangue terá vantagem sobre seu adversário (…)10. Diante de um inimigo impossível de ser identificado, por estar disseminado entre a população, surge o conceito de “inimigo interno”. A partir de então, um lugar preponderante é concedido tanto à “informação política” quanto à “ação policial”. E, na Argélia, quem dizia informação diria rapidamente patrulhamento urbano, interrogatórios e, finalmente, tortura. Com o apoio implícito das autoridades políticas, incapazes de assumir suas responsabilidades, “esses exageros sistemáticos são a expressão de uma ?revolução na arte da guerra?, considerada como resposta à ?guerra total? conduzida pelos rebeldes por meio de uma política de terror cujo ponto principal é a união das populações”.
De Argel à Argentina
É na Argentina – é preciso dizer que já estava predisposta – que o enxerto francês vai introduzir mais rapidamente o conceito de “inimigo interno”
Sem que se saiba, as imagens da batalha de Argel, em 1957, assemelham-se – a ponto de provocarem confusão – àquelas que serão vistas, na década de 70, na Argentina e no Chile. É que a doutrina francesa assumiu uma dimensão transnacional, atraindo a atenção dos Estados-Maiores ocidentais. A partir de 1957, relata Marie-Monique Robin, alunos estrangeiros, dentre os quais numerosos latino-americanos, freqüentaram a Escola Superior de Guerra de Paris. Em plena batalha de Argel, dois especialistas franceses chegaram a Buenos Aires, prelúdio de um acordo secreto assinado, em fevereiro de 1960, prevendo a criação de uma missão de assessores militares franceses na Argentina. Nesse mesmo ano, uma “missão móvel” de oficiais franceses realizou uma turnê sul-americana, enquanto La guerre moderne11, do tenente-coronel Trinquier, “se tornou a Bíblia de todos os especialistas, da Argentina ao Chile, passando pelos Estados Unidos”. Em 1961, um pouco antes do putsch de Argel, o comandante Aussaresses foi instrutor em Fort Bragg, nos Estados Unidos. Como adido militar, daria, posteriormente, cursos no Brasil, em 1973.
É na Argentina – é preciso dizer que já estava predisposta – que o enxerto francês vai introduzir mais rapidamente o conceito de “inimigo interno”. Segundo Robin, ele pôde contar, nesse país, com o apoio de colaboradores e de franceses pró-Vichy que escaparam da justiça com a cumplicidade do Vaticano, de organizações como La Cité catholique, no interior da qual se destaca o “monge-soldado” Georges Grasset, ex-guia espiritual da Organização do Exército Secreto (OAS). A gangrena iria se estender ao Chile e depois, através da Operação Condor12, à totalidade do Cone Sul, acrescentando-se à “doutrina de segurança nacional” professada pelos Estados Unidos. Dessa forma, os franceses participaram, na América Latina, da implantação de uma matriz, a do terrorismo de Estado.
(Trad.: Regina Salgado Campos)
1 – Organização política (Liga para a Independência do Vietnã) formada em 1941 por nacionalistas que apoiaram, até 1951, o movimento comunista da Indochina.
2 – Ler, entre outros, de Jules Roy, La bataille de Dien Bien Phu, ed. Julliard, Paris, 1963, e, de Bernard Fall, Diên Biên Phu, un coin d?enfer, ed. Robert Laffont, Paris, 1968. Mais recentemente, de Guy Leonetti (org.), Lettres de Diên Biên Phu, ed. Fayard, Paris, 2004.
3 – Mémoires 1946-1954. Diên Biên Phu. Le rendez-vous de l?histoire, general Vo Nguyen Giap, ed. Anako, Fontenay-sous-Bois, 2004, 346 pp., 19 euros.
4 – Ler também, de Pierre Bricheux, Hô Chi Minh, Biographie, ed. Payot, Paris, 2003.
5 – Paul Boury, Dien Bien Phu. Pourquoi? Comment? Et après? Editions Clea, Dijon, 2004.
6 – Segundo uma pesquisa IFOP realizada em fevereiro de 1954, 80 % dos franceses consideravam conveniente, com ou sem negociações, pôr um fim ao conflito.
7 – Dos combatentes de Dien Bien Phu, 11.048 foram feitos prisioneiros, dentre os quais 7.708 morreram no cativeiro (duas vezes mais do que durante os combates).
8 – Sobre a guerra do Vietnã norte-americana, ler, de Christopher Goscha et Maurice Vaïsse (org.), La guerre du Vietnam et l’Europe, 1963-1973, ed. Bruylant/LGDJ, Bruxelas-Paris, 2003.
9 – Ler, de Marie-Monique Robin, Escadrons de la mort, l?école française, ed. La Découverte, Paris,
Maurice Lemoine é jornalista e autor de “Cinq Cubains à Miami (Cinco cubanos em Miami)”, Dom Quichotte, Paris , 2010.