Da guerra fria à guerra preventiva
Após alguns “acidentes de percurso” – tais como o fim da guerra fria, com o colapso da União Soviética e a conseqüente inexistência de um “inimigo” – a ultra-direita norte-americana retomou, no atual governo Bush, um projeto iniciado em 1976Philip S. Golub
Faz mais de um quarto de século que a direita neoconservadora norte-americana tenta, com mais ou menos sucesso, estabelecer sua hegemonia ideológica e política nos Estados Unidos. Durante muito tempo contrariado pelo jogo democrático e as resistências da sociedade, esse projeto está prestes a dar certo devido, em primeiro lugar, à contestada vitória eleitoral de George W. Bush em 2000 e, depois, ao desastre de 11 de setembro de 2001, que transfigurou um presidente acidental em César norte-americano. Desde então, Bush tornou-se o vetor de uma política baseada no unilateralismo, a mobilização permanente e a guerra preventiva.
A guerra e a militarização não seriam possíveis sem os atentados de 11 de setembro, que permitiram uma guinada institucional a favor da “nova direita”
A guerra e a militarização não teriam sido possíveis sem os acontecimentos de 11 de setembro, pois estes fizeram com que o equilíbrio institucional se inclinasse a favor da “nova direita” Outras respostas, no entanto, menos desestabilizadoras para o sistema mundial, poderiam ser consideradas: por exemplo, um reforço efetivo da cooperação multilateral para conter a ameaça, conjugado a uma política de redução das tensões e resolução dos conflitos nas zonas de risco, sobretudo no Oriente Médio. Ou ainda, um esforço de desenvolvimento regional tendo como modelo o plano Marshall, que favoreceria as forças democráticas locais e cujos efeitos keynesianos sobre a economia norte-americana e mundial poderiam ser dinamizadores, diferentemente dos efeitos produzidos pela guerra.
A “doutrina de prioridade”
Como se sabe, não foram estas as vias adotadas. Ao contrário, o governo Bush deixou que o conflito israelo-palestino se deteriorasse, lançou uma mobilização militar de grande amplitude e optou pela guerra preventiva como meio de “governança” global. Para além das razões circunstanciais – aproveitar a oportunidade estratégica para “reconfigurar” o Oriente Médio e o golfo Pérsico1 – essa opção reflete uma ambição imperial mais ampla. Como enfatiza Anatol Lieven, do Carnegie Endowment de Washington DC, “produto do trabalho constante, desde o colapso da União Soviética no início da década de 90, de um grupo de intelectuais próximo de Richard Cheney e Richard Perle, o plano do governo Bush visa à dominação unilateral do mundo através da superioridade militar absoluta2“.
Tendo se tornado possível pela unipolaridade adquirida em 1991, esse projeto, de fato, data da década de 70. Pois nesse momento é que foi formada a coalizão dos extremos que atualmente dirige o país. Seu programa político é unificar a sociedade pela guerra e a mobilização permanente, e assegurar a supremacia estratégica global dos Estados Unidos. Hoje totalmente visível, esse projeto autoritário, que requer a definição incessante de um inimigo e a implantação de um Estado forte, independente da sociedade, já era evidente em meados da década de 70, quando a direita radical pôs a pique a política de distensão Leste-Oeste. Tornou-se explícito na década de 80, quando o mesmo grupo de atores empreendeu a mais vasta mobilização militar já conhecida pelos Estados Unidos em tempo de paz, e no início da década de 90, quando os neoconservadores elaboraram a chamada doutrina de prioridade3.
A direita radical se impõe
Bush permitiu a deterioração do conflito israelo-palestino, lançou uma mobilização militar e optou pela guerra preventiva como meio de “governança” global
A demolição da política de distensão Leste-Oeste foi o momento em que surgiu. Em resposta à revolta da sociedade contra o Estado de segurança nacional, houve, por volta de meados da década de 70, uma convergência entre a direita radical do Partido Republicano, conduzida por Ronald Reagan, elementos revanchistas do aparelho de segurança nacional, abalados pela derrota no Vietnã, e os neoconservadores democratas oriundos da ala anticomunista radical do mesmo partido. Decidida a restabelecer a autoridade do Estado, o consenso nacional de guerra fria e a restaurar a supremacia estratégica de seu país, essa coalizão levou a uma ação política e ideológica metódica para enterrar a distensão.
Tal coalizão denunciou a política “realista” de Richard Nixon e Henry Kissinger que determinava, segundo eles, um perigoso enfraquecimento da vontade coletiva norte-americana, e propôs uma mobilização de grande amplitude e uma estratégia ofensiva destinada a subjugar o regime soviético. Tratava-se de passar da distensão e da coexistência a “medidas ativas”. Como destaca o próprio Kissinger, “enquanto os primeiros atores da guerra fria tinham se contentado com a distensão para obter mudanças [do sistema soviético], seus sucessores prometiam mudanças significativas em razão de uma pressão direta norte-americana4“. Richard Perle, um dos elementos conservadores mais influentes do atual governo, reconhece com franqueza: “Era preciso mostrar que a distensão não poderia dar certo e restabelecer objetivos de vitória5.” Facilitada em sua tarefa pela queda ignominiosa de Richard Nixon e a ascensão de Gerald Ford, presidente fraco e sem envergadura, a direita radical conseguiu se impor em poucos anos.
O nascimento do “Team B”
Em meados da década de 70, houve uma convergência entre a direita radical republicana, conduzida por Ronald Reagan, e os neoconservadores anticomunistas
Para reanimar a vontade de vencer dos norte-americanos e neutralizar os partidários da coexistência armada (é bom lembrar que não se tratava de “pombas”), ela falsificou os dados, exagerou a ameaça e caluniou os indivíduos e as instituições que poderiam contrariá-la, em particular o Departamento de Estado e a CIA. Em 1974, Albert Wohlstetter, da Rand Corporation, pai espiritual da corrente neoconservadora e sogro de Perle, lançou a primeira fase da ofensiva “acusando a CIA de subestimar sistematicamente as implantações de mísseis soviéticos”. Na seqüência, os “conservadores lançaram um ataque orquestrado”, secundados pelo ministro da Defesa da época, Donald Rumsfeld, por seu protegido, Richard Cheney, então chefe do Estado-Maior do presidente Ford, e por um grupo consultivo de inteligência estratégica ligado à Casa Branca, o President?s Foreign Intelligence Advisory Board (PFIAB).
Essa campanha deveria conduzir à criação, em 26 de maio de 1976, do “Team B6” (Equipe B),um organismo externo de “especialistas” encarregados pelo novo diretor da CIA, George Bush, de fazer uma contra-avaliação da ameaça soviética. Essa competição estabelecida entre a CIA e seus detratores (de direita, pois ninguém de esquerda foi solicitado) foi ainda mais surpreendente na medida em que o predecessor de Bush na CIA, William Colby, recusara uma iniciativa similar em 1975, justificando que lhe era “difícil imaginar como um grupo ad hoc ?independente? de analistas […] poderia preparar uma avaliação das capacidades estratégicas soviéticas mais exaustiva do que aquela elaborada pela comunidade de informação”.
O desastre de Bush pai na CIA
Em 1976, foi criado o “Team B”, órgão encarregado pelo novo diretor da CIA, George Bush, de fazer uma contra-avaliação da ameaça soviética
Dirigido pelo especialista em União Soviética Richard Pipes, pai do publicitário neoconservador Daniel Pipes, o “Team B”, que contava entre seus membros eminentes com o atual subsecretário da Defesa, Paul Wolfowitz, iria produzir, como demonstrou Anne Hessing Cahn, uma série de relatórios catastróficos, puras construções ideológicas sem qualquer base empírica.
Criticando os analistas da CIA e visando, através deles, a política de distensão, o grupo de Pipes afirmava: “As estimativas nacionais de inteligência [da CIA] estão cheias de conclusões sem fundamento nas intenções soviéticas. Essa prática é que é a causa das sub-estimativas recorrentes quanto à intensidade, a extensão e a ameaça implícita representada pela mobilização estratégica soviética.” O “Team B” tinha a pretensão de conhecer as verdadeiras intenções soviéticas: “As teorias políticas e militares russas e soviéticas são nitidamente ofensivas […]. Seu ideal, formulado por um comandante russo do século XVIII, o marechal A. V. Suvorov, é a ciência da conquista.” Em outras palavras, os soviéticos, armados com mísseis nucleares intercontinentais e com uma cultura estratégica inspirada por Clausewitz, que privilegia a ofensiva, não só eram capazes de lançar um ataque preventivo contra os Estados Unidos, mas ainda seriam culturalmente levados a fazê-lo.
Essas generalizações absurdas entrelaçadas por inverdades – as despesas militares soviéticas começaram a diminuir em 1975, com uma taxa de crescimento avaliada em 1,3% ao ano entre 1975 e 19857 – foram pura e simplesmente fabricadas a fim de desestabilizar o equilíbrio institucional norte-americano. De acordo com Howard Stoertz, na época responsável na CIA pelas análises sobre a União Soviética, a direção de George Bush “foi um desastre absoluto para a CIA8“. Mas foi um sucesso significativo para a direita radical e desempenhou um papel decisivo no abandono da distensão em 1976, data em que o termo desapareceu do vocabulário oficial. Por ocasião da eleição presidencial de 1976, Ronald Reagan (que muito justamente perdeu as primárias republicanas se opondo ao presidente que saía, Gerald Ford) retomou, por sua vez, o discurso do “Team B”: “Esta nação passou a ser o número dois num mundo em que é perigoso, talvez até fatal, ser o segundo.”
Em busca de um novo “demônio”
O “Team B” contava entre seus membros com o atual subsecretário da Defesa, Paul Wolfowitz, que produziu relatórios catastróficos, sem qualquer fundamento
Como se sabe, o inventor da expressão “Império do mal” iria, alguns anos mais tarde, dar prosseguimento a esse movimento, integrando à sua equipe as figuras emblemáticas da época Ford, a começar por Perle e Wolfowitz, dando início a um vasto esforço de defesa e relançando operações clandestinas de grande envergadura, abandonadas desde a derrota do Vietnã, principalmente no Afeganistão e na América Central.
Em março de 1983, Ronald Reagan voltaria a questionar a estrutura de segurança nuclear global, instituída pelo governo Nixon e baseada no tratado antibalístico de 1971 (ABM). Lançou então a Iniciativa de Defesa Estratégica (SDI), programa de pesquisa e de desenvolvimento visando à criação de um escudo antibalístico terrestre e espacial. Ao mesmo tempo, a Casa Branca lançava operações ofensivas de informação em torno da União Soviética e, em seu espaço aéreo, “provocações políticas maiores”, de acordo com os termos de um analista da CIA, destinadas a pôr em evidência as vulnerabilidades dos sistemas de defesa soviéticos9.
O final da guerra fria, em 1991, iria consagrar a supremacia estratégica norte-americana, outorgando aos Estados Unidos um monopólio real do recurso à violência nas relações entre Estados. Mas, simultaneamente, a queda da União Soviética fazia desaparecer a razão de ser do Estado de segurança nacional, dissolvendo o sentido que só um inimigo mortal propicia. Como dizem dois pesquisadores norte-americanos, “poderia pensar-se que os neoconservadores se tivessem rejubilado com a morte de seu inimigo”. Não foi exatamente o caso. Assombrados pelo espectro da desmobilização nacional e “preocupados, antes de tudo, com a legitimidade política e cultural do regime norte-americano”, procuraram um novo “demônio […] capaz de unificar e de inspirar o povo […]. Um inimigo a ser combatido que lembrasse aos norte-americanos o sentido e a vulnerabilidade de sua cultura e de sua sociedade10“.
O poder por meio da guerra
Ronald Reagan retomou o discurso do “Team B”: “Esta nação passou a ser o número dois num mundo em que é perigoso, talvez até fatal, ser o segundo”
A guerra do Golfo de 1991 e a substituição da União Soviética pelos “Estados delinqüentes” como adversário estratégico global autorizaram a nova mobilização nacional e permitiram a preservação e a extensão do arquipélago militar planetário dos Estados Unidos. Essa guerra, segundo Cheney, na época secretário da Defesa, representava a “prefiguração do gênero de conflito que poderíamos enfrentar na nova era […]. Além do Sudoeste Asiático, temos interesses importantes na Europa, na Ásia, no Pacífico e na América Latina e Central. Devemos configurar nossas políticas e nossas forças de tal maneira que elas dissuadam ou permitam vencer rapidamente semelhantes ameaças regionais futuras11“.
Alguns meses mais tarde, Wolfowitz e I. Lewis Libby, respectivamente vice-ministro da Defesa e assessor de Cheney para as questões de segurança no atual governo, elaboravam o Defense Policy Guidance 1992-1994 (DPG), documento do Pentágono que preconizava “impedir qualquer potência hostil de dominar regiões cujos recursos lhe permitissem aceder à situação de grande potência”, “desestimular os países industrializados avançados a fazerem qualquer tentativa visando a desafiar nossa liderança ou subverter a ordem política e econômica estabelecida” e “evitar a futura emergência de qualquer concorrente global12“.
Convertendo, após o 11 de setembro de 2001, a luta contra as redes terroristas multinacionais em guerra contra “o eixo do mal”, o atual governo Bush nada mais fez do que dar prosseguimento a um projeto político e estratégico definido na década de 70 e depois readaptado, no início da década de 90, para o pós-guerra fria. A doutrina de guerra preventiva oficializada em setembro de 2002 marca, evidentemente, uma ruptura com a doutrina de distensão e de dissuasão constantemente adotada pelo Estado norte-americano. Mas se insere na continuidade dessa vontade persistente da direita radical, nacionalista e neoconservadora norte-americana, de estabelecer seu poder por meio da guerra. Como disse William Kristol, ideólogo neoconservador e fundador do Project for a New American Century (“Projeto para um novo século norte-americano”), “é sempre um bom sinal quando o povo norte-americano está pronto para entrar em guerra13“.
(Trad.: Regina Salgado Campos)
1 – Ler, de Joe Klein, “How Israel is wrapped up in Iraq”, revista Time, 10 de fevereiro de 2003, p. 49, sobre o “fantasma” estratégico neoconservador para reestruturar o Oriente Médio.
2 – Ler, de Anatol Lieven, “The Push for War”, London Review of Books, vol. 24, nº 19, 3 de outubro de 2002.
3 – Definida em Defense Planning Guidance 1992-1994, DOD, Washington, 1992.
4 – George Meany, citado no livro Diplomacy, de Henry Kissinger, ed. Simon & Schuster, Nova York, 1994, p. 755.
5 – Entrevista de Perle em 13 de março de 1997. Ver o site: www.gwu.edu/ nsarchiv/coldwar/interviews/episode-19/perle1.html
6 – As citações e as referências sobre o “Team B” são tiradas de Anne H. Cahn, “Team B: The Trillion Dollar Experiment”, Bulletin of Atomic Scientists 49, nº 3, (1993) e John Prados, “Team B: The Trillion Dollar Experiment, Part II”, Bulletin of Atomic Scientists 49, nº 3, (1993).
7 – Ler, de Frances Fitzgerald, Reagan, Star Wars, and the End of the Cold War, ed. Simon & Schuster, Nova York, 2000, pp. 473-476.
8 – J. Prados, op. Cit.
9 – Ler, de Benjamin B. Fischer, A Cold War Conundrum, análise acessível ao público pelo Center for the Study of Intelligence, CIA, Washington D. C., 1997. Segundo Fischer, as iniciativas norte-americanas foram interpretadas em Moscou como preparativos de guerra.
10 – Para todo o parágrafo, ler, de Grant Havers e Mark Wexler, “Is US Neo-Conservatism Dead?”, The Quartely Journal of Ideology, vol. 24 (2001), nº 3-4, ed. Louisiana State University, 2000.
11 – Declaração perante a Comissão de Defesa do Senado, em 21 de fevereiro de