Damares Alves e a performance da masculinidade na reunião ministerial
Não é produtivo tratar as declarações dessas mulheres sob a perspectiva da suposta loucura feminina por dois motivos: em primeiro lugar, porque corrobora com uma visão machista e misógina sobre o comportamento feminino, historicamente associado à histeria e à loucura. Em segundo lugar, porque esse tipo de associação mascara um elemento que nada tem a ver com gênero: a perversidade das políticas conduzidas pelo governo Bolsonaro
A divulgação do vídeo da reunião ministerial de 22 de abril realizada por meio da autorização do ministro do Supremo Tribunal Federal Celso de Mello provocou inúmeras sensações aos espectadores atentos aos desdobramentos da crise instalada no governo Bolsonaro. A sexta-feira de 22 de maio foi agitada pelas falas polêmicas de alguns dos ministros, cuja reprodução na íntegra está disponível nas plataformas virtuais dos principais veículos jornalísticos.
Dentre as inúmeras sensações que a famigerada reunião nos provocou, poderíamos citar desconforto, constrangimento, náusea, indignação ou raiva, mas surpresa definitivamente não é um elemento que deveria constar nesta lista de sentimentos adversos. Os diagnósticos, reivindicações e proposições, urrados de forma muito mal educada – diga-se de passagem – por tais ministros não surpreendem porque nos oferecem apenas uma constatação do óbvio: que o governo Bolsonaro é racista, homofóbico e radicalmente contrário à defesa e garantia dos direitos das populações mais vulneráveis. É um exemplo didático e explícito do que alguns intelectuais brasileiros têm classificado como o casamento entre o conservadorismo e o liberalismo.
Gostaria de me deter, nas próximas linhas, sobre algumas das considerações enunciadas pela ministra da mulher, família e direitos humanos, a advogada e pastora evangélica Damares Alves, e sugerir uma interpretação de sua posição estratégica no governo Bolsonaro a partir de uma perspectiva de gênero, considerando que Alves é uma das únicas mulheres a ocuparem cargos de chefia no Executivo. Na reunião, Alves chamou a atenção para os “valores” de sua pasta e do governo como um todo, e afirmou que o Ministério da Saúde está repleto de cargos ocupados por feministas empenhadas em “liberar geral” – isto é, traduzindo as palavras da ministra, comprometidas com a luta pela descriminalização do aborto no país. Damares Alves lembrou que, na sua perspectiva, este é um governo “pró-vida” e “pró-família”, e que não pode aceitar posições como essa.
Política indigenista
No que se refere à política indigenista – pauta que a ministra se reivindica especialista, ainda que as suas ações sejam incondizentes com o preconizado no movimento indígena – Damares Alves afirmou que a morte massiva de pessoas indígenas por covid-19 é uma espécie de alucinação da esquerda e que não se efetivará no governo Bolsonaro. É emblemático observar que, enquanto antropólogos e especialistas têm falado em genocídio dos povos indígenas em meio à pandemia de coronavírus, Alves negue o cenário trágico e de extrema vulnerabilidade a que estão submetidas as populações tradicionais há, pelo menos, 500 anos.
O boletim “Quarentena indígena”, divulgado pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), dá conta de 1350 indígenas infectados por covid-19, 147 mortes e 71 povos afetados até o dia 27 de maio. O número de óbitos no Brasil ultrapassa o de pelo menos seis países da América do Sul – Uruguai, Paraguai, Guiana, Suriname, Guiana francesa e Venezuela, segundo a Apib. É importante mencionar a participação dessas entidades regionais e lideranças locais na sistematização dos dados de infecção e óbito, uma vez que a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) não contabiliza os casos envolvendo indígenas em contexto urbano. Apesar disso, o ministério de Damares segue negando o contexto denunciado pelas lideranças indígenas.

Mulher
Os impropérios enunciados por Damares Alves são, muitas vezes, associados à sua condição de mulher. Nas populares aparições públicas recentes de Alves como ministra – é preciso lembrar, contudo, que ela está na vida política há pelo menos vinte anos – não foram raras as vezes em que ela foi taxada de louca, disparatada ou escandalosa em decorrência de seus discursos políticos ou entrevistas concedidas à imprensa. Também é possível observar a associação entre a loucura e o gênero feminino na política no caso da ex-secretária de cultura Regina Duarte, frequentemente chamada de louca em detrimento de suas declarações conservadoras, de apoio à ditadura e de negligência com o setor da cultura em meio à pandemia de coronavírus.
Não é produtivo tratar as declarações dessas mulheres sob a perspectiva da suposta loucura feminina por dois motivos: em primeiro lugar, porque corrobora com uma visão machista e misógina sobre o comportamento feminino, historicamente associado à histeria e à loucura. Em segundo lugar, porque esse tipo de associação mascara um elemento que nada tem a ver com gênero: a perversidade das políticas conduzidas pelo governo Bolsonaro. Em uma publicação recente nas redes sociais, a antropóloga Débora Diniz chamou a atuação de Damares Alves na reunião ministerial de “espetáculo da masculinidade”, cujo sintoma é “contagioso”. Em meio a uma reunião repleta de homens brancos e conservadores que afirmam categoricamente odiar o termo “povos indígenas” e defender o armamento da população, Damares Alves performou o lado mais pitoresco e grotesco da masculinidade: “engrossou a voz e portou-se de bruta, pois autoritária sempre foi”, como bem observou Diniz. É preciso estarmos atentos a essas perversidades, e não nos deixarmos enganar pelo papel estratégico que desempenha cada um dos atores que compõem o atual governo.
Ana Carolina Saviolo Moreira é cientista social e estudante do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), cuja pesquisa desenvolvida na linha de Etnologias Indígenas realiza um mapeamento dos atores e pressupostos que orientam a chamada bandeira da “luta contra o infanticídio indígena”. É membro do Laboratório de Estudos de Política e Criminologia (PolCrim) e do Centro de Pesquisa em Etnologia Indígena (Cpei).