De 2013 à greve dos caminhoneiros: entre a fagulha e a pradaria
As Jornadas de 2013, a greve dos caminhoneiros, assim como diferentes levantes pelo mundo são criticáveis por uma série de motivos, especialmente pelos desdobramentos destes movimentos. Contudo, não podem ser pensados separadamente da crise vivida pelo capitalismo em seu ataque neoliberal, com graves consequências para as populações. Deste modo, torna-se essencial compreender as condições geradoras destes processos

Há algumas semelhanças entre as Jornadas de Junho de 2013 e a atual greve dos caminhoneiros, em que pesem as diferenças de classe, geracionais e geográficas. Estas aproximações revelam tanto as potências dos dois movimentos, como seus respectivos riscos políticos.
Em primeiro lugar, ambos momentos partiram de pautas que envolvem o transporte, a mobilidade e a circulação: elementos estruturais de nossa sociedade. Lá, como aqui, houve uma mobilização via redes sociais (antes, Facebook, agora, WhatsApp), uma organização mais horizontalizada (as lideranças dos caminhoneiros não são nacionais, mas por bloqueios locais)[1], além de uma relação tensa com as entidades representativas institucionais. Tanto em 2013 como agora, é preciso lembrar também, observa-se uma visível disputa interna travada por grupos que vão de uma difusa reivindicação anti-corrupção (elemento moral predominante na opinião pública, aparentemente) até bandeiras claramente de extrema-direita no quadro atual, como intervenção militar.
Estas aproximações são importantes para compreender quem estes sujeitos sociais diante deste mundo em crise e quais são as suas expressões políticas. É inevitável voltar à tão falada crise de representatividade. A crise criada pelo neoliberalismo leva a restrições de direitos sociais, desemprego, pobreza e aumentos exorbitantes dos combustíveis impostos pelo mercado financeiro, como vemos atualmente. Por outro lado, é comum também uma crescente insatisfação com a representação institucional, seja ela na realpolitik (executivo e legislativo), como em entidades de representação da sociedade civil (partidos, sindicatos, associações…). A revolta com a atual situação social e econômica não encontra expressão política mais palpável, ora se ancorando em salvadores vestindo a fantasia da antipolítica, ora se fragmentando em diferentes gritos neste complexo processo de disputas de visão de mundo.
Redes Sociais
A partir disso, pode-se dizer que um elo forte entre os dois momentos são os modos contemporâneos de sociabilidade presentes nas redes sociais, que permitiram estreitar laços entre a indignação do momento (preço da passagem, 2013, preço da gasolina, 2018) e a necessidade de dialogar, se organizar e agir. No caso dos caminhoneiros, às redes virtuais se somaram as redes “offline” formadas no deslocamento dos motoristas por diferentes pontos do país, como lembrou a reportagem de Amanda Rossi, na BBC[2]. Em suma: no vácuo deixado por instituições mais tradicionalmente representativas, as redes sociais cumpriram o papel de mediação entre sujeitos com uma demanda comum.
Mas existe o outro lado da história, que foge ao Eldorado profetizado pelos utopistas da internet e da cibernética. O cartunista Ricardo Coimbra comentou em seu Facebook: “Eu acho maravilhoso como a história morde a bunda dos jovens. Acharam que a tecnologia seria um lance emancipatório para as grandes causas, primavera árabe, pipipopo, mas acabou mesmo é permitindo que o país seja governado por um grupo de zap de idoso.”[3]
A alardeada democratização dos meios se esqueceu que todas estas ferramentas ainda dependem de pessoas reais, com seus valores de mundo. Portanto, no mesmo lugar onde chovem fake news, mensagens de ódio, também se organiza um setor chave para o tecido social, que consegue parar o país. Isso tudo numa rede social com ligações muito mais familiares e de “iguais” (mais “privadas” e menos “públicas”), que estende (e simula) relações interpessoais do cotidiano, como vêm mostrando os levantamentos do Monitor do Debate Político no Meio Digital[4]. Assim, neste “balaio de gato” também são produzidos paradoxos, como defender bloqueios e greves se identificando com a direita anti-greve (xingando inclusive de esquerdistas um militar de alta patente, uma jornalista conservadora e um militante de direita, por discordarem do movimento). Ou, de forma semelhante, manifestando a contradição de muitos caminhoneiros ao apoiar um candidato claramente entreguista, pró-mercado financeiro e anti-trabalhista (logo, favorável à política que levou aos aumentos), como Bolsonaro.

A faísca e a pradaria
As Jornadas de 2013, a greve dos caminhoneiros, assim como diferentes levantes pelo mundo são criticáveis por uma série de motivos, especialmente pelos desdobramentos destes movimentos. Contudo, não podem ser pensados separadamente da crise vivida pelo capitalismo em seu ataque neoliberal, com graves consequências para as populações. Deste modo, torna-se essencial compreender as condições geradoras destes processos. Então, poderíamos dizer que viria à tona, mais cedo ou mais tarde, com ou sem a organização da esquerda, a revolta com o preço dos combustíveis (atacando diretamente as condições de vida de uma categoria estratégica)?
No artigo “Quando a cidade vai às ruas” (na coletânea da Boitempo “Cidades Rebeldes”) Carlos Vainer[5] disserta: “Uma fagulha pode incendiar uma pradaria, dizia Mao Tse-Tung. Ora, qualquer esforço de análise que pretenda examinar os processos em curso desde uma perspectiva histórica deve dirigir-se seu olhar não para a fagulha que deflagra o incêndio, mas para as condições da pradaria, que estas sim, explicam por que o fogo pode se propagar.”
Diante disso tudo, a esquerda hoje tem dois caminhos: o primeiro é perder mais uma vez o bonde da história e ficar no lugar apenas da desqualificação imediata. A segunda opção é tentar compreender como funcionam hoje as dinâmicas sociais, culturais e relacionais da sociedade, repensando, a partir disso, as instituições, lógicas e modos de agir do campo progressista, que afastam muitas vezes a possibilidade de diálogo com setores majoritários. Em outras palavras, disputar um necessário espaço político, entre gerações e grupos que já operam em outras lógicas comunicativas, em revoltas que são consequências, antes de tudo, de um precário quadro social e econômico. Desta forma, será possível fazer o necessário contraponto a este modelo neoliberal destruidor, que apenas vive para comprovar o próprio fracasso, construindo, por outro lado, um projeto popular e soberano para superarmos este processo golpista.*
Gabriel Barcelos é jornalista sindical, doutor em Multimeios pela Unicamp e autor do blog CineMovimento (cinemovimento.wordpress.com)
*Agradecimento às conversas com Maisa Calazans
[1]Reportagem “Faltou combinar no WhatsApp”, de Josette Goulart, para a Revista Piauí http://piaui.folha.uol.com.br/falta-combinar-no-whatsapp/
[2]Reportagem “Como o WhatsApp mobilizou caminhoneiros, driblou governo e pode impactar eleições”, de Amanda Rossi, na BBC, em http://www.bbc.com/portuguese/brasil-44325458
[3] Post de Ricardo Coimbra-https://www.facebook.com/ricardo.coimbra.129/posts/1845076662198709?hc_location=ufi
[4] Reportagem “Pesquisa inédita identifica grupos de família como principal vetor de notícias falsas no WhatsApp”, de Juliana Gragnani, da BBC em http://www.bbc.com/portuguese/brasil-43797257
[5] Artigo “Quando a cidade vai às ruas”, de Carlos Vainer (na coletânea da Boitempo “Cidades Rebeldes: passe livre e as manifestações que tomaram o Brasil”).