De enchentes, margens e gentes
Escrever, hoje, é ir além da função poética abstrata, mas também expandir o mundo de quem lê e levá-lo além das limitações de nossas pequenas bolhas de classe média letrada
Arquipélago é nome de bairro, um dos maiores em extensão de Porto Alegre, formado por 16 ilhas integrantes do Delta do Jacuí, um enorme território costurado por pântanos, charcos e canais. Essa é a geografia de Falso Lago, meu mais recente romance, publicado em 2023. O delta se forma a partir do rio Jacuí, que corta o estado de oeste a leste, e pelos rios Caí, Sinos e Gravataí, cujas águas deságuam no Guaíba, a massa de água que não é rio, é lago falso. Mas em meio a tanta água há gente. E há um território de grande expressão para a formação da cidade. Uma cidade que insiste virar as costas para sua gente submersa, mas que não pôde fugir da fúria da sua água.
De ocupações guaranis a território quilombola, as ilhas foram, durante o início do século XX, o celeiro da cidade ao abastecer seu centro de prédios neoclássicos recém-construídos com seus produtos, principalmente capim para cavalos, hortaliças e peixes. Até a década de 1950, tinham como principal atividade a pesca. É, portanto, chão de gente trabalhadora. Antes das grandes enchentes de maio, que retrataram seus moradores sendo resgatados de telhados de zinco, o bairro ganhou visibilidade enquanto se contava a história de um tomate. “O tomate, plantado pelo Senhor Suzuki, trocado por dinheiro com o supermercado, trocado pelo dinheiro que Dona Anete trocou por perfumes extraído das flores, recusado para o molho do porco, jogado no lixo e recusado pelos porcos como alimento, está agora disponível para os seres humanos da Ilha da Flores.”
O que a obra Ilha das Flores não apresentava aos seus milhões de espectadores no sábado, após o almoço, quando em rede nacional víamos crianças e porcos na maior expressão da miséria, é que essa é uma obra, assim como Falso Lago, de ficção. Algumas das imagens foram gravadas na Ilha Grande dos Marinheiros, território em que se passa o romance. O que o brilhante cineasta não previa era marcar toda uma população ribeirinha com o preconceito da cidade em relação às suas ilhas e seus habitantes, em que, meu deus, deixavam crianças disputar alimento com os porcos. Não que o documentário fosse de total inventivo, assim como meu livro, pois a miséria salta aos olhos. Contudo, sem a problematização e contextualização histórica necessária, há 35 anos a cidade tem nojo, repulsa das pessoas que moram do lado de lá da ponte a atravessar seu Guaíba.
Em meio às pesquisas para a escrita de Falso Lago, em 2022, por muitas vezes, fui solicitada a escrever sobre as pessoas. “Que vejam que aqui tem gente” me disse uma moradora certa vez. “Gente que trabalha, que faxina, que junta material reciclável para dar de comer aos filhos. Diga para a cidade que não temos porcos, que fazemos do lixo de vocês nosso sustento.” Essa foi uma das minhas grandes intenções na escrita do livro. Mostrar as gentes do Arquipélago, não somente quando as águas atingem suas casas, mas mostrar que essas pessoas vão além daquilo que o restante da cidade guarda em seu imaginário, para além da moldura bonita que o verde das ilhas preservadas por lei dá aos tantos registros de pôr do sol no fim de tarde.
Por ser um território alagadiço em meio ao desembocamento de cinco rios, não é incomum que haja alagamentos nas ilhas de Porto Alegre. Contudo, nada como o ocorrido em maio de 2024. Falso Lago, um livro publicado em 2023, tem, já em suas primeiras páginas, a problematização do abandono do poder público às pessoas que perdem tudo a cada vez que a água vem, o que tem se mostrado mais corriqueiro em meio aos efeitos do aquecimento global – ainda que muitos neguem a existência do “fenômeno”.
Quando menciono esse esquecimento, não apelo para que esses moradores sejam retirados do local, em uma medida simplista e higienista, sendo levados a outros cantos da cidade sem suporte para que possam garantir o sustento de suas famílias. Sabe-se do grande valor dessas terras, muitas são as mansões que, aos poucos, tomam contam das beiradas das ilhas com suas grandes marinas particulares. O que faço é, na verdade, aquilo que acredito ser o grande papel da Literatura Contemporânea para além da fruição e da forma bonita como as palavras se ajeitam no papel. Escrever, hoje, é ir além da função poética abstrata, mas também expandir o mundo de quem lê e levá-lo além das limitações de nossas pequenas bolhas de classe média letrada. Os livros são essenciais nesse sentido.
Ao apresentar a realidade de grupos marginalizados, a Literatura desempenha um papel vital na elaboração de uma consciência social mais aprofundada e empática. É por meio da narrativa, da ficção, que quem escreve explora a vida cotidiana das pessoas que habitam as sombras da cidade, apresentando suas lutas e suas resistências. Assim, o livro se torna uma moldura espelhada da sociedade, movendo o leitor ao confronto e à reflexão sobre as tantas desigualdades. Ao apresentar histórias de vida e as condições extremas enfrentadas pelos cidadãos, a literatura contribui para um diálogo mais amplo e inclusivo, que pode, eventualmente, quando explorado de uma forma crítica, levar a uma maior compreensão e mobilização social.
O escritor Érico Veríssimo, grande filho deste estado que tem um rio grande já atravessado em seu nome, tem, como encerramento de sua majestosa obra O Tempo e o Vento, um último tomo, O Arquipélago. Esse nada mais é do que um profundo afastamento de seus personagens com suas origens e a falta de comunicação e entendimento entre uma família, gerando um silêncio profundo. Aqui, nessa cidade, pode-se produzir uma pequena analogia literária a partir da obra com seu bairro esquecido pelo silêncio do poder público, carente de soluções e estigmatizado por seus cidadãos.
Pediu só que tirasse uma foto do celular. Dá pra revelar, tia? Pra gente colocar no lado da cama.
– Ah, Kauã, mas isso demora, tem que revelar em Porto Alegre.
− Mas, tia, aqui é Porto Alegre.
Falso Lago, p. 88
Carolina Panta nasceu em Porto Alegre e é professora de Língua Portuguesa e Literatura, formada em Letras pela UFRGS. É editora da revista literária La Loba. Participa como escritora convidada da coletânea de contos escritos por mulheres Quebra-Ventres (Peripécia, 2023). Publicou os romances Dois Nós (Metamorfose, 2019), Olivetti Lettera 32 (Zouk, 2021) e Falso Lago (2023).