De Hiroshima às Torres Gêmeas
Uma das perguntas que mais angustiaram os norte-americanos durante o último ano foi: “Por que nos odeiam tanto?” Talvez pudessem refletir sobre a manifestação cega e brutal de violência gratuita que, há 57 anos, arrasou um país – o Japão – que já estava derrotadoJohn Berger
Uma vez que o número de vítimas civis inocentes, mortas por efeito “colateral” no Afeganistão pelos bombardeios norte-americanos, é atualmente igual ao número das que foram mortas no ataque contra as Torres Gêmeas, talvez seja possível retomar os acontecimentos a partir de uma perspectiva mais ampla, mas nunca menos trágica, e fazer uma nova pergunta: matar deliberadamente significa cometer um mal mais grave ou mais repreensível do que matar cega e sistematicamente? (Digo “sistematicamente” porque os Estados Unidos começaram a colocar em prática essa estratégia armada a partir da guerra do Golfo.) Não sei a resposta para essa pergunta. Talvez in loco, entre a grande quantidade de bombas lançadas pelos B-52 ou na fumaça sufocante da Church Street em Manhattan, qualquer comparação ética seja indecente.
Quando no dia 11 de setembro de 2001 assisti aos vídeos, pela televisão, eles logo me lembraram o dia 6 de agosto de 1945. De fato, foi naquela noite, que nós, europeus, tivemos notícia do bombardeio de Hiroshima.
Início e fim de uma era
Matar deliberadamente significaria cometer um mal mais grave – ou mais repreensível – do que matar cega e sistematicamente?
Os dois acontecimentos sugerem semelhanças imediatas, entre elas uma bola de fogo que desce inesperadamente de um céu sem nuvens, dois ataques cronometrados para coincidir com a hora em que os civis das cidades-alvos estão a caminho do trabalho, em que as lojas abrem, em que as crianças estão na escola fazendo suas lições. Uma idêntica redução a cinzas, além de corpos lançados pelos ares e despedaçados. Uma mesma incredulidade, um mesmo caos, provocados por uma nova arma de destruição empregada pela primeira vez – a bomba atômica há 60 anos, um avião de carreira no último outono. Por toda parte, no epicentro, sobre tudo e todos, um espesso lençol de poeira.
As diferenças de escala e de contexto obviamente são enormes. Em Manhattan, a poeira não foi radioativa. Em 1945, havia três anos que os Estados Unidos travavam uma verdadeira guerra contra o Japão. Isso não impede que os dois ataques tenham sido concebidos para servir de aviso.
Ao observar um ou outro, soube-se que o mundo jamais seria o mesmo: em toda parte, os riscos inerentes à vida sofreram uma metamorfose na manhã de um novo dia e sem nuvens.
As bombas lançadas sobre Hiroshima e Nagasaki anunciaram que os Estados Unidos tornavam-se, a partir de então, a suprema potência militar do mundo. O ataque em 11 de setembro anunciou que essa potência não mais desfruta de uma invulnerabilidade garantida em seu próprio solo. Os dois acontecimentos marcam o início e o fim de um determinado período histórico.
Patriotismo intelectual
Quando, no dia 11 de setembro de 2001, assisti pela televisão aos atentados contra as Torres Gêmeas, eles logo me lembraram o dia 6 de agosto de 1945
Os comentários e as análises mais impressionantes, e também as mais angustiadas, da reação do presidente George W. Bush no dia 11 de setembro – o que ele denominou “Guerra contra o terrorismo”, batizada inicialmente de “Justiça irrestrita” e rebatizada de “Liberdade duradoura” – foram expressas e escritas por cidadãos dos Estados Unidos. A acusação do antiamericanismo feita contra os que se opõem formalmente aos que de fato tomam as decisões em Washington é tão obtusa quanto a política que questionamos. Existem inúmeros cidadãos dos Estados Unidos que são antiamericanos e com os quais somos solidários. Existem também inúmeros cidadãos dos Estados Unidos que apóiam a política do presidente Bush, inclusive os sessenta intelectuais que recentemente assinaram uma declaração procurando definir o que, de modo geral, seria uma guerra “justa” e porque, particularmente, a operação “Liberdade duradoura” no Afeganistão e a guerra contra o terrorismo são justificáveis1.
Eles desenvolvem o argumento de que uma guerra é “justa”, ou moralmente justificável, quando tem por objetivo defender os inocentes contra o mal. Citam Santo Agostinho. E acrescentam que uma guerra desse tipo deve, na medida do possível, respeitar a imunidade dos não-combatentes.
Ao ler inocentemente (mas é óbvio que não foi escrita de maneira espontânea nem sequer inocente) a declaração, seu texto faz pensar em uma reunião de especialistas pacientes e eruditos, falando em voz baixa, tendo à disposição uma enorme biblioteca (e, talvez, até uma piscina, entre cada sessão de trabalho) e todo o tempo para refletir calmamente, discutir suas restrições, para acabar conseguindo chegar a um acordo que resume sua avaliação da questão.
A exaltação da morte
As diferenças são enormes. Em Manhattan, a poeira não foi radioativa. Em 1945, havia três anos que os Estados Unidos travavam uma guerra contra o Japão
Imagina-se também que uma parte dessa reunião de especialistas se deu em uma espécie de um fabuloso hotel 6 estrelas (ao qual só se pode chegar de helicóptero), situado em um enorme parque, mas também rodeado de altas muralhas com guardas e guaritas de controle policial. Um lugar em que não pode haver o menor contato entre esses pensadores e a população local, um lugar sem encontros casuais. Acontece que o que realmente se passou na história – e o que se passa hoje do outro lado dos muros do hotel – não é considerado legítimo e, por isso, não é levado em conta. Ético para turistas de luxo, protegidos do mundo externo.
Voltemos ao verão de 1945. Sessenta e seis das maiores cidades do Japão já tinham sido destruídas pelo fogo provocado pelos bombardeios com napalm. Em Tóquio, um milhão de civis ficaram desabrigados e 100 mil pessoas morreram. Para retomar a expressão do general de divisão Curtis Lemay, chefe dessas operações de bombardeio incendiário, elas foram “grelhadas, fervidas e cozidas até a morte”. O filho do presidente Franklin Roosevelt, que era também seu confidente, declarou que os bombardeios deveriam continuar “até que tenhamos destruído cerca da metade da população civil japonesa”. No dia 18 de julho, o imperador do Japão telegrafou ao presidente Harry S. Truman, que sucedeu a Roosevelt, tornando a pedir a paz. Sua mensagem foi ignorada.
Arrogância, mentira e imbecilidade
As bombas de Hiroshima e Nagasaki anunciaram os EUA como suprema potência militar. O ataque de 11 de setembro anunciou o fim dessa invulnerabilidade
Poucos dias antes do bombardeio de Hiroshima, o vice-almirante Arthur Radford vangloriava-se: “O Japão vai acabar sendo apenas uma nação sem cidades – uma população de nômades.”
A bomba que explodiu sobre um hospital no centro da cidade matou de uma só vez 100 mil pessoas, 95% delas civis. Em seguida, outras 100 mil morreram lentamente, devido aos efeitos da irradiação.
O presidente Truman anunciou: “Há 16 horas, um avião americano lançou uma bomba sobre Hiroshima, importante base militar japonesa.”
Um mês depois, a primeira reportagem não censurada – graças ao corajoso jornalista australiano Wilfred Burchett – descrevia os sofrimentos indescritíveis que ele testemunhou ao visitar um hospital improvisado que fora instalado naquela cidade.
O general Leslie Groves, que na ocasião era diretor militar do Projeto Manhattan – que teve como missão planejar e produzir a bomba -, apressou-se em tranqüilizar os membros do Congresso, dizendo-lhes que as irradiações não provocavam “nenhum sofrimento excessivo” e que “na verdade, pelo que se diz, é uma maneira muito agradável de morrer”.
“Por que nos odeiam?”
O filho do presidente Franklin Roosevelt declarou que os bombardeios continuariam “até que tenhamos destruído cerca da metade da população civil japonesa”
Em 1946, a pesquisa sobre os bombardeios estratégicos efetuados pelos Estados Unidos concluiu que “o Japão se renderia mesmo que as bombas atômicas não tivessem sido lançadas”.
Descrever uma série de acontecimentos de maneira tão sucinta como faço, significa, certamente, uma simplificação exagerada. O Projeto Manhattan foi lançado em 1942, no momento em que Hitler triunfava e em que se corria o risco de ver pesquisadores alemães produzirem as primeiras armas atômicas. A decisão norte-americana de lançar duas bombas sobre o Japão, no momento em que não mais havia esse risco, deve ser avaliada no contexto das atrocidades cometidas pelas forças japonesas no Sudeste Asiático e o ataque de surpresa contra Pearl Harbour em dezembro de 1941. Comandantes norte-americanos e alguns cientistas que trabalhavam no Projeto Manhattan fizeram o que puderam para dissuadir Truman de tomar a decisão – com as conseqüências previsíveis – ou, pelo menos, para adiá-la.
No entanto, afinal de contas, depois de tudo feito, foi impossível comemorar a rendição incondicional do Japão no dia 14 de agosto – que, aliás, não o foi – como uma vitória durante muito tempo desejada. Em seu meio reinavam uma angústia e uma cegueira.
Essa história tem como objetivo mostrar até que ponto os sessenta pensadores norte-americanos, em seu fabuloso hotel 6 estrelas, estão alheios à realidade de sua própria história nacional. Tem também como objetivo lembrar que o período de supremacia militar norte-americana, que teve início em 1945, começou, para quem se situa fora da órbita norte-americana, por uma demonstração cega de poder distante, sem piedade e cheio de ignorância. Quando o presidente Bush se pergunta: “Por que nos odeiam?”, deveria meditar sobre esses fatos. Mas como o faria? Ele é um dos diretores do hotel 6 estrelas, de onde nunca sai.
(Trad.: Wanda Caldeira Brant)
1 – Ler a declaração
John Berger, romancista inglês, é também poeta, pintor e crítico de arte. Seu último livro lançado no Brasil é Aqui nos encontramos (Ed. Rocco, 2008).