Debandada norte-americana no Afeganistão
Curioso o acordo entre os talibãs e Washington, que ratifica a retirada das tropas norte-americanas sem praticamente nenhuma contrapartida. Já o governo central está paralisado. Nem o secretário de Estado, Mike Pompeo, em visita no dia 23 de março, conseguiu resolver a questão. Consequência: os Estados Unidos cortaram a ajuda de US$ 1 bilhão que davam ao país
Em 29 de fevereiro, Zalmay Khalilzad, dos Estados Unidos, e o mulá Abdul Ghani Baradar, do Talibã, finalmente assinaram em Doha o acordo que vinha sendo negociado desde setembro de 2018. Acordo de paz? Longe disso. O uso abusivo da palavra “paz” desde o início do processo distorceu a análise e criou falsas esperanças. Quando a assinatura do acordo foi anunciada, muitos afegãos pularam de alegria, até descobrir, no dia seguinte, que o Talibã mantinha os combates. Na realidade, nunca se tratou de negociar a paz1 – algo que seria impossível, uma vez que o governo afegão estava excluído das negociações –, mas de encontrar as condições para a retirada das forças norte-americanas, sem muita desonra e de maneira imperiosa, já que essa era uma promessa de campanha ruidosamente reafirmada por Donald Trump em dezembro de 2018. Desejava-se também que o Talibã, em troca da retirada, aceitasse quatro concessões: o estabelecimento do cessar-fogo, a negociação com o governo afegão, o compromisso de que não haverá incentivos a ataques contra os Estados Unidos a partir do solo afegão e garantias de segurança para a retirada gradual das tropas.
Embora Khalilzad, que inclusive é de origem afegã, não tenha poupado energia para isso, ele não conseguiu quase nada da delegação do Talibã desde a primeira rodada, em janeiro de 2019. Invertendo a ordem das coisas, o mulá Baradar sempre recusou o cessar-fogo antes da retirada e qualquer diálogo com um governo descrito como um “fantoche”; o Talibã concordava apenas em garantir a segurança da saída das tropas e em se comprometer a cortar todo o apoio a grupos terroristas. Obviamente, a declaração de dezembro de 2018 inverteu a relação de forças em detrimento de sua própria delegação, já que o presidente Trump exibia então o desejo de encerrar a questão antes de entrar em campanha para sua reeleição, em novembro deste ano.
Concessões bem pequenas
Nas ruas de Cabul, a (modesta) festa popular não durou muito. O Talibã continuou expressando seu sentimento de vitória. O cessar-fogo, que deveria ser um pré-requisito, foi substituído por uma curta semana de “redução da violência” antes da assinatura, enquanto o diálogo interno no Afeganistão nem começou a virar realidade. Os termos práticos do tratado mostram que as concessões feitas pelos Estados Unidos ocupam mais espaço no texto do que as feitas por seus adversários, que são frouxas e imprecisas. A proposta inicial de Trump era retirar rapidamente metade de suas tropas, e a outra metade em quatro ou cinco anos; as tropas dos outros membros da coalizão internacional – mais de 8 mil soldados – deveriam ficar o tempo necessário para garantir o treinamento do Exército afegão. Mas, no tratado final,2 os Estados Unidos prometeram retirar todos os militares, em catorze meses, bem como todos os civis não diplomatas, agentes privados de segurança, conselheiros, encarregados de treinamento etc., seguindo um cronograma apertado: 135 dias para evacuar cinco bases militares e reduzir os efetivos em um terço. Curiosamente, o acordo, assinado apenas pelos Estados Unidos, também obriga os outros países da coalizão a fazer o mesmo, e na mesma proporção. O restante das tropas deve partir dentro de nove meses e meio.
Os norte-americanos também se comprometeram – em nome do governo afegão, que não foi consultado – a libertar 5 mil prisioneiros do Talibã “antes de 10 de março”, bem como a eliminar, até 27 de agosto, a lista de sanções e a lista de membros do Talibã cuja cabeça está a prêmio. Até o momento, nada disso foi feito.
Em comparação com os restritivos compromissos assumidos pelos Estados Unidos, as concessões do Talibã parecem muito leves e muito vagas. Eles concordam em negociar com os “lados afegãos” (afhgan sides), mas o texto não especifica quais são os “lados”, pois o Talibã não reconhece o governo de Cabul. Quanto ao cessar-fogo, ele é apenas um item na agenda da dita negociação. Garantir a segurança da retirada é do seu interesse, pois está no cerne do que eles chamam de vitória.
Em compensação, o compromisso de romper com a Al-Qaeda é muito mais duvidoso, pois o número dois da direção executiva do Talibã não é outro senão Serajuddin Haqqani, filho de Jallaluddin Haqqani, ex-chefe da rede terrorista de mesmo nome. Ele faz o papel de interface da Al-Qaeda dentro dessa direção, assim como seu pai junto ao mulá Omar: este havia oferecido a Osama bin Laden a possibilidade de instalar sua primeira base, em 1986, em Djadi, um dos feudos Haqqani; depois permitiu o desenvolvimento da Al-Qaeda quando elementos vindos, entre outros, da Chechênia, Uzbequistão e Xinjiang (China) se instalaram em suas áreas de influência (Paktya, no Afeganistão, e Waziristão, no Paquistão). Mas provavelmente nada disso é sério aos olhos dos talibãs, apenas uma página da história que eles assumem. Durante as negociações de Doha e por meio de seu site oficial, Voice of Jihad,3 eles também afirmaram estar comprometidos com a luta contra o terrorismo, pois combatem incansavelmente o Estado Islâmico.
É tamanha a lacuna entre a realidade sem solução desse tratado e o entusiasmo da mídia que o acompanhou – manchetes competindo no tema “nunca o Afeganistão esteve tão perto da paz” – que a comunidade internacional e essa mesma mídia permaneceram em silêncio quando o Talibã retomou os combates, no dia 1º de março. O site norte-americano Long War Journal inventariou, entre 1º e 10 de março, 147 ataques em 27 das 35 províncias. Mas, em conformidade com o tratado, eles pouparam as forças estrangeiras, pois esse é seu único compromisso! Na versão do Voice of Jihad, em pachto, uma fatwa (pronunciamento religioso) lembra que “o Talibã continuará o jihad até o advento do Emirado Islâmico do Afeganistão”.4 Além disso, o presidente afegão, Ashraf Ghani, furioso por não ter sido consultado, inicialmente se recusou a libertar os 5 mil prisioneiros. Depois decidiu libertar alguns, mas a conta-gotas: 1.500, sendo cem por dia, a partir de 7 de março; depois 3.500, sendo quinhentos a cada duas semanas, após o início das negociações com as quais o Talibã se comprometeu. O Talibã recusa categoricamente a oferta, afirmando que não haverá negociação com o regime de Cabul antes da libertação de todos os prisioneiros.
Três semanas após a assinatura, os acordos de Doha permanecem presos mais uma vez em um impasse, de mesma natureza que aquele de 2014 – essas recorrências lançam cruamente luz sobre o mal que devora o Afeganistão. Antes, tratava-se da retirada de tropas da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), que deveria ser precedida por um “acordo de segurança bilateral” – situação mais ou menos comparável à de hoje para a retirada das Forças Armadas residuais. Isso ocorreu no meio de uma eleição presidencial particularmente caótica. O presidente que então deixava o poder, Hamid Karzai, não podia, de acordo com a Constituição, disputar um terceiro mandato, recusando-se a assinar o acordo, para não assumir a responsabilidade de seu sucessor. Mas o processo eleitoral durou oito meses, com uma disputa feroz entre Ashraf Ghani e Abdullah Abdullah. Oito longos meses durante os quais o Poder Executivo afegão esteve totalmente desagregado, privando os norte-americanos de qualquer interlocutor. No momento em que este artigo é redigido, a mesma briga se dá em torno das eleições de 28 de setembro de 2019, ocasionando uma nova desagregação do poder central. O negociador dos Estados Unidos, Khalilzad, luta para resolver a crise; os talibãs comemoram: eles não tinham interlocutores para as negociações que deveriam começar no dia 10 de março. Dez dias depois, o jogo continua parado.

Retirada sem glória
Como sempre, uma solução, mesmo que frágil, será encontrada, mas esses dois impasses expressam as duas fraturas que marcam o Afeganistão. A das áreas pachtos alimenta as insurreições das quais o Talibã se nutre;5 a disputa recorrente entre Ghani e Abdullah representa a fissura territorial: o norte não pachto do país é o domínio eleitoral de Abdullah, ex-companheiro do comandante Massoud, cujos apoiadores estão cansados do excessivo peso político pachto há mais de dois séculos, enquanto o feudo eleitoral de Ghani, embora exceda as clivagens étnicas, situa-se naturalmente na área tribal pachto, de onde é originária sua tribo Ahmadzai.
Essas são sutilezas da história e da antropologia política que, por si sós, explicam a resiliência insurrecional; os estrategistas norte-americanos quase não prestam atenção nelas, e Trump muito menos. Uma abordagem antropológica pela reconciliação da nação afegã, na falta de uma solução mágica, teria pelo menos atrapalhado o grande retorno do Talibã. Mas está feito: os acordos de Doha não são acordos de paz, eles apenas estabelecem a retirada inglória de um país exausto e marcam o retorno vigoroso daqueles que são os exércitos mais poderosos do mundo, os Estados Unidos à frente de uma coalizão de 38 países, que deveriam vencer até o fim.
*Georges Lefeuvre é antropólogo, ex-consultor da União Europeia no Paquistão e pesquisador associado do Institut de Relations Internationales et Stratégiques (Iris), França.
1 Ler “Les trois jours qui ont ébranlé le destin de l’Afghanistan” [Os três dias que abalaram o destino do Afeganistão], Le Monde Diplomatique, abr. 2019.
2 Disponível no site do governo dos Estados Unidos: “Agreement for Bringing Peace to Afghanistan” [Acordo para levar a paz ao Afeganistão], 29 fev. 2020. Disponível em: www.state.gov.
3 Disponível em: www.alemarahenglish.com.
4 Voice of America, Washington, 7 mar. 2020.
5 Ler “La frontière afghano-pakistanaise, source de guerre et clef de la paix” [A fronteira entre o Afeganistão e o Paquistão, fonte de guerra e chave para a paz], Le Monde Diplomatique, out. 2010.
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Confusão, mentira e incompetência
Em 9 de dezembro de 2019, o jornal The Washington Post revelou os “Afghanistan Papers”, milhares de páginas de entrevistas com altas autoridades norte-americanas que, interrogadas entre 2014 e 2018 pelo Escritório do Inspetor-Geral Especial para a Reconstrução do Afeganistão, revelam o lado oculto da guerra travada no país desde 2001
“Em termos de dotação orçamentária, o Congresso nos dava o que o governo pedisse. A ideia era que, se não gastássemos, o Governement Accountability Office [órgão de auditoria do Congresso dos Estados Unidos] ou outro comitê do Congresso iria nos impedir de obter mais fundos. Isso nos levou a gastar, gastar, gastar. […] Estávamos investindo em enormes projetos de infraestrutura, com o único objetivo de mostrar que poderíamos gastar o dinheiro alocado para nós, e construindo uma infraestrutura que os afegãos nunca poderiam manter, ou mesmo usar.”
Douglas Lute, conselheiro adjunto de Segurança Nacional para o Iraque e o Afeganistão, durante os mandatos dos presidentes George W. Bush e Barack Obama
“Quando fomos ao Afeganistão [em 2009], havia apenas um oficial da Força Internacional de Assistência e Segurança que sabia falar dari. Mas ele ficou lá por pouco tempo. A Força Aérea dos Estados Unidos o transferiu, em julho, para o Japão. Nós rimos, porque isso mostra a que ponto o sistema é louco. […] Estamos até hoje no Afeganistão, e me diga quantos militares, autoridades políticas ou diplomatas sabem falar dari ou pachto. É uma vergonha e é uma decisão política.”
Michael Flynn, ex-diretor-chefe do serviço de inteligência da Otan no Afeganistão
“Talvez nosso maior projeto, infeliz e acidentalmente, tenha sido o desenvolvimento da corrupção em massa. O fenômeno atingiu tais proporções que é incrivelmente difícil, se não impossível, contê-lo.”
Ryan Crocker, ex-embaixador dos Estados Unidos no Afeganistão (2009-2012)
“No final, o que ganhamos depois de gastar US$ 1 trilhão? Valeu a pena?”
Jeffrey Eggers, oficial que trabalhou sob as administrações Bush e Obama
“Não paramos de mentir para os norte-americanos.”
John F. Sopko, inspetor-geral Especial para a Reconstrução do Afeganistão