Deitar na chaise ou na esteira?
Bradar por uma psicanálise aqui de dentro, bem brasileira, mesmo, de verdade, perde de vista que, lá fora, não há uma psicanálise propriamente francesa, alemã ou até mesmo argentina
Talvez nunca antes na história deste país, tenha se debatido tanto e tão publicamente o que é e o que não é a psicanálise. Em parte, isso pode ser atribuído a uma gama de podcasters e youtubers interessados em fazer da psicanálise um tanto mais acessível, mas não só.
Mais interpelada pelos movimentos sociais que as demais abordagens da psicologia, sendo ela própria também uma antipsicologia, a psicanálise no Brasil se vê misturada à coisa pública, à teoria crítica e às conversas de bar.
Se ela se popularizou, nem por isso pode se afirmar tão fácil assim que a psicanálise é popular, porque daí já estamos falando de outra coisa. Dentre as mais recentes disputas travadas dentro e fora da teoria e da clínica psicanalíticas, discutir se a psicanálise é ou não colonialista tornou-se a favorita para derrubá-la ou reinventá-la.
Que fique claro aqui que esse não é o primeiro ataque. A psicanálise continua sendo acusada de machista, sexista, homofóbica, transfóbica, colonialista, elitista, pseudocientífica, e por aí vai. Este não é um artigo para defender o bom nome da psicanálise. Até porque muitas dessas críticas ajudaram a psicanálise a avançar, quando não feitas em caráter desqualificador ou por quem não está aberto a debater. A psicanálise é boba, feia e chata, e está em todo lugar. E está ouvindo, ouviram?
Dentre os protestos contra ela, acusá-la de europeia está muito na moda. Moda o quê, nacional, é claro. Então, sucede que daí os críticos ao eurocentrismo na psicanálise resolveram fazê-lo, em grande parte, por meio do levantamento de uma literatura comparada. Evocando diferentes figuras e formas de escuta que podem ser aproximadas às representações que fazemos da psicanálise e dos psicanalistas. Ou trazendo cosmovisões que tensionam a psicanálise, ainda que ela se nomeie como algo diferente disso. Mais próxima da ciência, mas ainda assim sem ser ciência de fato, ou seja, sem oferecer uma visão de mundo, a psicanálise não é nem ciência, nem religião, nem filosofia.
Isso não impede a crítica de que a psicanálise se veja atravessada por mitos e formas de organização hegemônicas seculares. Mesmo que a psicanálise se furte do trabalho de perceber como ela se debruça minimamente em visões de mundo que a antecedem.
A psicanálise está no mundo não para fornecer uma visão do mesmo, de sua origem e de seu futuro. Os que a acusam de eurocentrismo bem que poderiam se perguntar se uma psicanálise nacional é possível, até mesmo nos países da Europa.
Em vez de trazer conhecimentos de povos originários aqui como se estes fossem mais ou menos originais, como se contivessem alguma verdade mística, mítica, ancestral e anterior ao processo de contaminação que nos sujeitamos toda vez que nos misturamos com o outro, vale uma crítica no interior da psicanálise, entendendo que o dentro já é o fora, então não é tão purinho assim.
Eurocêntrica e carente de se basear em evidências, há quem tema que a psicanálise acabe por sumir do mapa. Afinal, parte da discussão em torno do eurocentrismo se concentra no que se entende por método, sujeito e objeto. Que a psicanálise partilhe de alguns conceitos, fazendo destes o avesso da ciência, outra coisa qualquer, não importa muito. A realidade psíquica é muito diferente da realidade material e não garante nenhum esquema de reprodutibilidade.
Dizer isso não significa defender uma psicanálise ensimesmada, alienada dos processos particulares que se dão no país e no idioma em que ela opera. Porém, questionar o que implica defender uma psicanálise brasileira, local, conciliada com a noção abstrata que se tem de “povo”. Um povo que está a toda parte, mas que falta, um povo como Outro.
Afinal, a proposta ufanista, ainda que com ares de modernismo contraventor, nada mais é que o complemento distorcido daquilo que possuímos de mais conservador: o Estado. Ainda sem entrar no mérito de como isso seria em um governo mais alinhado à esquerda, todo projeto nacional, mesmo o de recuperação daquilo que fora violentamente recalcado, é um projeto moral, unificador, e de fortalecimento de nossas fronteiras.
A psicanálise opera de outra forma. Para além dos confins do Eu, entendendo as formas identitárias que vira e mexe surgem para fornecer imagens e contornos para as muitas corporeidades que se deitam, ou não, nas chaise e esteira, não há por que recrudescer a camada fina, porosa e permeável que separa o Eu do Outro.
E isso não é à toa. Bradar por uma psicanálise aqui de dentro, bem brasileira, mesmo, de verdade, perde de vista que, lá fora, não há uma psicanálise propriamente francesa, alemã ou até mesmo argentina. O dentro é o fora, assim como o Eu é o Outro. Uma proposta totalmente diferente das tentativas de revisitar a psicanálise é pensar numa psicanálise internacionalizada.
Ou seja, no nosso processo constante de descolonização do pensamento e das práticas, talvez nos caiba operar uma crítica ao eurocentrismo a partir da periferia. Procurar entender como isso se deu e se dá, dentro e fora da psicanálise, desvelando em que momentos esta pode ter se seduzido, e até mesmo se cegado com as luzes, pelas noções de indivíduo, cidadão e República.
Afinal, a forma como o projeto ideológico francês espalhou nos continentes diz também de um instrumento de colonização. E nisso a psicanálise não só não pode fazer parte, como tem o dever de promover outra coisa: uma cisão no entendimento de sujeito que não mais o interpele como autêntico, único e autônomo. Fora da coerência exigida pela lógica contratual, podendo dizer de si a partir de nomes que nada tenham a ver com o ideal europeu ou brasileiro.
É Machado de Assis quem nos ensina justamente como realizar uma crítica no interior da gramática que nos vemos inseridos ao zombar, de seus personagens e de seus leitores, sobre como ideias fora de lugar foram importadas para solo nacional, sem dizer que elas são mais ou menos verdadeiras e cômicas aqui do que acolá.
A psicanálise no Brasil, ainda que profundamente referenciada à sua origem, a Europa, não é mais ou menos verdadeira que a psicanálise europeia. No entanto, a psicanálise no Brasil goza de um privilégio epistêmico, e que pode ser realizado no interior da psicanálise, e até mesmo misturado com conteúdos e teorias “de fora”, de realizar uma crítica ao centro a partir do de fora. É preciso fazer da geografia uma questão topológica.
Não se trata de acusar onde, como e quando a psicanálise é ou foi eurocêntrica, nem de enumerar as muitas outras formas de realizar essa crítica, mas de superar qualquer paixão nacional, desmistificando o fato de que não há nenhuma essência por detrás da paródia que performamos. Nem a Europa existe fora da nossa imaginação.
Deitar na chaise ou na esteira? Não importa, deitar. Falar até o Eu e o Outro perderem e inventarem infinitamente novas fronteiras, menos segregadas.
Maíra Moreira é psicanalista, doutora em Psicologia pela PUC Minas, e autora dos livros Fins do Sexo: como fazer política sem identidade (Autonomia Literária, 2022) e O feminismo é feminino? A inexistência da Mulher e a subversão da identidade (Scriptum, 2021).