Democracia ambiental ameaçada
Forças expressivas do agronegócio vêm se contrapondo à efetivação constitucional do direito ao ambiente saudável, que impõe ao poder público “exigir, na forma da lei, para instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente, estudo prévio de impacto ambiental, a que se dará publicidade”
O Senado produzirá retrocessos nos princípios democráticos do licenciamento ambiental? Permitirá recuos na proteção do meio ambiente e da saúde pública?
Quase incompreensível, mas estes são os riscos do PL 2.159/2021, a Lei Geral do Licenciamento Ambiental, resultado de sucessivas tentativas de abrandar, ao longo das últimas duas décadas, o licenciamento ambiental – que é o maior instrumento democrático instituído pela Política Nacional de Meio Ambiente (PNMA) e recepcionado pela Constituição.
O licenciamento ambiental é um instrumento de gestão de caráter prévio, que permite avaliar impactos de empreendimentos antes que estes venham a ocorrer. A prevenção é sua essência e está umbilicalmente associada ao direito democrático da participação social.
As comunidades têm direito de tomar conhecimento prévio sobre possíveis alterações nocivas em suas vidas e em seu ambiente. É seu direito constitucional manifestar, recusar e/ou aportar contribuições sobre medidas necessárias à sua proteção, sugerindo mitigações para possíveis impactos, contribuindo na melhoria de projetos da iniciativa privada ou do poder público.
O licenciamento ambiental traz, em essência, o direito à informação e à participação social, que deve ser direta, plena. É o grande instrumento democrático para a proteção do meio ambiente no Brasil. Por causa da sua importância, legislar sobre essa matéria só fará sentido se for para aprimorá-la, tornando-a mais efetiva, eficiente e democrática.
O licenciamento é uma necessidade imperiosa. Vivemos na era pós-industrial. Repleta de desafios, a realidade cotidiana é impactada por efeitos sinérgicos e cumulativos de múltiplos impactos que plasmam a realidade do Antropoceno. Combater os efeitos adversos nesse contexto exige que a sociedade tenha acesso à informação, de forma a garantir decisões bem-informadas sobre os novos projetos e políticas públicas.
A qualidade do meio ambiente diminuiu sensivelmente ao longo dos últimos cinquenta anos, desde a Conferência de Estocolmo em 1972, quando a humanidade instituiu de forma global os princípios da sustentabilidade.
É uma era marcada pela metropolização. Cerca de 85% da população vivem em cidades. As maiores costumam estar mergulhadas em saturações de ozônio e material particulado. Metade das águas do Brasil já é imprópria para consumo, com o restante no limiar de uma poluição invisível decorrente do uso de agroquímicos e fármacos em grande escala.

Combater a poluição da carga difusa decorrente da concentração de atividades humanas é um desafio de alto custo, senão impossível. O que resta de boa qualidade ambiental revestiu-se dos efeitos da raridade, portanto de mais-valia.
Nesse cenário de limites rompidos ou em rompimento, somam-se desafios de crises globais que caracterizam o Antropoceno: mudanças climáticas, acidificação dos oceanos, desertificação, perda de florestas e de biodiversidade.
O cenário de comorbidades ambientais exige que a Política Nacional de Meio Ambiente seja restaurativa, de modo a proporcionar a recomposição de boas e saudáveis condições. É nesse contexto que se reveste da maior relevância a eficácia do licenciamento ambiental, como garantia prévia de antever e balizar maior agravamento das condições necessárias ao meio ambiente equilibrado e a saudável qualidade de vida.
As várias fases da tramitação do PL 2.159/2021, desde sua tramitação na Câmara dos Deputados, levaram o Instituto Brasileiro de Proteção Ambiental (Proam) a emitir pareceres, comentários e notas técnicas apontando lacunas, distorções e o distanciamento dos princípios constitucionais da PNMA.
A avaliação do contexto político atual evidencia conflitos de interesses cada vez mais intensos, protagonizados por setores econômicos articulados dentro do Congresso. Forças expressivas do agronegócio vêm se contrapondo à efetivação constitucional do direito ao ambiente saudável, que impõe ao poder público “exigir, na forma da lei, para instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente, estudo prévio de impacto ambiental, a que se dará publicidade” (art. 225, § 1º, IV).
Influenciados pelos interesses econômicos e na contramão do interesse público, os abrandamentos trazidos pelo PL 2.159/2021 são muitos. A proposta desvia-se do seu foco prioritário ao mascarar a complexidade do tema, que é sua eficácia, essência do instrumento de licenciamento. Por exemplo, propõe o autolicenciamento, por meio do preenchimento de Licença por Adesão e Compromisso (LAC) e, para empreendimentos instalados ilegalmente, a desconformidade ambiental premiada com a possibilidade de rápida obtenção de Licença de Operação Corretiva (LOC).
A oficialização da cegueira e a leniência do Sistema Nacional do Meio Ambiente (Sisnama) com anistias e facilitações só farão aumentar a prática da criminalidade ambiental. A figura de correção só deveria existir para os casos em que já há licenciamento emitido, e é necessário corrigir equívoco ou insuficiência dessa licença de forma vinculada à premissa pró-ambiente, de evitar e/ou mitigar impactos negativos. Tais dispositivos são antiambientais e deveriam ser sumariamente suprimidos da proposta.
Nota-se ainda completa dissociação do contexto ambiental atual. Propõe-se linha de corte em contradição com sinergias e cumulatividades que afetam ecossistemas, com a dispensa de avaliação para “baixo impacto” e para “ampliações de atividades já instaladas”, ou até mesmo para renovações de licenciamento. Essas inovações complacentes são nocivas e ferem de morte a correta avaliação ambiental, afastando a sociedade da esfera de decisão sobre assuntos relacionados ao meio ambiente.
A proposta incide, com evidente cegueira, sobre o desastre que vem ocorrendo na Amazônia e no Cerrado. Próxima do ponto de não retorno, a Amazônia poderá contar com mais um algoz: o beneplácito da dispensa de licenciamento para agronegócio e pecuária extensiva, que são as maiores atividades responsáveis pela devastação do bioma.
A proposta impõe fragilizações ao excluir do caráter vinculante atores especializados e estratégicos, limitando a possibilidade de manifestação para avaliação de impactos do Instituto Chico Mendes (ICMBio), Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e Fundação Nacional do índio (Funai), entre outros.
Além disso, institui inovação benevolente ao limitar o prazo para a concessão de licença prévia em apenas dez meses, tarefa impossível para empreendimentos que apresentem média complexidade.
Fere ainda compromissos pré-existentes da democracia participativa para a proteção do meio ambiente que estão sacralizados em inúmeros acordos, protocolos e tratados internacionais, muitos dos quais o Brasil é signatário. Exemplo disso é o Princípio 10 da Declaração do Rio, que expressa “o melhor modo de tratar as questões ambientais é com a participação de todos os cidadãos interessados, em vários níveis. No plano nacional, toda pessoa deverá ter acesso adequado à informação sobre o ambiente de que dispõem as autoridades públicas.
Também relega ao esquecimento o Acordo de Escazú, que visa garantir o direito das pessoas a terem acesso à informação e participar das decisões que afetem suas vidas e o ambiente.
Concluindo, se o PL 2.159/2021 for aprovado com tais vícios e retrocessos, que ferem a Constituição, a PNMA e tantos acordos dos quais o Brasil é signatário, a credibilidade ambiental e democrática do Senado ficará tão comprometida como a qualidade ambiental do país. Seguiremos vivendo em um país condenado à degradação de seus recursos naturais e à piora progressiva da saúde da sua população.
Finalmente, é bom relembrar o que reza o caput da Constituição Federal: “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente” (Constituição Federal art. 1º). Os representantes eleitos jamais poderiam suprimir, sob qualquer argumento, a participação direta, garantida ao povo, na própria Constituição.
Espera-se, não havendo reversão do processo, imediata declaração da sua inconstitucionalidade.
Carlos Bocuhy é presidente do Instituto Brasileiro de Proteção Ambiental (Proam).