Democracia em Vertigem: o desafio de narrar o Brasil
Em tempos de narrativas fraturadas, violência autorizada e degradação do convívio público, multiplicar diálogo não é algo tão banal quanto parece. A transparência dos posicionamentos da diretora e o equilíbrio na busca nas palavras (apesar do tom melodramático que às vezes incomoda), nos oferecem, no mínimo, um ponto de partida comum.
O documentário Democracia em Vertigem, de Petra Costa, tem mais méritos do que defeitos. De partida, é preciso lembrar que o lançamento do filme no último 19 de junho ocorreu simultaneamente em 190 países via Netflix. Nesse cenário, um dos seus méritos mais imediatos é oferecer uma possibilidade narrativa do Brasil para o mundo, sobre os acontecimentos turbulentos que nos colocaram na rota da vertigem. É notável a dificuldade dos estrangeiros, inclusive os mais atentos ou estudiosos, para acompanhar o turbilhão de eventos que lançaram nossa democracia à beira do colapso. Mesmo aqui, não é pequena nossa confusão. Antes de mais nada, portanto, esse documentário apresenta uma possibilidade narrativa honesta e com bastidores privilegiados, que parece nos conduzir a um diálogo mais amplo, detalhista e maduro a respeito das recentes turbulências históricas, para dentro e para fora do Brasil. Ou ainda, uma espécie de aposta na reconexão crítica de um campo democrático quebrado.1
Em tempos de narrativas fraturadas, violência autorizada e degradação do convívio público, multiplicar diálogo não é algo tão banal quanto parece. A transparência dos posicionamentos da diretora e o equilíbrio na busca nas palavras (apesar do tom melodramático que às vezes incomoda), nos oferecem, no mínimo, um ponto de partida comum. Isso que não quer dizer concordar ou discordar com suas teses, mas sim reinstaurar nexos compartilhados, que nos ajudam a navegar em meio ao caos da guerra de versões. Afinal, o que realmente aconteceu nos últimos seis anos no Brasil, entre 2013 e 2019? É possível narrar nosso país hoje? Como narrar? A partir de quando? Do ponto de vista de quem? “Eu não sei como essa história deve ser contada”, admite a diretora no meio do filme, ao referir-se, ao mesmo tempo, às tensões que atravessam o Brasil e a sua família.
Outra dificuldade é que Democracia em Vertigem é um filme sobre feridas que estão abertas. E pior, sem qualquer perspectiva visível de cicatrização. A vertigem vem também das miragens que se partiram. O Brasil despertou da “ilusão neodesenvolvimentista” para acordar em um cenário desolador, de desemprego, desamparo e pobreza. Crise econômica, corrosão do sonho lulista, junho de 2013, revolta social contra corrupção, golpe contra Dilma, gravações de Temer comprando o silêncio de Eduardo Cunha, Romero Jucá implorando para “estancar a sangria”, acordo nacional “com o Supremo, com tudo”, assassinato da Marielle, prisão de Lula sem provas e em tempo recorde, proibição da sua candidatura, eleição de Bolsonaro, Sergio Moro no Ministério da Justiça… A sequência destes acontecimentos foi aterradora e produziu uma guinada psico-política demasiado brusca para não gerar impactos profundos em todos nós. Narrar e revisitar esse thriller de traumas, fazendo uso de uma linguagem poético-política, pode gerar algum efeito terapêutico coletivo.
Em segundo lugar, considero também um mérito a arriscada escolha de Petra Costa em articular a trajetória da própria família à história do Brasil recente, embora isso possa ter gerado efeitos polêmicos e resultados estéticos duvidosos (como a inserção de cenas “pessoais demais” sugerindo certo exibicionismo, a exemplo do rodopio da diretora na avenida paulista vazia após a vitória de Dilma em 2010). Apesar disso, penso que há razões históricas e políticas suficientes que fazem deste entrelaçamento um caminho ousado e inteligente. Por quê? O lugar de fala familiar da cineasta é peculiar e representativo de alguns dos nossos mais profundos paradoxos. Afinal, qual outra família brasileira proporciona o encontro inusitado entre empreiteiros e guerrilheiros dentro de casa?
Petra Costa nos conta que é herdeira de industriais da construção civil. Seu avô ergueu a empresa Andrade Gutierrez praticamente junto com Brasília, nos anos 1950. Entretanto, seus pais são a negação do esquema, militantes que pegaram em armas contra a ditadura, representantes das esquerdas mais radicais. Não é nada desprezível que a família da diretora sintetize, na mesma genealogia, essa densidade de tensões compartilhadas pela coletividade nacional, que ligam o passado ao presente. É um lugar de fala muito raro para ser desperdiçado.
Assim, se um setor da família da diretora encarna o verdadeiro establishment denunciado pela Lava Jato, cimentado por uma relação de 70 anos entre empresários da construção civil e Estado (atenção, não disse governos), contar sua trajetória familiar se transforma em uma estratégia de argumentação política. Foi documentalmente eficiente para desbancar os mitos mais toscos da moral seletiva que alimentou parcelas importantes do antipetismo. O que a neta da empreiteira Andrade Gutierrez pode falar diante da ideia de que o PT chefiou o “maior esquema de corrupção do Brasil”? Com conhecimento de casa, ela mostra que esse esquema é o próprio Estado, portanto foi chefiado por todos os partidos que já governaram.
Por outro lado, o que pode dizer a filha dos guerrilheiros sobre a esquerda democrática no poder? Na sua família também estão os derrotados pela ditadura, que nunca obtiveram justiça e ainda clamam por seus desaparecidos. A memória daquela luta está em seu próprio nome, conta Petra, batizada em homenagem a Pedro Pomar, marxista assassinado em 1976 pelo regime. Nesse sentido, esse outro nó brasileiro foi trabalhado nas conversas filmadas com sua mãe, que se mostra relativamente frustrada com os governos do PT, embora sem deixar de admirar Lula e Dilma. Especialmente sensível é o encontro da sua mãe com Dilma, sabendo que passaram pelo mesmo presídio político.
Mas o melhor momento da costura entre história do Brasil e história familiar, que consolida um argumento chave da narrativa, é o lento amanhecer no planalto brasiliense, com foco nas duas placas encontradas no palácio presidencial: de um lado, o agradecimento pela restauração gratuita* feita pelas construtoras ao Estado brasileiro durante o governo Collor; de outro, homenageando um serviço de restauro similar durante o governo Lula. A empresa do seu avô aparece em ambas, sustentando as paredes do poder. Faz lembrar a frase que teria dito um patriarca da Camargo Corrêa para um político poderoso: “Vocês é que mudam. Eu estou sempre aqui”.
Por fim, um terceiro mérito de Democracia em Vertigem é o fenomenal material inédito dos bastidores da política brasileira. São excepcionais e privilegiadas as cenas da Dilma antes e depois das sessões de impeachment criticando deputados “traidores” nos corredores de um hotel; do Lula em telefonemas para articular a salvação da sua sucessora ou arrumando as malas para ser conduzido ao cárcere (provável fruto da parceria com Ricardo Stuckert); dos congressistas comentando os sucessivos conflitos ao calor da crise no salão verde; do estreito gabinete do então deputado Jair Bolsonaro, com seus retratos de ditadores militares pendurados na parede. São cenas únicas da nossa crise, que nos permitem entendê-la melhor.
Os bastidores da elite política, contudo, ganham um brilho mais realista quando lido a contrapelo, na aparição das vozes do andar debaixo (que, aliás, poderiam ter sido mais escutadas). Afinal, quem são os verdadeiros bastidores do Brasil? O que pensam os trabalhadores que, na sua invisibilidade, tornam materialmente possível a guerra política dos profissionais? Quem são aqueles que fazem o cotidiano de Brasília funcionar? Estes trabalhadores invisíveis aparecem no que talvez sejam os dois melhores momentos de todo documentário. Primeiro, a conversa com os homens que erguem o muro em frente ao Congresso no dia da votação do impeachment, para evitar que manifestantes vermelhos e verde-amarelos se agridam em agosto de 2016. E segundo, o diálogo com as faxineiras que fazem a limpeza do palácio presidencial no dia da traumática transição de poder de Dilma para Temer. “Seria fácil se pudéssemos limpar tudo com água e sabão”, diz uma. E completa, com lucidez: “não acho que existe democracia”. A voz dos verdadeiros bastidores do Brasil, a base invisível da pirâmide, lança um jato de verdade na narrativa sobre o topo. Faltam mais vozes como essas.
Por fim, cabe notar que a demandada “autocrítica petista” aparece discretamente em duas cenas. Numa, Gilberto Carvalho lamenta o fosso criado entre o governo do PT e os movimentos sociais (a política “pé dentro, pé fora” virou “pés dentro”). Depois, Lula se arrepende de não haver regulamentado democraticamente os meios de comunicação, o que abriu caminho para que a grande imprensa corporativa monopolizasse a campanha da sua derrocada. A autocrítica aparece, também, na própria condução da diretora: a frustração das bases da esquerda democrática com os rumos do PT, em seu longo e deletério abraço na governabilidade pemedebista.
É, enfim, um filme minucioso, que se desdobra em muitos debates. Ao filmar em plena crise, ao calor dos acontecimentos, Petra Costa produziu um retrato histórico de grande valor. Concordando ou discordando dos seus posicionamentos, o documentário nos ajuda a narrar nossa história para nós mesmos. Ao reelaborarmos publicamente o que vivemos, seja pela cumplicidade, seja pela divergência, recriamos novos lugares compartilháveis do presente. Em tempos de subjetividades quebradas, Democracia em Vertigem nos relembra porque, enfim, todos nós ainda estamos sentindo tontura.
Joana Salém Vasconcelos é historiadora, mestra em desenvolvimento econômico pela UNICAMP e faz doutorado em história econômica pela USP
1 Essa reflexão é pessoal, mas também formada em conversas com João Carlos Ribeiro Jr e Catarina Pedroso.
* Grifo da autora.