Democracia leitora, leitura democrata
Excluir de parte da população seus direitos em prol de uma suposta política tributária que deveria ser distributiva não é aceitável. Tirar de alguém a possibilidade, já escassa, de ter acesso ao conhecimento ou de exercer sua cidadania cultural é contrário à Constituição
Não há dúvidas que o Estado precisa de recursos para que possa cumprir com as suas obrigações constitucionalmente conferidas, sendo o responsável não só pela proteção da liberdade dos cidadãos e de seus direitos políticos, mas também pela promoção de direitos sociais, culturais e econômicos.
Assim, como tal, para manter-se funcionando, o Estado influi, com respaldo da Constituição Federal, na esfera econômica do país e uma das maneiras pelas quais exerce essa influência é a tributação.
A tributação tem um papel relevante na estimulação de determinados setores e, ao fazê-la, o Estado demonstra quais atividades, bens e produtos devem ser priorizados na ordem econômica e, ao mesmo tempo, essa estimulação tem que impulsionar o desenvolvimento nacional e a redução das desigualdades sociais presentes no país.[1]
Nesse sentido, a Constituição estabeleceu em seu artigo 150, VI, d, quais atividades e bens não podem ser tributados, ou, em outras palavras, quais são abarcados pela imunidade tributária. E, dentre eles, temos a imunidade aos livros, jornais, periódicos e ao papel destinado à sua impressão. Importante destacar que muitos doutrinadores defendem, inclusive, que a imunidade não se estende aos rendimentos obtidos com os livros quando mencionamos os editores e autores, por exemplo[2].
Dito isso, cabe a nós entender o porquê de a Constituição ter considerado os livros, como bens que não devem ser tributados.
Segundo Roque Carraza, o que “a Constituição pretende, neste ponto, é garantir a liberdade de comunicação e de pensamento (aí compreendida a liberdade de imprensa) e, ao mesmo tempo, facilitar a difusão da cultura e a própria educação do povo. Em outras palavras, quer facilitar a busca do conhecimento, bem inefável que agrega dignidade à pessoa humana”[3].
É possível constatar, então que, não apenas pretende-se promover a democratização do livro como também proteger a livre manifestação de pensamento, não excluindo, inclusive, os demais meios eletrônicos voltados à disponibilização de livros, como é o caso dos e-books, uma vez que o que se pretende é a proteção do material inserido nos livros e não do papel em que o material está inserido, segundo entendimento do Supremo Tribunal Federal (Recurso Extraordinário 330.817).
Acrescendo-se à isso, a concepção de como a política cultural deve ser pensada em relação à cidadania cultural, seguindo a ideia proposta por Marilena Chauí de que a cultura “não se reduz ao supérfluo, ao entretenimento, aos padrões do mercado, à oficialidade doutrinária (que é ideologia), mas se realiza como direito de todos os cidadãos, direito a partir do qual a divisão social das classes ou a luta de classes pode manifestar-se e ser trabalhada porque, no exercício do direito à cultura, os cidadãos, como sujeitos sociais e políticos, diferenciam-se, entram em conflito, comunicam e trocam suas experiências, recusam formas de cultura, criam outras e movem todo o processo cultural.”[4]
Além disso, não há dúvidas de que a não tributação pretende fazer reduzir o custo desses produtos, o que se mostra de extrema importância considerando a desigualdade social do país. Segundo a 5ª Edição da Pesquisa “Retratos da Leitura no Brasil” feita pelo Instituto Pró-Livro em conjunto com o Itaú Cultural, que levou em conta o período entre outubro de 2019 e janeiro de 2020, constatou-se que 52% dos brasileiros tem hábito de leitura, o que representa uma queda de 4% em relação a 2015. Mesmo assim, a média de livros lida por ano é de 4,95 livros, sendo apenas 2,55 desses inteiros.
Quando feito o recorte de classe e renda verificamos que, mesmo havendo a imunidade tributária, as pessoas das classes C, D/E são as que menos compram, representando 77 e 90% delas, respectivamente e, se considerarmos a renda de até 10 salários mínimos, essa porcentagem varia de 70 a 84%, sendo maior no caso de até um salário mínimo.
Em comparação, segundo relatório “Os Franceses e a Leitura – 2019” publicado pelo Centro Nacional do Livro, na França cerca de 88% da população se declara leitora e em 2019 a média de livros lido no país foi de 21 livros, o que demonstra os baixos índices registrados no Brasil.
Assim, a Receita Federal ao defender que “de acordo com dados da Pesquisa de Orçamentos Familiares de 2019 (POF), famílias com renda de até 2 salários mínimos não consomem livros não-didáticos e a maior parte desses livros é consumida pelas famílias com renda superior a 10 salários mínimos. Neste sentido, dada a escassez dos recursos públicos, a tributação dos livros permitirá que o dinheiro arrecadado possa ser objetivo de políticas focalizadas”[5], não só propõe uma reforma tributária excludente para parte da população que terá ainda menos acesso aos livros, bem como defende uma afirmativa que por si só não se sustenta, uma vez que tratando-se de imposto sobre consumo, não atinge apenas as pessoas mais ricas, ao contrário do que aconteceria, por exemplo, se houvesse o aumento da tributação sobre patrimônio.
Por fim, excluir de parte da população seus direitos em prol de uma suposta política tributária que deveria ser distributiva e que deveria considerar a capacidade contributiva (artigo 145, parágrafo primeiro, da Constituição) dos contribuintes, não é e nem pode ser considerado aceitável. Tirar de alguém a possibilidade, já escassa, como demonstrado pelos dados, de ter acesso ao conhecimento, à informação ou de exercer sua cidadania cultural é contrário não só à Constituição como também com o que devemos defender enquanto nação e enquanto civilização, não podendo enquanto tal compactuarmos com a ideia de que “ao povo permite-se que aprenda a ler, não se lhe permite que se torne leitor”[6].
[1] ELALI, André de Souza Dantas. Tributação e desenvolvimento econômico regional: um exame da tributação como instrumento de regulação econômica na busca da redução das desigualdades regionais. 2006. 180 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2006.
[2] CARRAZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 31ª ed., ver., ampl. E atual., pag. 950 – São Paulo: Editora Malheiros, 2017. Pág. 973.
[3] CARRAZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. Pág. 950, 31ª ed., ver., ampl. E atual. – São Paulo: Editora Malheiros, 2017. Pág. 950.
[4]CHAUÍ,Marilena.Cultura e democracia./ Marilena Chauí. — 2 ed. — Salvador : Secretaria de Cultura, Fundação Pedro Calmon, 2009. 68p. – (Coleção Cultura é o quê?, I). Pág. 50.
[5] Receita Federal. Governo Federal. Perguntas e Respostas Perguntas e Respostas da CBS Contribuição sobre Bens e Serviços. Disponível em: https://www.gov.br/economia/pt-br/acesso-a-informacao/acoes-e-programas/reforma-tributaria/perguntas-e-respostas.pdf
[6] SOARES, Magda. As condições sociais da leitura: uma reflexão em contra- ponto. In.: ZILBERMAN, Regina & SILVA, Ezequiel Theodoro da. (Orgs.). Leitura: perspectivas interdisciplinares. São Paulo: Ática, 1988, p. 25.