Depressão e eleição
Dado que, assim como a depressão, a eleição abrange uma ampla gama de processos psicossociais, cabe especificar qual fenômeno da corrida eleitoral estaria correlacionado a um dos possíveis efeitos da depressão
Eu hoje estou pulando como sapo /
pra ver se escapo desta praga de
urubu / Já estou coberto de farrapo
/ eu vou acabar ficando nu / Meu
paletó virou estopa / e eu nem sei
mais com que roupa / Com que
roupa que eu vou / pro samba que
você me convidou? / Com que
roupa que eu vou / pro samba que
você me convidou? [Noel Rosa]
Sabe-se que, no Brasil e no mundo, a depressão constitui um transtorno mental epidêmico e de amplo espectro. É possível correlacioná-la com diversos fenômenos funestos, tais como suicídios, somatizações, drogadições, insônia, ansiedade, dissolução de vínculos sociais e familiares e, particularmente no Brasil, com o assim chamado desemprego por desalento. Este último fenômeno, ainda que de modo não tão extremado quanto o suicídio, não deixa de exprimir também uma grave destituição das forças de afirmação e resistência do sujeito, processo que se pode ver, na letra de Noel, representado pelas vestes virando farrapo e estopa e ameaçando deixar o protagonista despido de toda e qualquer forma de presença minimamente apropriada para atender a um encontro que permitiria não frustrar um desejo recíproco de festejar.
Dado que, assim como a depressão, a eleição abrange uma ampla gama de processos psicossociais, cabe especificar qual fenômeno da corrida eleitoral estaria correlacionado a um dos possíveis efeitos da depressão.
Proponho a hipótese de que, quando expressivos segmentos do eleitorado apoiam um candidato manifestamente hostil aos seus interesses ou identidades – por exemplo, mulheres cerrando fileiras com um candidato misógino –, tal atitude envolve a defesa contra uma depressividade dissociativa prévia, cuja economia afetiva procurarei descrever em linhas gerais.
No exemplo levantado, a identidade de mulher deixa de importar justamente porque se dissolveu em função da identificação com o líder político. O que passa a importar é a identidade desse líder, que assume um caráter absorvente e absoluto, tal como evidencia o célebre lema totalitário fascista: Il Duce ha sempre ragione! (O Líder sempre tem razão!)
Essa frase permite desvendar as razões econômico-afetivas do processo dissociativo: a angústia e a impotência de quem se sente desmoronar dão lugar ao comprazimento no ódio onipotente por via da identificação com o líder irascível e plenipotenciário a quem se entrega a própria razão.
Desafortunadamente, o circuito histórico de opressão, exploração e dominação política, econômica e cultural prepara o terreno para que seus agentes se tornem beneficiários dos naufrágios provocados, ao oferecerem aos náufragos botes salva-vidas que são na verdade formados com os seus próprios corações e mentes despedaçados.
Nessa lógica, procurar um diálogo razoável com quem está aprisionado no gozo do ódio e da identificação totalitária tende a alimentar este próprio gozo, pois quem questiona constitui ameaça à estabilidade do objeto-fonte da identificação totalitária, sendo logo tomado como alvo de ódio e inimigo a ser destruído.
Tais vítimas da dominação totalitária só poderão talvez ser libertadas mediante a mudança das condições históricas que determinaram sua traumatização.
Para tal, os agentes políticos democráticos, aptos ao diálogo e à composição de programas e ações, necessitam orquestrar-se em prol da mencionada mudança das condições históricas, tendo por pauta básica a retomada e a ampliação dos direitos sociais que se encontram em deprimente e acelerada regressão.
*David Calderoni é membro do Departamento de Psicanálise do instituto Sedes Sapientiae; pós-doutor pelo Departamento de Psicologia Social e do Trabalho do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo; membro do Global Advisory Board da World Dignity University e da coordenadoria da Coleção Invenções Democráticas (Autêntica Editora); professor do curso de especialização em Psicopatologia e Saúde Pública da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo; cantor, violonista e compositor, autor dos álbuns Viação, Regeneração, Onde a pele da alma é fina e Meu rei; e autor, entre outros, de O caso Hermes (Casa do Psicólogo/Fapesp, 2004), O silêncio à luz (Via Lettera, 2006) e Zórtex (Sinergia, 2012).