Desacelerando em tempos viróticos
O coletivismo que pressupõe alteridade e empatia pela dor do outro é, sem dúvida, o maior desafio que essa crise – e também o desacelerar – nos impõe
Um gerúndio, desacelerando – em inglês, downshifting – traduz bem o momento atual em que o mundo está, literalmente, reduzindo a marcha. Mas o que muitos de nós está vivenciando hoje já faz parte de um movimento em curso. O downshifiting, assim como o minimalismo, reflete sobre o cansaço, o excesso e a saturação de um estilo de vida de alta pressão, alta renda e alta velocidade.
Ao contrário da imposição de frugalidade que nos acomete agora, a proposta do desacelerar define uma opção por um comportamento social que implica em mudar para menos e simplificar o cotidiano. Os adeptos do desacelerar buscam equilíbrio entre trabalho e lazer, de forma a diminuir os efeitos do estilo de vida urbano como a sobrecarga laboral, a depressão e o estresse. Os desaceleradores são pessoas que trabalham e consomem menos em troca de mais horas de lazer para realizar o que pensam ser atividades essenciais na vida. Estão prontos para se envolver com atividades sustentáveis do ponto de vista ambiental. Os adeptos da vida simples não negam, necessariamente, o progresso tecnológico ou o conforto material. Entretanto, de forma geral, valorizam menos o status relacionado a aquisição dos bens e as marcas dos produtos e são mais propensos a valorizar experiências. Preocupam-se com a qualidade de vida, com a origem da comida, com meio ambiente, com questões sociais e com os direitos humanos e dos animais. Para esses indivíduos, o materialismo e a urbanidade sacrificaram muitos desses aspectos em prol do acesso garantido a bens e serviços.
Já deu para perceber que a maioria dessas premissas são opções de uma classe privilegiada que teve o poder de escolha e que já viveu as mazelas – e os benefícios – da velocidade e, então, pode também escolher por desacelerar. Mesmo sabendo que essa crítica é inevitável, julgo ser uma boa temática para refletir sobre esse momento. Afinal, diante das irrefutáveis pistas que o planeta tem nos dado, os passos nesse caminho precisam acelerar. Por bem ou por mal, por muitos ou poucos, como vem sinalizando um minúsculo, mas poderoso protagonista.
Sobre o desejo de trabalhar e ter menos…
Na verdade, o desacelerar sempre esteve em pauta. Antigos pensadores como Platão, Aristóteles, modernos como Leo Tolstoy, Ralph Waldo Emerson e Henry Thoreau e contemporâneos como David Le Breton (em seu livro Do silêncio) e Byung-Chul Hay (em sua Sociedade do cansaço) defendem uma estética da vida simples. O trabalho, o lazer e o tempo livre foram problematizados por muitos autores. Domenico De Masi e Manuel Cuenca Cabeza assumem o ócio como direito natural que favorece a liberdade e revela o verdadeiro sentido da vida. O cultivo do tempo livre poderia ampliar as possibilidades de realização de uma sociedade mais humana.
Os anarquistas alertam que o lazer é apenas o tempo gasto para se recuperar do trabalho. Nessa lógica, o primeiro passo para a liberdade do ser humano seria a abolição do trabalho. “Trabalhadores do mundo, relaxem”, bradou Bob Black em seu manifesto anarquista.
A expansão da contracultura, nas décadas de 1960 e 1970, inspirou milhões de pessoas a diminuir o ritmo e a viver com mais simplicidade, valorizando a natureza, a vida comunitária e o anticonsumismo. Ao contrário de teorias que relacionam a contracultura com a alienação política, o movimento pode ser visto como uma forma de política contestatória que subverte a política formal e inventa uma criativa linguagem anti-burocrática e anti-disciplinar; uma forma legítima de contestação da burguesa e consumista American way of life…
Inspirado por essa dimensão, David Harvey questiona as velhas estruturas sociais e estimula a reinvenção da vida pessoal, incitando novas formas de se relacionar com a natureza e de construir alianças como um novo formato de ação política que precisa ser reconhecido, diz o geógrafo inglês, por uma esquerda desatenta.
A crítica ao modo de viver capitalista vem mobilizando várias experiências comunitárias descentralizadas – ilhas na rede, nas palavras de Bruce Sterling – e encontra seu modelo mais utópico e etéreo em Hakim Bey e suas Zonas Autônomas Temporárias (TAZ, sigla do original na língua inglesa) propostas como laboratórios autônomos e anárquicos, libertos de controle político, desvinculados do sistema dominante e das normas convencionais.
Bem mais conservadores, diferentes movimentos e organizações incorporam comportamentos desaceleradores como o Slow Movement, o Simplicidade Voluntária, o Freeganismo, o Freecycle, o TimeBanking, o Sea Change, os Cultural Creatives, entre muitos, que assumem práticas variadas de resistência ao consumo, de valorização do tempo, de cooperativismo, de autogestão, de reutilização de descartes e reinvenção do trabalho baseado na cultura da dádiva que implica troca de serviços e competências.
Muito além dos muros da Escola de Chicago, surgiram diferentes abordagens econômicas desaceleradoras. Ernst Friedrich Schumacher faz a apologia da pequenez no seu livro Small is Beautiful. O precursor da Teoria do decrescimento, Serge Latouche, defende uma sociedade que produza e consuma menos. André Seagre e sua Economia do suficiente e Juliet Schor e Craig Thompson em sua Economia plena enfatizam a cultura da suficiência e um mundo com menos desigualdades e problemas socioambientais; com menos bem estar e mais bem viver.
Os diferentes formatos de ativismo alimentar que abarcam um enorme guarda chuva de movimentos como a Agricultura Orgânica, as Comunidades que Sustentam a Agricultura, o Locavorismo, o Vegetarianismo, entre muitos outros, exigem um fôlego para compreender sua complexidade que vai muito além de promover uma alimentação local, sem venenos ou sem carne. No Brasil, a agroecologia e o Movimento Sem Terra se destacam como um formato de ativismo que produz bem mais do que comida, segurança e soberania alimentar. Estão preocupados em oferecer soluções aos problemas socioambientais, discutem a revitalização do meio rural e a dignificação de homens e mulheres que produzem comida, os aspectos éticos na relação entre os reinos e a preservação da agrobiodiversidade; fortalecem novas estratégias de vida em comunidade e criam sistemas de educação e saúde ajustados à realidade do campo e das florestas e alternativas concretas à lógica do sistema econômico neoliberal. Na contramão das previsões de aumento do número de pessoas vivendo em cidades, cada vez mais neoruralistas têm deixado a vida urbana e migrado em direção ao campo para produzir alimentos e viver uma vida mais tranquila. Claro que não são movimentos homogêneos; clamam por suas especificidades e suas estratégias de ação política. Mas tudo pode se juntar quando a gente questiona se é possível fazer a grande revolução à base de miojo. A mudança pode começar na coerência do seu prato; de quem ainda tem um.
As ecovilas são comunidades de pessoas que buscam integrar um ambiente social autogerido com práticas de baixo impacto ambiental. A ONU já indicou as ecovilas como uma prática excelente para promover desenvolvimento sustentável. A proposta rompe com uma lógica de aglomeração urbana esquizofrênica, sob a qual muitos de nós opta por viver sob o mesmo teto, sem varanda e sem horizonte, junto com mais cinquenta, cem pessoas que não conseguem chegar a um simples consenso na reunião do condomínio, simplesmente porque não têm nada em comum. Penso que a maior vantagem de uma ecovila, para além de céu estrelado, é escolher com quem se deseja encarar os desafios. Que também estarão lá, certamente.
Sob uma perspectiva eminentemente urbana, existem os movimentos de reivindicação de espaços públicos subutilizados, inspirados no movimento Okupa, que surgiu nos anos 1970, na Holanda. Também têm como símbolos o assemblearismo, a autogestão e o trabalho coletivo, porém atuam como dispositivos de luta política e têm uma dimensão temporal; uma ocupação sempre acaba com o despejo ou com a conquista. O Movimento dos Trabalhadores Sem Teto, além de diferentes ocupações em capitais, representa, no Brasil, esse movimento mundial de reivindicação do direito à moradia.
Escolas preocupadas com a socialização, a manutenção da infância e o desenvolvimento das múltiplas dimensões do educando se enquadram nesse poroso movimento, na contramão da educação bancária e das pedagogias take away. A intenção é contribuir para criar um mundo melhor a partir da formação de indivíduos equilibrados e humanistas críticos. Enquanto o sistema púbico pedagógico finlandês incorpora esse modelo, no Brasil essas escolas alternativas são particulares e proliferam no formato cooperativo. As escolas Waldorf e Montessori, bem como a The Small School, na Inglaterra, e a Escola da Ponte, em Portugal, são enquadradas como iniciativas de um movimento de escolas slow.
Outro movimento, ainda mais difuso, surge na área da saúde. Muitos desaceleradores são adeptos das práticas integrativas e complementares e medicinas tradicionais, buscando tratamentos mais “naturais”, humanizados, acessíveis e autonomizantes, estimulados pela Organização Mundial da Saúde1 como um sistema de saúde centrado em pessoas (people-centred health system). A medicina convencional tem um papel muito importante, mas existe uma dimensão política quando os downshifters apoiam esse sistema e questionam o consumo hospitalocêntrico, com base na indústria farmacêutica e de tecnologia médica. E o desacelerar está presente nessa racionalidade médica “alternativa”; quem já tratou uma criança febril com homeopatia, compressas, caldos e presença sabe como é diferente o tempo do antitérmico. Eu pagaria com satisfação um plano de saúde cooperativo e ético, formado por médicos e terapeutas homeopatas, ayurvédicos, naturólogos, antroposóficos, da medicina chinesa etc. que suportasse hospitais com esse tipo de tratamento.
Juntos – e com menos consumo – venceremos
Para além das preocupações ambientais, dois elementos são transversais aos diferentes movimentos ou fenômenos aqui mostrados e centrais para a constituição do espírito que impulsiona a prática dos desaceleradores: um é o coletivismo e o outro é o combate ao consumismo. Ambos podem ser analisados também sob a ótica da pandemia do corona vírus, já que hoje está quase impossível não falar dela…
A crise que nos assola hoje está tocando um ponto nevrálgico da condição de seres sociais, ou seja, nossas necessidades de contato, consolo e proximidade. São tocantes os relatos dos familiares que se despedem na porta dos hospitais, as imagens dos caixões solitários ou a impossibilidade dos profissionais da saúde em voltar para suas casas e abraçar seus filhos. Obrigando o distanciamento do estrangeiro e do conhecido, o vírus amplia a condição de desamparo, solidão e individualismo que já percebemos exacerbada. Seja pelo afastamento provocado pelo excesso de trabalho, pelo ritmo urbano, pelas tecnologias que nos iludem com a promessa da proximidade virtual, seja pela intolerância frente às diferenças que erguem fronteiras de países e também de lares e grupos sociais.
O coletivismo que pressupõe alteridade e empatia pela dor do outro é, sem dúvida, o maior desafio que essa crise – e também o desacelerar – nos impõe. O vírus é um grande espelho refletor da falta de solidariedade entre humanos e da desconexão estabelecida entre nós e as outras espécies. Paul Preciado chamou atenção para a raiz comum das palavras comunidade e imunidade e alerta que o ansiado corpo imune dessa crise é também aquele radicalmente separado, que não deve nada à comunidade. A máscara é hoje o simbolismo dessa fronteira que se encolheu até o limite do corpo humano. Assim como nesse desacelerar virótico, todos os desacelerares exigem a problematização do coletivismo.
Ainda precisamos compreender melhor as razões que movem os adeptos do desacelerar para compreender se estamos mesmo diante de um esgotamento de um certo modo de viver que fortaleceu o capitalismo neoliberal ou se é mais uma armadilha desse atento sistema que se reinventa para continuar nos anestesiando e estimulando o consumo – agora de produtos verdes, sustentáveis, naturais, saudáveis, sob a mesma lógica predatória e controladora. Mas, certamente, o cerne da lógica desaceleradora permite vislumbrar um desejo de romper com a narrativa do consumismo inaugurada por esse sistema que devora bem mais do que o nosso tempo.
Muita gente está fazendo reflexões pandêmicas. Há os otimistas que apontam os efeitos ambientais positivos do isolamento social, a mudança do paradigma consumista e a ascensão de valores altruístas. Há os pessimistas que dizem que o isolamento, o medo, a concentração de renda e os formatos de controle totalitaristas vão só se exacerbar na época pós-corona.
O que eu quis enfatizar aqui é que tem gente visionária que já vem construindo um estratégico desvio do sistema capitalista e que tem o humanismo como valor universal. São ações concretas e é bom prestar mais atenção nelas. Fica o inspirador convite do Paul Preciado para usar o tempo de confinamento com criatividade, desligando os celulares e desconectando da internet: “Façamos o grande blecaute diante dos satélites que nos observam e imaginemos juntos a revolução que virá”. Virá se a gente tomar algumas decisões, é bom lembrar.
1 Relatório WHO Global Report on Traditional and Complementary Medicine, 2019.
Elaine de Azevedo é doutora em Sociologia Política e professora do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Espírito Santo.