Desafios do sistema de proteção social
A universalização da proteção social exige superar o embate entre sua alternativa securitária, vinculada ao trabalho, e a de cidadania, assentada em padrões civilizatórios da sociedade. A resistência a esse alargamento é profunda e ultrapassa o campo conservador, liberal ou de direita
O que se espera da proteção social? Em uma sociedade de mercado a resposta mais comum é: ter renda para poder resolver situações em que alguém se sinta fragilizado. O desejo imediato imputado nisso é o de poder pagar/comprar condições que levem à superação da fragilidade e à restauração da automanutenção.
Por mais individualista e simplória que essa resposta possa parecer, ela é a base dos sistemas de proteção social monetaristas, isto é, estruturados com base em uma cadeia de benefícios substitutos ou complementares ao salário e à renda. Duas realidades são ocultadas por esse modo de pensar: primeiro, a de que a proteção social é mais do que um objeto de compra e venda; segundo, que ela ultrapassa o campo individual. Sentir-se seguro diz respeito a todos.
A correlação entre poupança e proteção social é uma constante econômico-financeira na cultura da sociedade de mercado. O bom homem não é aquele que vive “sob o Deus dará” e sim aquele que segue a máxima do “quem poupa tem”! Para as crianças, a fábula da cigarra e da formiga ensina que trabalhar e economizar são o modo seguro para enfrentar o “inverno”.
Três grandes ocorrências históricas moveram essas máximas de poupar para o infortúnio do campo individual para o social. A primeira foi no final do século XIX, quando o acidente de trabalho passou a não ser responsabilidade do trabalhador e sim do empregador, que propicia as condições de produção. É de se imaginar a revolução dessa decisão, que demarca uma primeira grande conquista da proteção social dos trabalhadores.
A segunda ocorrência – mais engenhosa do que revolucionária – foi construída por Otto Von Bismarck no início do século XX ao desenvolver uma modalidade de “pacto” entre patrão-empregado mediado pelo Estado. Era uma majestosa operação político-financeira capaz de movimentar o capital e seus juros, transformando-os em benefícios de aposentadoria e acidentes, entre outros, fixados pela legislação social do trabalho.
A terceira aconteceu após a recessão dos anos 1930 e, mais intensamente, no pós-Segunda Guerra: foi o reconhecimento de direitos à provisão pública das necessidades sociais da população, base do modelo do welfare state.
Interesses polpudos
Embora contemporânea a essa movimentação, a Declaração Universal dos Direitos Humanos não alcançou força para tornar-se campo de proteção social pública. Ocorre que a previdência social, embora seja um direito dos trabalhadores, significa também a movimentação de polpudos ativos financeiros destinados, sobretudo, aos interesses do capital. Vale relembrar que foram os recursos dos fundos de pensão (como BrasilPrev, entre outros) que compuseram o aporte necessário para o processo de privatização das empresas estatais. É o exemplo do disparate: enquanto as centrais sindicais bradavam contra as vendas das empresas, os fundos de pensão a que se associavam compunham o capital para operá-las. A justificativa era a de que precisavam de rentabilidade e aquela seria uma ótima oportunidade.
A previdência social se funda em uma máxima: todo cidadão, independentemente de sua trajetória no mercado de trabalho, tem direito a uma renda substituta (de igual valor) quando sua capacidade de trabalho diminui. Essa política tem por pressupostos o pleno emprego formal – o de “carteira assinada” por um “patrão” – e a prévia contribuição cotizada entre empregador e empregado. No entanto, essas pré-condições não estão de acordo com a realidade do trabalho no Brasil, marcada pela forte presença do mercado informal.
Aqui, só os “produtivos contributivos” têm acesso à proteção social, caracterizando uma “cidadania regulada”. Alcançar a renda substituta depende da anterior trajetória de trabalho. É o “bem-estar ocupacional” que inclui determinadas ocupações – os empregados domésticos, as mulheres e os rurais foram os últimos a integrar essa lista.
Além disso, o benefício mensal de um salário mínimo para idosos e pessoas com deficiência (CF-88) foi limitado, por legislação infraconstitucional, às famílias com renda per capita de um quarto do salário mínimo, equivalente a R$ 103,75, ou US$ 1,3 por dia. E há forte pressão no debate dos rumos da previdência social para que ele deixe de ter esse valor: alguns analistas o apontam equivocadamente como fator do déficit da previdência.
Vence a máxima da “formiga”. O trabalho com “carteira assinada” e contributivo não só é vencedor, mas é aniquilador das condições de vida da “cigarra”. A informalidade de seu trabalho, embora tivesse alegrado o ambiente com música e canto, foi considerada como “inútil” à produção de commodities. Que morra de frio ou de fome!
Benefícios aos mais pobres
A universalização da proteção social exige superar o embate entre sua alternativa securitária, vinculada ao trabalho, e a de cidadania, assentada em padrões civilizatórios da sociedade. A resistência a esse alargamento é profunda e ultrapassa o campo conservador, liberal ou de direita. Analistas progressistas também reagem a ele negativamente. Ambos taxam-no como assistencialista, sem esclarecer se tal adjetivo advém da sua vinculação com a assistência social ou pelo fato de seu acesso não ser de caráter securitário, embora indiretamente contributivo. Alguns afirmam que se trata de medida neoliberal difundida pelo Banco Mundial para fortalecer a alternativa da previdência privada. Pelo regime de capitalização individual, cabem ao Estado apenas os benefícios assistenciais voltados aos mais pobres. A presença de benefícios socioassistenciais pautados na proteção da cidadania, mesmo ao lado da previdência pública brasileira, seria, para esses “progressistas”, uma manifestação neoliberal de “assistencialização” da previdência. Por esse modo restrito de entender a complexa realidade brasileira, que termina por defender a máxima da formiga, a consolidação e consequente expansão da política de assistência social seria uma ameaça à previdência social.
Retomando a questão inicial: o que se espera da proteção social? A renda de substituição tem centralidade nas formas de proteção social de cidadania. Os programas brasileiros de transferência de renda – BPC, Bolsa Família, Peti, Agente Jovem, entre outros – compõem quase a totalidade do custeio da proteção social não contributiva federal.
Essa convergência da monetarização da proteção agrada a sociedade de mercado e o capital financeiro. Mas mesmo assim ela não vive em paz. Pelo contrário: navega em águas revoltas por cálculos atuariais divergentes (há ou não déficit nas contas da previdência?). Entre outros fatores, o saudável alcance de mais anos de vida da população provoca o alongamento do tempo sob benefício, gerando problema atuarial. Como resultado, temos mais e mais critérios restritivos.
A polêmica corre solta, mesmo considerado que quase 70% dos benefícios previdenciários de aposentadoria têm por valor até um salário mínimo. Ou ainda que o fator previdenciário reduz, ano a ano e substantivamente, o valor mais alto das aposentadorias, que equivaleria a dez salários mínimos quando de sua emissão inicial. Além disso, o aposentado mantém sua contribuição mensal ao INSS. Em contrapartida, permanece a prática da isenção da contribuição da cota patronal (12% do salário do empregado) para empresas/organizações consideradas filantrópicas.
Esse registro, aliás, é destacado pelo caráter conjuntural da Medida Provisória 446, assinada pelo presidente da República em novembro de 2008. Ainda que o mecanismo da MP não seja recomendável, é necessária uma consideração sobre o que ocorre no Brasil desde 1938: há 70 anos foi instalado o Conselho Nacional de Serviço Social (CNSS) para operar a concessão de subvenções e isenções a organizações que desenvolviam ações sociais. A atuação desse órgão é relatada até mesmo por Fernando Morais em seu livro Chatô – O rei do Brasil: em atenção a demandas de Assis Chateaubriand, o CNSS concedeu subsídios a clubes de aeromodelismo para a aquisição de aviões e consequente desenvolvimento do transporte aéreo no país.
Retirar essa função das mãos do atual CNAS, sucessor do CNSS desde 1994, é condição necessária ao processo de efetiva democratização e exercício do controle social na gestão da Política Nacional de Assistência Social.
Atualmente, o certificado de organização beneficente (Cebas) expedido pelo CNAS é o passo mais avançado para obter a isenção da cota patronal junto ao INSS. Assim, os empregadores deixam de recolher à seguridade social os 12% relativos ao salário de seus empregados – atenção: não só daqueles envolvidos na prestação de serviços “gratuitos”, mas de todos os trabalhadores da organização, desde o porteiro ao cirurgião e o diretor administrativo de um hospital, por exemplo. Todos, claro, permanecem com seus direitos previdenciários e recolhem sua parte como trabalhadores. Instituições de ensino superior que ultrapassam 100 mil alunos também estão nessa categoria. O montante da “isenção beneficente” alcança cerca de R$ 4,5 bilhões/ano e é extraída do “combalido” orçamento da previdência social.
Essa digressão, aparentemente impertinente, tem por propósito não só chamar atenção às irracionalidades do financiamento da previdência, mas também mostra o fato de que a proteção social muitas vezes é travestida de beneficência, em contraponto ao direito de cidadania.
Outra discussão central na atual conjuntura diz respeito à manutenção do orçamento da seguridade social na proposta de reforma tributária. As mudanças em pauta questionam o engessamento orçamentário pela pré-definição de percentuais fixos para o gasto nas políticas sociais de educação e saúde. Esse orçamento é a única “peça de resistência” na integração das políticas brasileiras de seguridade social.
Até onde vai a seguridade
O alcance da seguridade social brasileira pode ser parametrizado por duas balizas: ele não é tão amplo quanto os sistemas europeus nem é tão restrito como dizem alguns analistas. Há de se registrar que, embora o Brasil seja um dos poucos países que preserva a previdência pública e tenha um elogiado sistema público de saúde, a seguridade social é mais um conceito do que uma realidade. Não se tem qualquer forma de gestão integradora entre saúde, previdência e assistência social para além do orçamento da seguridade.
A previdência social é de gestão federal e contributiva. A saúde é, há 20 anos, de gestão federativa pelo Sistema Único de Saúde (SUS), que opera vis-à-vis com a oferta de mercado, principalmente com os convênios de saúde. Já a assistência social implanta sua gestão federativa por meio do Sistema Único de Assistência Social (SUAS). Este último, normatizado em 2005, aguarda a aprovação de legislação reguladora (PL 3077) e permanece em contínua tensão para efetivar a política pública de direitos de cidadania, distinta das práticas privadas de beneficência; ou ainda incorporar-se na gestão pública fora das malhas nepotistas de primeiras-damas.
A legislação brasileira prevê também que o campo da proteção social ultrapasse essas três áreas. Crianças e adolescentes, como seres em desenvolvimento, são igualmente considerados parte dessa estrutura, de acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
Outra face da proteção social pública é que não substitui a função protetora da família. Nessa direção, a previdência social atribui o salário-família para a criança até 12 anos somente quando um dos pais ou ambos têm remuneração que não ultrapasse R$ 710,08. O valor do benefício é de R$ 24,23 por mês para cada criança cujos pais recebem até R$ 472,23 e de R$ 17,07 quando a renda da casa está entre R$ 472,23 e R$ 710,08 mensais – menos que dois salários mínimos. Não há transparência nos dados do INSS quanto às crianças beneficiadas e suas características. A apuração do montante gasto com essa política tampouco é clara, mas alguns informes permitem estimar um custeio do beneficio na ordem de 50% do valor total do programa Bolsa Família.
Percebe-se que os valores dos benefícios são similares entre o beneficio previdenciário e o de assistência social. Ambos dirigem-se a crianças brasileiras, embora não se saiba quantas são essas crianças e quais suas características, para alem dos salários dos pais.
Pessoas com deficiência, de qualquer idade e, idosos com mais de 65 anos desde que dependentes de uma renda per capita familiar equivalente a um quarto do salário mínimo recebem um auxílio de até R$ 415. Já os trabalhadores rurais independem dessa condicionalidade e recebem o benefício rural no valor de 1 salário mínimo mensal.
O volume de recursos para viabilizar todos esses benefícios monetários é da ordem de R$ 228 bilhões/ano1 e opera não só como substitutivo de renda, mas como capital que movimenta a economia de cidades. A concepção de uma política social pública desmercadorizadora é secundarizada em prol de uma concepção monetarizada.
Mas a proteção social não é obtida pela população apenas com a substituição da renda. Ela exige também cuidados, restaurações e aquisições pessoais. Esses acessos só ocorrem por meio dos serviços. Aqui o desafio é o financiamento dos serviços da saúde e da assistência social. Essas áreas exigem uma política qualificada de recursos humanos e a extensão de sua rede de unidades, da incorporação de tecnologia, de equipamentos e, sobretudo, do saber científico, construindo a “inteligência de Estado”.
Essa é a proteção pública que deveria ser operada pelos dois sistemas nacionais, o SUS e o SUAS, que seguem uma lógica assentada nos direitos dos cidadãos. Mas é justamente essa forma de proteção que encontra maior dificuldade em ser consolidada, ainda que fortemente reclamada pela população: ela vai contra a mercantilização e a monetarização. Isso porque a proteção social com foco na cidadania supõe a desmercadorização.
A grande questão é: há essa possibilidade na ética civilizatória da sociedade brasileira? Se sim, a crise financeira global amplia ou reduz essa possibilidade? Eis dois grandes desafios para o próximo período.
*Aldaíza Sposati é professora titular da PUC-SP, coordenadora do Nepsas (Núcleo de Estudos e Pesquisas em Seguridade e Assistência Social) dessa universidade e também do Cedest (Centro de Estudos das Desigualdades Socioterritoriais – PUC/INPE).