Desdobramentos práticos do julgamento no STF: 40 gramas de quê?
O questionamento sobre o critério estabelecido pela Corte de 40 gramas se é apenas à erva, usada como fumo, independentemente da concentração de THC; ou se incluirá qualquer produto derivado da Cannabis
Com a publicação do acórdão no Supremo acerca da descriminalização da maconha, novos debates foram trazidos pelo Ministério Público de São Paulo. Através de um embargo de declaração, recurso voltado para corrigir os erros materiais ou as contradições na versão final da decisão, o MP-SP leva ao STF questionamentos acerca dos limites da decisão, e seus efeitos quanto às variedades ou derivações da planta da cannabis; o haxixe e outros tipos de extrações, bem como outros produtos concentrados de maconha.
Os concentrados são extratos da planta que contêm altos níveis de canabinóides, como o THC e o CBD, além do haxixe, o mais conhecido deles. Esses concentrados podem ter diversas apresentações, incluindo óleos, ceras, resinas e até cristais. O processo de fabricação envolve a extração dos canabinóides e outros compostos ativos, utilizando solventes (como butano ou etanol) ou métodos mecânicos (como a pressão e o calor). O objetivo é obter um produto com concentração elevada dos princípios ativos, o que permite doses menores e efeitos mais potentes em comparação com a erva em si.
Muito longe de um simples pedido, o recurso do Ministério Público de São Paulo traz um necessário aprofundamento ao debate da descriminalização. Conforme argumentado pelo órgão público, o critério utilizado pela Corte, 40 gramas de “maconha”, pouco diz quanto às características bioquímicas ou materiais do produto que o indivíduo traz consigo. O MP-SP pede que o Supremo esclareça se o critério estabelecido pela Corte de 40 gramas aplica- se apenas à erva, seca, usada como fumo, independentemente da concentração de THC; ou se incluirá qualquer produto derivado da Cannabis e nessa última hipótese, se vão ser traçados critérios próprios e específicos, para cada forma de apresentação da substância ilícita e sua concentração de THC, para que se possa aplicar a referida presunção de usuário.
Na Espanha, por exemplo, o Supremo Tribunal Espanhol estabeleceu limites diferentes para maconha e haxixe, considerando um estudo realizado pelo Instituto Nacional de Toxicologia em 2009, e revisado pelo Instituto em 2021. O estudo estabelece um limite de 100 gramas de maconha e 25 gramas de haxixe para uso pessoal, referente à quantidade média usada em 5 dias conforme a pesquisa. De qualquer forma, a quantidade ainda é maior do que a admitida em Portugal, que não criminaliza o porte de até 25 gramas de maconha ou 5 gramas de haxixe e extratos. Já na Argentina, com a aprovação do registro de pacientes de cannabis medicinal, o Reprocann, a determinação legal com respeito a quantidade e as características, estabelece o limite de 40g de flor seca e até 6 frascos de 30ml de extrações líquidas.
Esta discussão é extremamente relevante ao mercado e a sociedade, pois traz a possibilidade de um aprofundamento do debate quanto aos limites do uso pessoal, apresentando maior segurança jurídica sobre o tema. Inclusive entre a conclusão do julgamento e a publicação do acordão, houve relatos de processos criminais contra pessoas que foram pegas portando haxixe, mesmo que em quantidades menores que o limite estabelecido pelo STF.
Neste contexto, uma movimentação já está em curso e deve seguir até fevereiro de 2025, um mutirão realizado pelo Conselho Nacional de Justiça, que busca aplicar a fundamentação definida pelo STF com o objetivo de promover o desencarceramento, em sua ampla maioria de pessoas negras, e que seguramente se encontrará com a questão acima mencionada. Estarão dentro das condições de liberdade aqueles ou aquelas que foram detidos por portar haxixe ou outros concentrados?
A discussão está longe de terminar e se torna cada vez mais complexa com o avanço da indústria da cannabis legal no Brasil, especialmente no que diz respeito à possibilidade da posse de extrações para fins terapêuticos. Ao mesmo tempo, a ausência de uma definição clara por parte do Supremo Tribunal Federal faz com que o Judiciário e os agentes das forças policiais e investigativas não saibam como agir diante de extrações, como o haxixe, muitas vezes qualificadas como ‘super-maconha’ ou outros termos vagos, que, de forma conceitual, são errôneos e retroalimentam justamente o desconhecimento, resultando, assim, na supressão de direitos de brasileiros e brasileiras, ainda que tratados de maneiras distintas, dependendo de serem definidos como usuários ou como pacientes.
Murilo Meneguello Nicolau é advogado especialista em cannabis medicinal, possui ampla experiência na assessoria de empresas do ramo da cannabis legal e em ações judiciais de cultivo de cannabis. Mestre em Direito Negocial pela UEL/PR e especialista em Direito Empresarial pela UEL/PR. Autor do livro “Manual Jurídico da Cannabis Legal”.