Desigualdade, guerra e… resistências
Um mosaico da Rússia de Putin, onde o poder esconde as políticas de concentração de riquezas por trás de uma retórica nacionalista e de guerra. Diante da impotência da oposição, surgem novos movimentos sociaisCarine Clement
À dureza do poder e à brutalidade das relações sociais,
heranças do período soviético, somam-se a violência do
mercado, egoísmo de cada um por si e o materialismo consumista
No Ocidente, à esquerda e à direita, os estereótipos sobre a Rússia e os russos abundam: alma boa, generosidade, excesso, grandes espaços, liberdade sem limite, tudo revisto e corrigido pela leitura de Tolstoi ou Dostoievski. Mistura de romantismo revolucionário e de fatalismo, segundo alguns; reconciliação das virtudes do mercado e do sentido religioso, segundo outros. Esta mística “alma russa” , insondável, tende a projetar o país em uma galáxia estranha, tanto para a lógica da globalização capitalista quanto para a da resistência altermundialista.
A realidade é bem mais simples: à dureza do poder e à brutalidade das relações sociais, herança do período soviético, somam-se a violência do mercado, o cinismo louco pelo dinheiro, o egoísmo de cada um por si e o materialismo da corrida ao consumo. Na Rússia, como em qualquer parte, a humanidade torna-se cada vez mais rara…
Império
A Rússia, este verdadeiro continente, irá implodir ou voltar a ser uma grande potência? No próprio país, as opiniões divergem
Consumado no final de dezembro de 1991, o desaparecimento da União Soviética originou quinze Estados, entre os quais a Federação Russa. Mas esta, que, por suas fronteiras, tem tudo de uma Rússia por subtração, não deixa de ser herdeira da URSS e, por isso mesmo, da Rússia czarista. O que o futuro reserva para a Rússia pós-soviética? A questão fica em suspenso. E nem o ex-presidente Boris Yeltsin, nem seu sucessor Vladimir Putin, contribuíram muito para uma resposta decisiva: a Rússia, um verdadeiro continente (Eurásia), irá implodir ou voltar a ser uma grande potência? No próprio país, as opiniões divergem.
Não há dúvida de que o presidente Putin agiu com firmeza e encerrou a política de seu predecessor, que dava toda autonomia às regiões. Porém, a tese amplamente divulgada, segundo a qual ele reconstruiria a Rússia — começando por restaurar a autoridade de um Estado inteiramente privatizado por Yeltsin e os oligarcas — parece mais do que contestável. Assistiu-se simplesmente à normalização autoritária de uma situação que, por fugir a qualquer controle, punha em risco a própria existência do país. Mas este fortalecimento do poder central, teorizado no dia seguinte ao seqüestro dos reféns e do massacre de Beslan (3/9/2004), poderá alimentar novas tensões nas regiões revoltadas contra um centro predador.
Este exercício de demonstração de poder, por meio da manifestação de força (policial), mal encobre a incapacidade de construir um Estado de Direito. A Rússia de Putin caracteriza-se, como os regimes soviético e czarista, por um Estado que domina a sociedade. O atual presidente dedicou-se — com sucesso — a eliminar todos os embriões de partidos, sindicatos e associações expressamente dedicadas a representar e defender os interesses de diferentes classes e camadas da sociedade diante do poder. Moshé Lewin1mostrou a que ponto essa ausência de “sistema político” pesou na crise do regime soviético.
Nas suas relações com os Estados da ex-União Soviética, a Rússia mostrou que está longe de ter renunciado à postura imperial que caracterizava tanto o poder czarista como a URSS. Mas ela já não tem os meios, como mostram tanto o prosseguimento da guerra da Tchetchnia como a perda de sua influência no Cáucaso e nos novos Estados formados depois da decomposição da URSS.
Gangrena na Tchetchnia
Nas relações com os Estados da ex-União Soviética, a Rússia mostrou que não renunciou à postura imperial que caracterizava tanto o poder czarista como a URSS. Mas já não tem os meios
O conflito da Tchetchnia está podre: banditismo mercantil e sanguinário do lado das forças russas e de seus comparsas, peso crescente dos islamitas radicais do lado tchetchno, atestado pela ascensão, em 25 de agosto de 2005, de Chamil Bassaev ao cargo de vice-primeiro ministro da Itchkeria, depois do assassinato de Aslan Maskhadov (8/3/2005). Esta guerra, que martiriza o povo checheno, está, para os russos, muito longe e ao mesmo tempo muito perto.
Ela abala também o resto do Cáucaso e o sul da Rússia. A Memorial, associação de defesa dos direitos humanos, fala de «tchetchnização» da Ingúchia e Daguestão. Enquanto não vem a guerra, eis os sinais que a anunciam: seqüestros, expurgos, denegação da justiça, pequenas mas violentas incursões, assassinatos…
E a violência, tal qual uma gangrena, se propaga por todo o país. Não apenas porque os atos terroristas podem atingir qualquer um, a qualquer momento, em qualquer lugar – mas também porque soldados e milicianos voltam para sua região como portadores da «síndrome chechena», por causa do horror do qual foram testemunhas e muitas vezes autores. Pior ainda: a multiplicação das violências policiais incita as associações a denunciar a importação e a legalização, pelo Estado, de métodos sumários do exército russo na Tchetchnia.
Blagovetchensk (Bachíria), dezembro de 2004: incursões policiais contra a população da cidade fazem centenas de feridos, que nunca serão condenados, apesar de protestos maciços. Prisão de Lgov (região de Koursk), 27 de junho de 2005: cerca de 800 presos cortam os pulsos para protestar contra os maus tratos infligidos pelos guardas. As autoridades acusam os presos de perturbarem a ordem pública! Elista (República de Kalmúquia), dia 22 de setembro de 2004: em uma manifestação da oposição, 300 pessoas são recebidas a cacetadas, perseguidas pelas ruas e 120 são presas, entre as quais uma morrerá em conseqüência dos ferimentos. Um ano depois, nenhum policial foi condenado. Distrito de Elbrouz (república de Kabardino-Balkaria), junho/julho de 2005: depois de ter ousado exprimir sua oposição ao chefe da República, a população sofre com incursões punitivas da polícia.
O poder de Putin acena com a bandeira da luta anti-terrorista para justificar violações dos direitos democráticos e caça aos opositores. Inúmeras manifestações são proibidas por causa da “ameaça terrorista”. O poder acena com o mesmo pretexto para anular a eleição dos governadores da região, no dia seguinte da tragédia de Beslan. Um governador nomeado pelo presidente seria mais qualificado que um eleito, para lutar eficazmente contra o terrorismo?
Migrações
Imigrantes ou cidadãos russos, os “nelegaly” ilustram a realidade de um país onde a ausência de direitos, a corrupção e a arbitrariedade policial marcam profundamente a vida cotidiana
A implosão da URSS e a constituição, em seu território, de Estados independentes, foi acompanhada de importantes movimentos de população. Para a Rússia: onde voltaram a se instalar, em meio a dificuldades, mais de 8 milhões de russos (dos 25 milhões que viviam fora de suas fronteiras), entre 1990 e 2002. Para fora da Rússia: com a partida dos judeus (e muitos não judeus) para Israel (942 mil) e a Alemanha (170 mil), além de alemães ditos “do Voga” para a Alemanha (2,1 milhão, dos quais 600 mil provenientes da Rússia e o resto da Ásia Central, para onde tinham sido deportados por Stalin2).
Depois, os fenômenos migratórios mudaram de natureza. Os habitantes das regiões povoadas de maneira voluntarista (Sibéria oriental, região Norte) voltaram para a Rússia européia. O sul da Rússia viu chegarem os refugiados do Cáucaso. A Federação Russa atraiu, sobretudo, numerosos habitantes dos novos Estados, da Ucrânia até a Ásia Central: entre três e cinco milhões de pessoas, dependendo da época do ano, vêem à procura de um trabalho e de um salário um pouco melhor. Eles trabalham essencialmente na construção, exploração florestal, comércio e serviços. Concentram-se em Moscou (um milhão, principalmente nas grandes obras). A imigração proveniente da China, limitada a Moscou e à zona da fronteira, continua sendo ocasional e de curta duração (menos de quatro meses).
Quase todos esses trabalhadores são nelegaly (ilegais), mantidos num ambiente de não-direito, vítimas de todos os desígnios do trabalho forçado: passaportes confiscados; barracas como alojamento; horário de trabalho desumano; salários miseráveis, muitas vezes pagos com atrasos consideráveis; expulsão no caso de reclamarem. Soma-se a esta super exploração a arbitrariedade de um governo muitas vezes cúmplice dos traficantes de mão de obra e de uma polícia que espanca.
O mesmo acontece com os nelegaly do interior, os trabalhadores que deixam sua região russa em dificuldades e migram para outra, na esperança de trabalhar em uma grande obra. Eles também são submetidos pelos patrões a todo tipo de trabalho e obrigações. Cidadãos da Federação Russa em sua região de origem, acabam quase sem direitos em outras regiões. Herança do período soviético, apenas o titular de uma licença de residência permanente, concedido pela propiska ( «registro na milícia»), goza de direitos políticos e sociais como, por exemplo, direito à habitação e a atendimento médico.
Imigrantes ou cidadãos russos, os nelegaly ilustram, como caso extremo, a realidade de um país onde a ausência de direitos, a corrupção e a arbitrariedade policial marcam profundamente a vida cotidiana. Sempre alardeando números fictícios sobre a imigração, o poder impõe uma gestão policial da imigração. Entretanto, os demógrafos não se cansam de repetir: a imigração representa uma necessidade vital em um país que perde, a cada ano, um milhão de habitantes. A reconstrução da economia aumentará consideravelmente as necessidades de mão de obra…
Nacionalismo
A política é ultraliberal. Mas o poder se apresenta como defensor da grandeza da Rússia, contra os que se esforçam por sabotá-la. Nisso estão incluídas as ONGs, denunciadas por Putin como «quinta coluna»
“A Rússia para os russos”. Segundo uma pesquisa de junho de 2005, realizada pelo Instituto Pan-russo de Estudos de Opinião Pública (VTsIOM) de Iouri Levada3, 58% da população se reconhece, em diferentes graus, neste mote. Eis um índice da influência crescente das idéias nacionalistas sobre uma população levada a designar o outro como principal responsável dos problemas do seu presente. Esta visão de mundo corresponde, desde o ano 2000, à ideologia oficiosa do poder. Este apresenta sua política como a de defesa da grandeza da Rússia, contra aqueles que, tanto do exterior como do interior, se esforçam por sabotá-la. Nisso estão incluídas inclusive as organizações não-governamentais, denunciadas por Putin, em seu Discurso à Nação em 2004, como uma «quinta coluna» financiada por governos estrangeiros.
Esta roupagem nacionalista da política – aliás, ultraliberal – do poder marca uma virada em relação aos anos 90: tal discurso era, então, apanágio da oposição patriótica que, liderada pelo Partido Comunista da Federação Russa (KPRF), descrevia o poder de Yeltsin como a serviço do estrangeiro, obcecado em destruir a Rússia. Amplamente reforçado pela mídia, ele agora invade todo o espaço público. Suas teses se banalizam a tal ponto que encontramos, nas livrarias, prateleiras inteiras de literatura nacionalista. Privada de seu carro-chefe, a oposição ficou reduzida a gritar mais alto: ela acusa o poder de não defender de maneira bastante conseqüente os interesses da grande Rússia. Se o anti-semitismo ainda é virulento, o discurso xenófobo apoia-se na guerra da Tchetchnia para questionar os «não russos» — os imigrantes da Ásia Central ou do Cáucaso, mas também os norte-americanos imperialistas, que, no imaginário da população, ainda são os inimigos da Rússia.
Este discurso, em suas diversas variantes, tem um impacto real no seio da população. Ele explora um terreno favorável: a deterioração das condições de vida, o sentimento de impotência diante dos acontecimentos, a desesperança provocada por um futuro cheio de obstáculos. Tudo isso instiga, na Rússia como em outras partes, a transformar o «estrangeiro», próximo ou distante, em bode expiatório. Em certas regiões, populações já empobrecidas vivem o afluxo de refugiados, em particular os tchetchnos, como um perigo para sua própria situação. Além disso, a sorte reservada aos russos em certos Estados recém criados (a começar pelos países bálticos) e as «revoluções pacíficas» recentes (interpretadas como um «complô» norte-americano) reforçam ainda mais a impressão de que a Rússia é «vítima» de ações estrangeiras hostis.
As palavras se traduzem em atos, geralmente impunes: centenas de agressões, dezenas de assassinatos. As organizações de direitos humanos apontam quarenta, só em 2004. Eles são, freqüentemente, obra de skinheads, cujo número, pequeno durante o regime soviético (estavam principalmente entre as torcidas de futebol), não para de crescer: conta-se entre 50 mil e 60 mil. Relativamente isolados uns dos outros, esses grupos professam a mesma ideologia de extrema direita «em atos» como agressões, incursões anti-caucasianos nos mercados, ataques em manifestações ou concertos. Sinal dos tempos: enquanto denunciavam o poder de Yeltsin como sionista, eles apóiam o presidente Putin, qualificado como defensor dos valores nacionais. Em troca, o partido majoritário Rússia Unida e a organização da juventude ligada a Putin, denominada Nashi («os nossos») os cortejam corte. É verdade que, já há algum tempo, os skinheads se envolvem menos com os «morenos» do que com militantes da oposição.
Oligarcas
Embora mais discreta que a primeira, nem por isso a “nova” oligarquia é menos rica e poderosa. Sete pessoas íntimas do presidente controlavam 40% do PNB russo em 2004
Antes de tudo, derramemos algumas lágrimas pelo destino de Mikhail Khodorkovski, ex- responsável pela Companhia petroleira Youkos, oligarca russo consagrado como mártir da política repressiva do Kremlin depois de sua condenação, em 1o. de junho 2005, a nove anos de prisão, por graves desvios financeiros. É verdade que dezenas de oligarcas, todos, como ele pouco preocupados com a legalidade, durante o processo de saque das riquezas nacionais, deveriam estar também ao seu lado. Sua prisão deveria, porém, lembrar aos democratas mobilizados por seu destino as dos outros prisioneiros de consciência da Rússia putiana, a começar por algumas dezenas de jovens militantes do partido nacional-bolchevique4. Alguns já foram condenados a penas de prisão que vão de um a três anos, por ações simbólicas; outros correm o risco de pegar até oito anos por “tentativa de tomada do poder”! Eles haviam ocupado com panfletos e bandeiras os locais da administração presidencial…
Os oligarcas – Vladimir Potanin, Oleg Derepaska, Roman Abramovitch, Alexandre Khoponin e muitos outros – comportam-se muito bem. Eles tiveram a prudência de assegurar ao Kremlin seu juramento de obediência, ao contrário de Klodorkovski, que forneceu ao poder a ocasião de encenar «a luta anti-oligárquica», concessão a uma opinião pública profundamente hostil àqueles que privatizaram, por dois tostões, as riquezas do país.
Ao lado dos «antigos», que, afastados da política, dedicam-se aos seus negócios, recém chegados, formam uma nova oligarquia. Embora mais discreta que a primeira, nem por isso é menos rica e poderosa. Sete pessoas íntimas do presidente controlavam 40% do PNB russo em 20045. Dirigem ou fazem parte do Conselho de Administração de diversas companhias, semi-estatais ou privadas, em posição de quase monopólio no mercado. Entre os conhecidos estão o chefe da administração presidencial Dimitri Medvedev (do gás Gazprom); seu assessor Igor Setchin (do petróleo Rosneft); o ex-dirigente da administração presidencial, Alexandre Volochin (do gigante da eletricidade RAO EES); o ministro das finanças Alexei Koudrin (do gigante do diamante Alros e do poderoso Banco Vnechtorgbank)…
A tendência à acumulação dos principais cargos políticos e econômicos não significa absolutamente um processo de nacionalização dos setores importantes da economia nacional. O Estado continua a se retirar e os grupos controlados por esses «novos oligarcas» aperfeiçoam-se para afastar qualquer risco que possa deixar escapar os lucros da oligarquia.
Partido Comunista
Muito pouco presente no espaço sindical, o Partido Comunista considera as lutas sociais como se devessem servir às suas estratégias de poder
Principal força de oposição nos anos 90, majoritário na Duna até 1999, o Partido Comunista da Federação da Rússia (KPRF) não passa de uma sombra de si mesmo. Sua queda resulta tanto da orientação de sua direção quanto dos golpes que sofreu do Kremlin.
Desde sua fundação, em fevereiro de 1993, o KPRF lançou-se à construção de um grande movimento “patriótico”, mais nacional (a defesa da Rússia como grande potência) que social. Seu secretário geral, Gennadi Ziuganov, transformou-se em fervoroso propagandista da “idéia russa”: ele chegou a dar, a uma de suas brochuras, o título Sou russo pelo sangue e o coração 6. No Derjava7 (“Grande potência”), ele pinta período soviético como um momento doloroso em uma história milenar cuja continuidade – do Império czarista à URSS – importa mais que as rupturas.
Seria incorreto ver nisto um simples «arranjo» ideológico consecutivo à derrocada da União Soviética. As raízes desta ideologia nacional estatizante mergulham na história. Quando dos debates que acompanharam a formação da URSS, Lênin denunciou Stálin como defensor da Rússia grande potência, na mais estrita continuidade com o período do Império Czarista. Mas, como ressalta Moshé Lewin8, o que na boca de Lênin representava o mais grave dos insultos se torna, nos anos 1970, um cumprimento. O historiador Nikolai Mitrokhine mostra o quanto este nacionalismo “grande Rússia” serviu, depois da metade dos anos 50, de ideologia de referência a grupos significativos dentro do Partido Comunista e do aparelho de Estado da Federação da Rússia9.
Desde o fim da URSS, o KPRF consagra o essencial de sua energia para conservar, com um certo sucesso, fatias de poder no centro e nas regiões. Mas não se mostra nada conseqüente em sua denúncia de um poder que seria coveiro da Rússia. Majoritário na Duna até 1999, ele nunca procura colocar o Executivo realmente em dificuldade. Muito pouco presente no espaço sindical, considera as lutas sociais como se devessem servir às suas estratégias de poder. No início de 2005, ele tentou, em vão, controlar as mobilizações contra a monetarização dos direitos sociais, opondo-se a toda constituição de coordenações unitárias… que não controlaria.
O discurso nacionalista do poder reduziu, evidentemente, a margem de manobra de um partido que se pretendia, antes de qualquer coisa, o melhor defensor dos interesses históricos da Rússia. De tal forma, aliás, que o Kremlin não hesita em cooptar sistematicamente os dirigentes comunistas. Um «milionário vermelho», Gennadi Semiguin, realiza esta ofensiva de dentro do próprio partido, comprando certos responsáveis com dólares. Ponto culminante deste trabalho de solapamento foi a realização de um congresso alternativo em julho de 2004, paralelamente ao X Congresso do KPRF – uma etapa em direção ao desaparecimento de um partido cujos resultados eleitorais, cada vez mais débeis, refletem a pouca credibilidade como oposição ao poder.
Política (ficção)
Ir às ruas torna-se cada vez mais freqüente, como fazem mais de 1 milhão de pessoas, entre janeiro e março de 2005, para protestar contra a “monetização dos direitos sociais”
Como apresentar um espaço político que não existe ou se apresenta somente sob a forma de simulacro e de espetáculo? Desde 2000, o Kremlin conseguiu, com um sucesso não desprezível, eliminar os embriões de sistema político que surgiram há cerca de dez anos, para organizar melhor a vida política segundo o esquema: “Um partido, um sindicato, uma sociedade civil”.
Após a reeleição de Putin, em março de 2004, adotou-se uma série de medidas que bloqueia a vida institucional e impede o surgimento de novos atores: reforço dos obstáculos formais às manifestações e greves; fim das eleições diretas dos governadores de região e de prefeitos; impossibilidade prática do referendo; abolição do escrutínio uninominal nas eleições parlamentares nacionais; elevação da cláusula de barreira para os partidos, de 5% para 7%; recusa, na prática, do registro de novos partidos, etc. Para se manter como oposição, é necessário, a exemplo do Partido Comunista da Federação da Rússia ou da Rodina («Pátria») aceitar, ao menos em parte, as regras do jogo do Kremlin.
Mas esta lógica não é perfeita. A crescente redução das possibilidades institucionais de pressão sobre o poder político conduz os diferentes componentes da sociedade a expressar de outra forma as tensões, as aspirações e as reivindicações. Cada vez mais as pessoas tomam as ruas, como fizeram mais de um milhão de pessoas de janeiro a março de 2005 para protestar contra a chamada “monetarização das vantagens sociais”. As associações, os sindicatos e os partidos políticos devem, desta maneira, escolher: persistir numa estratégia de clientelismo e de lobby com relação ao poder ou então ouvir as reivindicações e assumir o risco de uma franca oposição. No limite, o bumerangue poderia muito bem se voltar contra o poder monolítico do Kremlin.
Isto se aplica também para a “sociedade civil”. Já em dezembro de 2001, um Fórum Cidadão, reuniu, no Palácio do Congresso (Kremlin) 5 mil representantes de associações e de ONGs, dispostos a manifestar sua lealdade para com o presidente Putin. A partir de então, para maior segurança, o próprio poder implanta órgãos “representativos”, como a nova Câmara Cívica, que reúne especialistas, artistas eméritos, dirigentes de associações e sindicais, todos escolhidos mais ou menos diretamente pelo presidente da Federação por sua «alta consciência cívica». Estes escolhidos de Putin deverão logo aconselhar os projetos de leis que ele proporá e que seu partido adotará. Independência garantida…
Mas esta lógica não deixa de ter falhas. A redução crescente dos espaços institucionais de pressão sobre o poder político conduz os distintos componentes da sociedade a exprimir de outro modo as tensões, aspirações e reivindicações. Ir às ruas torna-se cada vez mais freqüente, como fazem mais de 1 milhão de pessoas, entre janeiro e março de 2005, para protestar contra a “monetização dos direitos sociais”. As associações, sindicatos e partidos políticos devem escolher: persistir numa estratégia de clientelismo e de lobby junto ao poder, ou colocar-se à escuta das reivindicações e assumir o risco de uma oposição aberta. Com o passar do tempo, o bumerangue pode se voltar contra o poder monolítico do Kremlin…
Regiões
No plano político, Putin reforçou a “verticalidade do poder”, garantida pela nomeação dos governadores de região e a posição dominante do “partido do poder” (Rússia Unida)
“Moscou não é a Rússia”. Para a grande maioria da população das regiões, a capital simboliza, ao mesmo tempo, as riquezas proibidas aos provincianos e um poder central predatório achacando o interior.
O presidente Putin está na origem da volta à centralização do poder e dos recursos. Ele considerava que seu antecessor tinha deixado as autoridades regionais assumirem muita autonomia, em todos os terrenos: político, jurídico, econômico. No plano político, tratou de reforçar a «verticalidade do poder», a partir de então garantida pela nomeação dos governadores de região e a posição dominante do “partido do poder” (Rússia Unida) na quase totalidade dos Parlamentos e outras estruturas regionais e locais.
A voracidade do centro não é menor com relação aos recursos: uma reforma de junho de 2003 fez com que o percentual de impostos devidos ao centro passasse a 60%, em vez de 50% – sem compensação de um crescimento das transferências orçamentárias às regiões, sendo que a maioria delas são dependentes financeiramente (somente quinze regiões em oitenta e nove dispõem de autonomia orçamentária).
As reformas em curso atribuem às regiões as maiores cargas sociais: financiamento da saúde pública para os inativos, educação desde a creche até a escola secundária e até mesmo certas instituições públicas de educação superior, que retrocederam à condição de estabelecimentos regionais. Na grande reforma do verão de 2004, a repartição do financiamento (parcial) dos auxílios sociais foi feita em prejuízo das regiões, que devem assegurar a maior parte dos benefícios. As transferências orçamentárias só cobrem uma parte destas novas cargas, tendo, entretanto, como condição, que os poderes regionais demonstrem «lealdade».
As conseqüências desta política já se fazem sentir: fechamento de escolas e de hospitais, congelamento dos salários dos professores e médicos, mas também negativa de tratamentos, medicamentos e transportes públicos para as categorias privadas do acesso gratuito a estes serviços. Em inúmeras regiões, a crescente incapacidade das autoridades regionais e municipais para assumir suas obrigações sociais ameaça sua legitimidade. No limite, estas reformas só podem agravar as disparidades regionais e, como conseqüência, alimentar as tendências centralizadoras…
Resistências sociais
Diante da ofensiva anti-social do governo, pipocam mobilizações e alternativas.
Reivindica-se a política, fora dos espaços institucionais oficiais
Há um ano, assistimos à emergência de novos movimentos sociais, com a revolta dos “homens e mulheres sem qualidades”: aposentados, inválidos, estudantes sem futuro, residentes de alojamentos de trabalhadores, desassistidos das regiões sinistradas, todos aqueles que não suportam mais a política anti-social do poder e que se mobilizam fora das organizações tradicionais, em estruturas unitárias e nas redes de luta.
No último inverno, em quase todas as cidades, dezenas de milhares de pessoas tomaram – alguns cotidianamente – a rua, para protestar contra uma lei que questionava os direitos sociais, dos aposentados aos estudantes, passando pelos inválidos e professores. À ofensiva anti-social em todas as frentes, a população respondeu por uma resistência em todas as frentes, em torno de reivindicações concretas: transportes e medicamentos gratuitos, bolsas de estudos, baixa das tarifas de água e de eletricidade. E este movimento contribuiu para reivindicar a política, fora dos espaços institucionais oficiais: os Sovietes (Conselhos) regionais de coordenação das lutas, surgidas no inverno passado, fundaram uma rede inter regional, a União dos Sovietes de Coordenação (SKS), reagrupando cerca de vinte regiões.
Em cada região, eles reúnem associações, sindicatos, organizações políticas, indivíduos e militantes em diversos temas: garantias sociais, direitos do trabalho, da habitação, ecologia etc. O Soviete de Solidariedade Social (SOS) reagrupa associações e sindicatos panrussos (sindicatos alternativos, defensores dos direitos do homem, associações de inválidos e de vítimas de radiações de Chernobyl, organizações de aposentados, etc). Criada no verão de 2004, esta coordenação é bem menos implantada nas regiões que o SKS. Mas as duas redes colaboram. SOS contribuiu amplamente para a organização do Fórum Social da Rússia, que reuniu, em abril de 2005, em Moscou, mais de 1 mil representantes. de uma centena de organizações.
Nesta ocasião, foi lançada a Frente de Esquerda, cujo congresso de fundação deve ser realizado em novembro. Seu objetivo: fundar um amplo movimento em torno de uma plataforma internacionalista e de ruptura com a globalização capitalista, reagrupando organizações de esquerda já existentes, militantes não filiados, jovens militantes (principalmente os Komsomols – juventudes comunistas – em processo de renovação), os sindicatos de oposição bem como os Sovietes regionais que reapareceram.
Além destas estruturas, a Rússia conhece uma multiplicação de iniciativas cidadãs na base: as lutas locais, em torno de desafios muito concretos e pragmáticos (contra a construção de um imóvel ou de um estacionamento numa área de recreação de um bairro, contra as expulsões de residentes de moradias de trabalhadores, contra casos concretos de repressão policial etc.). Elas multiplicam-se e começam a agir coordenadamente, muitas vezes com o apoio dos conselhos de coordenação mais ativos. Desta forma se constrói um movimento social portador de futuro.
(Trad.: Celeste Marcondes)
1 – Ler “Anatomy of a Crisis”, em Russia/USSR/Russia, The Drive and Drift of a Su