Despolitização da política econômica e avestruzes
A política do presidente para a pandemia tem suas raízes na opção de mais de 57 milhões de brasileiros por negar a política. No ano eleitoral de 2018, do qual Bolsonaro saiu vitorioso, apenas 9% da população se declarava satisfeita com a democracia, segundo o informe anual do Latinobarómetro
Para analisar a inserção internacional do Brasil no enfrentamento à pandemia da Covid-19, o professor Oliver Stuenkel, da FGV-SP, cunhou o termo “aliança de avestruzes“, situando o país junto a seus pares que negam a gravidade da crise sanitária global e rejeitam as normas preconizadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como necessárias à sua superação. Metaforicamente enterrando a cabeça num buraco, o governo Bolsonaro, assim como os de Nicarágua, Bielorússia e Turcomenistão, optou por subestimar a ameaça representada pelo vírus. As consequências para a saúde pública logo se traduziram, previsivelmente, na dificuldade em conter o avanço da epidemia e nas dezenas de milhares de mortos e contaminados Brasil afora. Já as repercussões socioeconômicas daí decorrentes nada têm de previsíveis e possuem potencial explosivo para os meses que virão.
A política do presidente para a pandemia tem suas raízes na opção de mais de 57 milhões de brasileiros por negar a política. No ano eleitoral de 2018, do qual Bolsonaro saiu vitorioso, apenas 9% da população se declarava satisfeita com a democracia, segundo o informe anual do Latinobarómetro. Naquele contexto, 90% dos entrevistados acreditavam que se governava “para uns poucos”. O mal-estar generalizado se retratava também na percepção de progresso no país, registrada por somente 6% dos brasileiros. Na esteira de uma das piores recessões econômicas da história nacional e em meio a escândalos de corrupção envolvendo a elite política tradicional, o terreno estava fértil para que aventuras populistas florescessem. Foi então que o bolsonarismo triunfou, instrumentalizando em seu favor a insatisfação popular com o establishment.
Embora o caso brasileiro seja digno de nota por conta de toda sorte de peculiaridades que inclui (guerra cultural, milícias, terraplanismo, indústria de fake news etc.), a realidade é que a crise da democracia liberal é um fenômeno patente no mundo ocidental, como se pode observar pelo avanço de lideranças, partidos e movimentos populistas no século XXI. Note-se aqui que populismo não é um rótulo a ser distribuído a qualquer governo “fiscalmente irresponsável” ou que possui “lideranças carismáticas”. Há um debate acadêmico em torno do conceito, que visa a delimitá-lo, em linhas gerais, nos termos de uma estratégia política que promove o conflito entre o povo, tratado propositalmente de forma homogênea, e o establishment, supostamente corrupto e cujas ações se orientariam apenas por seu próprio benefício. No discurso populista, a corrupção das elites é o obstáculo que impede a realização da vontade popular – também tratada de forma imprecisa e propositalmente generalizada.
Personificando os interesses do povo, o líder populista assume então a missão de implementá-los a partir do rompimento com o sistema político vigente. Para isso, uma vez eleito, busca sempre deslegitimar as demais instituições de representação democrática, a exemplo dos partidos políticos e do parlamento, e manter permanentemente mobilizada sua base eleitoral por meio de canais diretos de comunicação. Esta, por sua vez, possui com seu líder uma relação pautada pela fé e não por resultados concretos entregues pelo governo. Isso torna palatável a atribuição da culpa por seus possíveis fracassos às ações do establishment, o que, como consequência, confere legitimidade a aspirações ou eventuais guinadas autoritárias. Nessas circunstâncias, uma diferença para experiências históricas fascistas residiria na necessidade populista de se legitimar periodicamente por meio de processos eleitorais, que conservariam a democracia em sua forma, mas a desproveriam gradativamente de seu conteúdo liberal.
Consideremos então um país hipotético onde um presidente populista, em meio à cruzada contra o establishment, tem seu governo fortemente abalado por um fator exógeno que afeta sobremaneira a estabilidade socioeconômica nacional. Para piorar, seus familiares são investigados por envolvimento em atividades ilegais variadas, que colocariam em xeque, perante sua base eleitoral, o viés antissistema de sua gestão e sua legitimidade enquanto “o povo no poder”. Nesta situação extremada, é plausível vislumbrar o cenário em que uma guinada neofascista acelera a implosão dos pilares da democracia liberal e promove a perseguição aos inimigos do governo, de modo a ajudá-lo a se perpetuar no poder. Esse é um caminho que já nos soa familiar. Mas o mundo real é menos previsível, sobretudo se consideradas as interações entre atores políticos variados, os condicionantes institucionais que moldam seus comportamentos e as demais variáveis ainda não percebidas, que tendem a minar projeções no tempo presente.
A preocupação com o fascismo à brasileira é, em todo caso, legítima. Em artigo recente publicado na Folha de S. Paulo, professores da USP apresentam motivos mais que suficientes para tanto. Ao atribuir a ameaça ao “vácuo deixado pelas forças tradicionais de direita” no país, porém, os autores deixam de captar elementos que, em nossa visão, são imprescindíveis à compreensão do fenômeno. Por que cidadãos de diversos países no ocidente vêm usando canais democráticos para eleger governantes que prometem combater o sistema?
A busca de explicações para isso vai estruturar agendas variadas de pesquisas acadêmicas pelas próximas décadas. Mas boa parte delas deve estar relacionada à dinâmica disfuncional que o capitalismo adquiriu, a partir do último quarto do século XX, para a maioria da população de Estados nacionais. Para compreendê-la, contudo, convém antes observar as décadas anteriores, do imediato pós-guerra, conhecidas como os “anos dourados do capitalismo”.
Uma diferença fundamental entre a ordem internacional arquitetada em Bretton Woods, em 1944, e a que a sucedeu e permanece vigente é o papel proeminente relegado à política naquela realidade. Em um contexto de controle do fluxo internacional de capitais e de câmbio fixo entre as moedas nacionais (o padrão ouro-dólar), governos eleitos gozavam de maior autonomia para implementar suas respectivas agendas. Ao mesmo tempo, a estabilidade do crescimento econômico mundo afora e o empoderamento dos trabalhadores (organizados sobretudo em sindicados e partidos políticos) viabilizaram a consolidação de um pacto social que priorizava o bem-estar dos cidadãos, refletindo-se na proeminência dos regimes sociais-democratas de então. Nesse cenário, a opção eleitoral entre direita e esquerda se fazia perceptível no mundo real: enquanto partidos de esquerda tendiam a privilegiar políticas de bem-estar, ainda que em detrimento do controle inflacionário, os de direita, em linhas gerais, conferiam maior importância à estabilidade monetária.
Naturalmente, essa era uma lógica predominante nas economias mais avançadas do mundo ocidental. Mas mesmo governos de países periféricos, como o Brasil, tinham margem de manobra para perseguir suas respectivas estratégias de desenvolvimento – inclusive com o apoio financeiro de instituições da governança econômica internacional. Desse modo, Estados desenvolvimentistas, da América Latina à Ásia, promoveram a industrialização de suas economias, que lograram se expandir e se complexificar em algum grau no período.
Esse ciclo virtuoso na economia global duraria até a década de 1970, quando o centro capitalista ingressou em um período de estagflação, o que comprometeu o pacto social proveniente de Bretton Woods e a paridade fixa entre taxas de câmbio. A partir de então, uma série de decisões políticas reconfiguraria a ordem econômica internacional. Nesse novo cenário, os imperativos do neoliberalismo e da financeirização subverteriam a autonomia de governos nacionais em relação ao fluxo internacional de capitais e minariam a capacidade de organização e o poder político desfrutados pela classe trabalhadora – ambos imprescindíveis à conformação do welfare state.
Essa nova ordem se operacionalizou por meio de um conjunto de processos comumente conhecidos como globalização e possui em seu âmago o impulso pela despolitização da política econômica. Os mecanismos para seu estabelecimento incluíram a progressiva liberalização das contas financeiras de economias nacionais e a reorganização de grande parte da estrutura produtiva capitalista em cadeias globais de valor. Desse modo, diante da lógica concorrencial que passou a reger a relação entre Estados para atrair capitais de investidores operando em um sistema financeiro em escala global, a arquitetura institucional voltada ao bem-estar social passou a ser vista como obsoleta. Mais do que isso, difundiu-se a ideia de que eram fiscalmente insustentáveis diante do imperativo de se reduzir os gastos do Estado, assim como de se inverter a progressividade de seus sistemas tributários, em sintonia com o substrato ideológico da era da globalização.
Há uma vasta produção acadêmica que demonstra como o capitalismo neoliberal e financeirizado comprometeu o crescimento sustentado de economias nacionais e promoveu a concentração de renda, o desemprego e a progressiva precarização do trabalho. Paralelamente, um setor financeiro proeminente, fortemente desregulamentado e propenso a desencadear crises sistêmicas, passaria a ditar os rumos de países, sempre em desfavor dos menos desenvolvidos. Nesta realidade, governos nacionais que perdem a “confiança” de agentes do mercado sofrem com fugas de capitais de suas economias, que podem rapidamente se transmutar em ataques especulativos a suas moedas e nas consequências deletérias daí decorrentes. É assim, visando à mitigação desse risco, que a agenda da austeridade fiscal e de reformas liberalizantes se impõe supranacionalmente.
À esquerda e à direita, como consequência, governos se veem constrangidos a favorecê-la. Essa tendência de despolitização da política econômica, que a faz convergir em torno de pautas tradicionalmente de direita, vem conferindo proeminência a temas identitários na localização partidária no espectro ideológico de um determinado país. Naturalmente, os situados mais à esquerda conservam a aspiração de ampliar a provisão pública de bem-estar social, mas dificilmente têm condições de realizá-la quando chegam ao poder.
Tal fenômeno, em alguma medida, é observável em países de distintos graus de desenvolvimento e se materializa por meio da criação de uma institucionalidade voltada a blindar a gestão da política econômica de pressões democráticas. Essa é a lógica propagada por instituições da governança econômica global desde o último quartel do século XX, como se pode observar nas recomendações da OCDE, do FMI e de agências de classificação de risco, por exemplo, para a gestão da economia nacionais. É nesse contexto que governos do Partido Democrata, nos Estados Unidos, e de partidos sociais democratas europeus – autoproclamados “terceira via” – se tornaram adeptos da diminuição da ação do Estado no plano econômico, comprometendo sua agenda tradicional de políticas sociais.
No Brasil, o mesmo movimento se refletiu em uma série de reformas liberalizantes, inspiradas no Consenso de Washington, implementadas sobretudo durante a década de 1990, mas que voltaram a ganhar força nos últimos anos. É nesse sentido que deve ser compreendida a agenda de privatizações, de mudanças constitucionais que tolhem direitos dos trabalhadores – a exemplo das reformas trabalhista e da previdência –, de legislações como a Lei de Responsabilidade Fiscal e a Emenda Constitucional 95 e as pressões pela independência do Banco Central. Ao fim e ao cabo, o que se busca com isso é imobilizar governos propensos a atender as demandas sociais de seus eleitores, de modo a se sinalizar aos credores do Estado, dispersos no mundo financeiro, que seus interesses sempre terão prioridade sobre os dos cidadãos. Daí se compreende porque o primeiro governo Lula e o segundo governo Dilma aderiram a uma agenda de política econômica similar às das gestões neoliberais que os precederam e sucederam, respectivamente.
Esse efeito perverso sobre a dinâmica político-partidária vem se traduzindo, de forma cada vez mais evidente, na insatisfação popular com o establishment político em variados países, uma vez que a maioria dos eleitores se vê sem alternativas para melhorar um sistema disfuncional ao seu bem-estar e que, no limite, impede sua própria subsistência. Torna-se, então, tentador recorrer a políticos populistas que instrumentalizam esse sentimento em seu benefício eleitoral. Em outras palavras, a ameaça neofascista que nos ronda parece estar mais associada ao vácuo deixado pela esquerda, no campo da política econômica, do que pela direita, como diagnosticado pelos professores da USP. Em última instância, as raízes dessa realidade, que incide mais negativamente sobre a agenda tradicional da esquerda, remetem à estrutura do capitalismo global, que condiciona e restringe a gestão econômica de Estados nacionais.
A evolução fez com que os avestruzes, ao perceberem alguma ameaça, desenvolvessem o hábito de aproximar suas cabeças ao solo, para que, à distância, potenciais predadores os confundam com uma rocha. Trata-se, portanto, de um instinto relacionado à sobrevivência da espécie. Enterrar a cabeça e ignorar problemas evidentes, por outro lado, é sintoma da involução que incide hoje sobre regimes democráticos mundo afora. Daí a urgência de se repensar o papel do Estado na provisão do bem-estar social e de se reinserir a gestão da política econômica no debate político.
Pedro Lange Netto Machado é doutorando em Ciência Política no Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Iesp-Uerj) e pesquisador associado ao Grupo de Estudos de Economia e Política (GEEP) do Iesp-Uerj e ao Grupo de Pesquisa em Financeirização e Desenvolvimento da Universidade Federal Fluminense (Finde-UFF). Contato: [email protected]