Deus e o diabo na terra de Riobaldo: coisas por demais de muitas!
Querendo entender o mundo, Riobaldo faz, sozinho, um pacto com o diabo. Não com um diabo comum, mas com um diabo paradoxal, invisível, que ora é do mal e ora é do bem. Um diabo humanizado, que ele nomina de renegado, crápula, homem, coxo, jovem, o entristecido… e até “O-que-nunca-se-ri, O-sem-gracejos… porque não existe”
Viver é muito perigoso! afirmou Guimarães Rosa em Grandes Sertões Veredas. Mais do que nunca a frase faz sentido: viver é de fato muito perigoso. Riobaldo, o personagem rosiano que profere tal sentença, estava consciente da existência de um perigo exímio, mas não sabia exatamente o que era. Daí a angústia em lutar por algo aparente na expectativa de atingir o invisível. Em sua doce e ingênua sabedoria, afirma: “todos estão loucos, neste mundo? Porque a cabeça da gente é uma só, e as coisas que há e que estão para haver são demais de muitas, muito maiores diferentes, a gente tem de necessitar de aumentar a cabeça para o total.” Este trecho manifesta a estranheza de Riobaldo, como ser pensante que precisa se relacionar com o desconhecido, que sabe que há perigo próximo, mas não sabe a dimensão do mesmo e, seguindo a lógica do sertão, sugere a necessidade de “aumentar a cabeça” para alcançar o significado das coisas que o golpeiam, abrindo sulcos na terra de seu sertão interior.
Quem leu Grandes Sertões sabe que o personagem Riobaldo é um jagunço de conhecimento limitado, que não dá conta de compreender a subjetividade dos fatos, luta contra a natureza das palavras, mas a falta de habilidade com a linguagem não lhe permite seu uso irrestrito, mantendo fechados os canais que poderiam conduzi-lo para além do pensamento concreto: conclui, grosso modo, que há um mundo espiritual que alimenta o mundo real. Seguro desta premissa e querendo entender o mundo, faz, sozinho, um pacto com o diabo. Não com um diabo comum, mas com um diabo paradoxal, invisível, que ora é do mal e ora é do bem. Um diabo humanizado, que ele nomina de renegado, crápula, homem, coxo, jovem, o entristecido… e até “O-que-nunca-se-ri, O-sem-gracejos… porque não existe”. O personagem, fruto do remoto sertão, teme, respeita, debocha, ironiza e até desafia o diabo que inventa dentro de suas possibilidades de entendimento da vida.
Riobaldo envelheceu, veio a maturidade, a consciência crítica no ato de narrar e passou a refletir suas lutas, os pensamentos desnorteados, a paixão dilacerada, os enganos e que, dentro das mentiras, estiveram suas grandes verdades. Riobaldo relativiza o demônio dentro de uma perspectiva concreta e subjetiva, apesar da luta que empreendeu para não acreditar em sua existência.
Sim Riobaldo, os demônios existem, mas no plural. Têm suas constelações, seus protocolos de luas e sóis. São públicos e domésticos. Têm seus chefes, estabelecem suas sociedades hierarquicamente entre pequenos e grandes, masculinos e femininos, feios e bonitos, atormentadores e acalentadores, torturadores e aprazíveis, religiosos e ímpios, íncubos e súcubos, entre outros, incumbidos em propagar o desenho de suas mentiras/verdades.
Sim Riobaldo, alguns demônios têm olhos lindos e fulminantes e são capazes de secar uma planta, arrancar uma floresta pela raiz. Outros têm língua fina e esguia, falam coisas horríveis e convencem milhares de pessoas com suas insanidades. Chegam a convencer ao suicídio com explosivos atados ao corpo. Alguns parecem inofensivos, mas qualquer diabo, por mais insignificante que seja, carrega sua arma certeira, sua tesoura afiada ideal para cortar desde os laços entre as pessoas, cortar capins para servir aos colegas, até as coisas que estão dentro da gente.
Sim Riobaldo, estamos diante do que parece inominável. Sabemos que há perigo na esquina, mas, como você, não podemos precisar a dimensão desse perigo. Fazemos pactos com Deus, para enfrentar outro “deus” de cascos equinos que ameaça a nossa tão vilipendiada paz. Um deus inventado por gente conivente com a violência, com a tortura, com a selvageria. Um deus tal o que inventaram para abençoar a inquisição, um deus alicerçado no velho testamento. Um deus espelho do demônio, que oferece embasamento para todo tipo de preconceito: misoginia, homofobia, racismo e até licença para matar. Não ri, não ama, não tem graça, é análogo ao seu diabo. A diferença é que não ataca apenas o pensamento, ataca os olhos, os ouvidos… as raízes, as crenças, a existência toda.
Sim, Riobaldo, os demônios existem e as coisas que estão por vir são demais de muitas, maiores, imensas. Será preciso “aumentar muitíssimo a cabeça” para entender, refletir que o diabo pode aparecer travestido de deus. Mas talvez isso também seja demais de muito, meu caro e fiel Riobaldo!…
Lucilene Machado é doutora em Teoria da literatura, professora Universidade Federal Mato Grosso do Sul