Deve-se ter medo do populismo?
O renascimento do populismo marca uma crise da democracia representativa e a presença de uma síndrome de desencantamento. Mas ele não pode ser identificado a priori com um movimento reacionário – ele é o sintoma, não a doençaAlexandre Dorna
Coisa curiosa: o populismo é, geralmente, tratado de forma estereotipada, como um contra-senso ou uma espécie de notícia pitoresca. Serve para analisar de forma assistemática, aqui a vitória de Luiz Inácio “Lula” da Silva, no Brasil, ali a vitória de Hugo Chávez na Venezuela; ontem a ascensão de Bernard Tapie, na França; mais remotamente, o pujadismo ou o boulangismo1 . Outros são acusados de fazerem “telepopulismo”: o presidente do conselho italiano Silvio Berlusconi, o sindicalista Jose Bové, o presidente da Frente Nacional Jean-Marie Le Pen… A análise do termo torna-se difícil e os acontecimentos que ele designa são, quase sempre, inclassificáveis. Desde aqueles que pura e simplesmente recusam-se a fazê-lo, até os que se contentam em compilar2 , são raros os especialistas que definem corretamente populismo.
A etimologia da palavra populismo remete a um outro termo, já carregado de ambigüidade: povo. O discurso populista corresponde a uma forma direta de apelo às “massas”, cuja natureza, intenções e conseqüências provêm de uma apreciação ideológica. Entendido na acepção de “discurso popular”, o populismo não poderia ser identificado a priori com um movimento reacionário, demagógico ou fascista como fazem alguns. Esse amálgama tem como objetivo, há bastante tempo, impedir uma interpretação mais fina e lançá-lo fora da história, como se tratasse de um fenômeno sem raízes, nem causas verdadeiras.
As versões latino-americanas
Desde seu surgimento os movimentos populistas sucederam-se, até a época contemporânea, em nome de valores contraditórios
A diversidade dos movimentos populistas que atravessaram a história mostra a dificuldade de estabelecer comparações, o que não impede de se extrair uma análise que seja comum. Considerando a época moderna, as experiências russa, americana, sul-americana aparecem como as mais típicas.
O populismo latino-americano surge nos anos 1930, está entre os citados com mais freqüência, tendo, ele próprio, um desenho variável. Assumindo os trajes da esperança, em nome da nação e da justiça social, algumas de suas figuras carismáticas emergem em situações provocadas por governos fracos e corruptos. De todas essas experiências, a do carismático Juan Domingo Perón e os discursos inflamados de sua esposa “Evita” ainda é a mais conhecida. O peronismo encarna uma tríplice reivindicação: nacionalismo, anti-imperialismo e “transclassismo”.
Valores contraditórios
Particularmente durante o primeiro governo de Perón (1946-1951) foram dadas garantias às classes desfavorecidas – os descamisados. É difícil compreender a presença ainda viva do mito peronista de outra maneira. A Argentina conheceu, com Perón, uma política social das mais avançadas da América Latina, o star system e, precocemente, o declínio da esquerda.
Na esteira dessa onda, os movimentos populistas sucederam-se, até a época contemporânea, em nome de valores contraditórios: no Equador, durante o breve governo de Abdalá Bucaram (maio 1996-fevereiro 1997) que, rodeado pelos homens mais ricos do país propôs um… “governo dos pobres”; no Peru, no governo liberal de Alberto Fujimori ; ou ainda na presidência “social” de Hugo Chávez, na Venezuela. Formado em ciências políticas na universidade Simón Bolivar, esse ex-militar golpista conseguiu reunir e direcionar uma onda popular crescente, que não aceitava a corrupção dos aparelhos políticos e se cansava à espera de uma mudança.
Tendência liberal
Antes de chegar ao poder, o ex-sindicalista brasileiro, Luiz Inácio “Lula” da Silva, dirigente carismático do Partido dos Trabalhadores (PT), foi durante muito tempo apresentado como um populista. Desde que está no Planalto e, ainda conservando um discurso de esquerda, como mostrou-se pragmaticamente disposto a pactuar com as instituições internacionais – especialmente o Fundo Monetário Internacional (FMI) – e a realinhar suas posições, o adjetivo é menos freqüentemente associado a seu nome.
Se, antes, a ideologia era socializante ou nacionalista, a tendência liberal leva mais vantagem nesses últimos anos. Fala-se também agora em “telepopulismo”
Se, antes, a ideologia era socializante e/ou nacionalista, a tendência liberal leva mais vantagem nesses últimos anos, como mostraram Carlos Menem, na Argentina, e Fujimori, no Peru. Outra diferença: os movimentos populistas recorrem muito ao marketing e à mídia. Fala-se em telepopulismo. Contudo, “Lula” da Silva e Hugo Chávez estão numa situação paradoxal: no Brasil, nas suas três tentativas anteriores de chegar à presidência da República, a mídia fez campanhas violentas contra “Lula”; só se aliou tardiamente na quarta vez, quando seu discurso de esquerda perdeu o radicalismo. Na Venezuela, a oposição dominou a mídia privada e é com esse apoio que ela conduz sua campanha de desestabilização contra o presidente Chávez.
Novos populismos
Entretanto, em toda parte, as campanhas políticas dos neo-populistas conseguem utilizar com habilidade as novas tecnologias da comunicação. Lembramos que, no México, o sub-comandante Marcos tornou-se um mestre na arte da comunicação política. Em razão disso, se ele arregimenta o(s) povo(s) (indígena e mexicano), e não pretende, em nenhum caso, tomar o poder – ainda que tivesse a possibilidade de fazê-lo. Populismo?
Esse fenômeno político não é exclusivo da América Latina. Algumas tentativas também aconteceram na França e, atualmente, em vários lugares, novas experiências se multiplicam no mundo. Dessa história, rica e contraditória, é difícil extrair uma concepção homogênea de populismo. Contudo, muitos pontos de referência podem ser identificados.
Apelo psicológico
Em primeiro lugar, o populismo é acima de tudo um fenômeno de transição, eruptivo e quase efêmero, que se desenvolve no interior de uma crise generalizada e de um status quo político-social insustentável para as maiorias. É uma campainha de alarme, uma advertência barulhenta e barroca, mais do que uma explosão que não deixaria pedra sobre pedra à sua passagem. O populismo não conduz forçosamente a uma mudança definitiva de regime. Certamente, se a mensagem não for compreendida pela classe dirigente, então o apelo ao povo representa uma solução de mudança para uma situação bloqueada. A chave não é a efervescência social que o acompanha, mas o fundamento emocional que o anima. O cimento que lhe dá consistência não é sociológico, é psicológico. É uma reação de cólera e desconfiança em relação às instituições e diante das forças centrífugas que ameaçam os mitos fundadores das nações.
O populismo não pretende ser uma teoria global ou uma concepção do homem e da sociedade, mas, antes de tudo, uma vontade de reconstrução do bem comum
Em segundo lugar, o populismo é sempre encarnado por um homem providencial, carismático. Provavelmente é aí que a análise psicológica3 encontra plenamente seu lugar. Como a energia é contagiosa, o carisma desempenha um papel anti-depressivo. Pois, é o jogo da sedução, do contato direto e caloroso, que permite mobilizar e organizar um povo resignado, porém encolerizado. É seu caráter “pluriclassista” e transversal que o torna capaz de atravessar as divisões políticas clássicas. O apelo populista dirige-se a todo o povo, a todos os que sofrem em silêncio as injustiças e a miséria. Nesse apelo, há a invocação das grandes ações coletivas e dos valores partilhados. É essa sua força emocional e sua componente racional. É dessa mistura que surge sua potência.
Reconstrução do bem comum
Além disso, ninguém ignora o alcance psicológico do populismo. As crises são seu detonador. Esquematicamente, os movimentos de massa sintetizam dois modos psicológicos de controle social: a fascinação e a sedução. Nos dois casos, a fórmula do filósofo espanhol Baltasar Gracián continua válida “Para seduzir, é preciso reduzir”. Por isso, a emoção e a liderança carismática desempenham um papel essencial na busca da identidade das massas.
A ausência de um programa definido ou de uma doutrina ideológica acabada não é, pois, surpreendente: o populismo não pretende ser uma idéia original, nem uma teoria global, e, menos ainda, uma concepção do homem e da sociedade, mas, antes de tudo, uma vontade de reconstrução do bem comum. Assim sendo, para Ernesto Laclau4 , o populismo não é um movimento sociocrítico, e tampouco um regime de Estado, é um fenômeno de tipo ideológico que pode existir no interior das organizações e dos regimes, das classes e das formações políticas mais variadas e divergentes. Por isso é necessário analisar sua ideologia separadamente da adesão específica de uma classe social.
Nacionalismo e fascismo
Se o populismo não emerge ex nihilo, é porque ele está associado a uma situação de crise da sociedade e à presença de uma síndrome de desencantamento
Houve quem quisesse identificar o populismo ao nacionalismo e ao fascismo. Ninguém pode afirmar isso seriamente, salvo por razões ideológicas ou de retórica partidária. O nacionalismo, tanto quanto o fascismo, exprimem uma concepção totalizante do mundo em que a identidade nacional remete, em última análise, a uma doutrina da raça e ao poder sacralizado. Além do mais, o aparelho de Estado e o exército, especialmente no caso do fascismo, são elementos essenciais, tanto para enquadrar a massa com uma ideologia patriótica e/ou totalizante, como para fazer reinar uma disciplina de ferro, em nome da tradição, da raça ou de um chefe cujo culto é o topo da hierarquia formal. Essas doutrinas comportam uma teoria expansionista do Estado, além disso hegemônico. A guerra é uma conseqüência julgada transcendente. Não há nada disso no movimento populista.
Conseqüentemente, é muito contestável classificar Le Pen, na categoria “nacional-populista”, como o fazem alguns cientistas políticos. Essa noção remonta à situação política específica da Argentina peronista nos anos 1940 e 1950, o que torna a comparação discutível. Além do mais, essa aproximação arrisca-se a banalizar a significação profunda da Frente Nacional e, ao mesmo tempo, lançar a desconfiança sobre as manifestações populares: qualquer arregimentação popular esconderia uma vontade de fazer triunfar uma ideologia particular, por natureza contrária aos valores da democracia?
Uma síndrome de desencantamento
Se o populismo não emerge ex nihilo, é porque ele está associado a uma situação de crise da sociedade e à presença de uma síndrome de desencantamento. O imobilismo das elites no poder mantém o status quo político. A crença na nação se quebra. O futuro provoca medo. A dúvida se transforma em silêncio cúmplice e um individualismo, tão estrito quanto abstrato, substitui o civismo entusiasta dos indivíduos concretos.
A crise é um impasse em que o ideal grego de virtude transforma-se em cinismo e a resignação, em prudência. A elite encontra-se diante de um dilema sem saída: ruptura ou desistência. Não é a ausência de lucidez que caracteriza os homens políticos nas situações críticas, mas a ausência de coragem. Os detratores do populismo fundamentam suas críticas sobre um perigo maior: a ditadura. Suas análises, porém, excluem as causas. Ora, esse perigo é, ao mesmo tempo, efêmero e mais fantasmático do que real. A história contemporânea mostrou reiteradas vezes que o populismo, quando não se junta com o fascismo, não se transforma em ditadura. Ele permanece ou uma exigência de mais democracia ou de retorno às raízes populares na ausência de um projeto coletivo.
Anticonformismo ou ditadura?
Para alguns, o populismo facilita o questionamento do status quo e o desenvolvimento do anticonformismo para acelerar a gestão da crise e a busca de equilíbrio
Alain Pessin defende a utilidade da abordagem mitológica na análise dos processos sociais, dentre os quais o populismo5 . O mito põe em cena um ideal que se pretende verdadeiro, mas sem explicá-lo. É um apelo a uma experiência coletiva e a um modo de relação direta com outrem. É essa sua força de coesão e de esperança que vai além das limitações institucionais enrijecidas.
Quando não se transforma em rotina, como foi o caso com Napoleão III, na França, ou com Perón, na Argentina, o populismo constitui um fenômeno efêmero que termina com a volta à ordem estabelecida – por exemplo, se pensarmos nos intermezzos boulangistas ou poujadistas na França. Alguns autores, contudo, não estão longe de pensar que é uma das formas da transição democrática. Para Gino Germani, o populismo expressa desse modo o fracasso das instituições encarregadas de assegurar a integração (famílias, escolas, empresas, sindicatos, partidos políticos) de uma população que deve se adaptar às exigências econômicas e técnicas de uma modernização industrial acelerada6 .O populismo facilita o questionamento do status quo e o desenvolvimento do anticonformismo para acelerar a gestão da crise e a busca de um novo equilíbrio social e político. Outros preferem ver nele uma ditadura disfarçada. É por isso que a experiência peronista ainda divide a esquerda argentina.
Crise da democracia
O renascimento do populismo, há uns vinte anos, marca uma crise da democracia representativa. Ela é planetária, portanto quase inédita e seu impacto psicológico midiaticamente algorítmico. A transformação brusca (porém não forçosamente violenta) das estruturas sociais e políticas provocada pela globalização liberal é acompanhada por uma perturbação equivalente das estruturas psíquicas, dos hábitos e das representações7 . As frustrações acumuladas engendram, passo a passo, uma nova grande decepção. Os antigos não se reconheceriam na república triste e resignada dos modernos nem nessa sociedade “social-liberal” cada vez mais autoritária e fechada. Por isso a inquietação é crescente. Nesse ponto a alternativa é pouco animadora: a revolta explosiva ou a implosão conformista.
A identificação do agente patológico revela-se, portanto, indispensável. A presença do populismo é comparável, mutatis mudandis, a um acesso de febre. E, se a febre é sintoma de doença, não é, em si mesma, a doença.
(Trad. Teresa Van Acker)
1 – Movimento autoritário de curta duração e duradoura influência que tentou derrubar a Terceira República francesa, na década de 1880, chefiado pelo general francês Georges Boulanger (1837-1891) , conforme verbete do Dicionário Houaiss. (N. de T.)
2 – Margaret Canovan, Populism, Junctions books, Londres, 1982.
3 – Ler Le Leader charismatique, Desclée de Brower, coll. “Provocations”, Paris, 1998.
4 – Ernesto Laclau, Politica e idéologia en la teor