Dez dias que abalaram o país
Não houve golpe de Estado militar, mas um golpe de “civilidade” e, pela primeira vez – com os políticos no mais baixo índice de popularidade – o vazio deixado por radicais e peronistas não foi preenchido por um salvador da pátria fardadoDiana Quattrocchi-Woisson
Não foram “Os dez dias que abalaram o mundo”, mas foram dez dias que abalaram profundamente a sociedade Argentina: a partir de agora, nada será como antes. Sabia-se que a democracia não havia resolvido os graves problemas econômicos da América Latina. Mas ainda não se sabia que a democracia argentina, com apenas dez anos de existência, podia provocar, em dez dias, a queda de dois governos – devido à falência de um sistema econômico criado com a bênção do Fundo Monetário Internacional. Na história argentina do século XX, trata-se de uma novidade absoluta. Não houve golpe de Estado militar, mas um golpe de “civilidade” e, pela primeira vez – num momento em que quase todos os políticos chegaram ao nível mais baixo de popularidade – o vazio deixado por radicais e peronistas não foi preenchido por um salvador da pátria fardado.
A indignação generalizada provocada pelo discurso do presidente Fernando de la Rúa produziu a mais pacífica, original e democrática das revoltas
O filme dos acontecimentos já é bem conhecido. Depois dos saques às lojas e mercados do dia 19 de dezembro de 2001, em várias cidades do país, o ex-presidente Fernando de la Rúa acusou as pessoas desesperadas de serem inimigos da República e decretou o Estado de sítio. A indignação generalizada provocada pelo discurso produziu a mais pacífica, original e democrática das revoltas. Em meio ao barulho ensurdecedor das batidas nas panelas – o cacerolazo -, milhares de argentinos baixaram às ruas, através do país inteiro, exigindo a renúncia do governo eleito dois anos antes com 48% dos votos1
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O “voto-raiva”, de 14 de outubro
Algumas interpretações minimalistas sugeriram que se tratava de uma revolta epidérmica da classe média contra as restrições impostas aos saques bancários. O que ocorreu, de fato, foi uma aliança entre os setores mais pobres e marginalizados da população e as classes médias das cidades, também em vias de empobrecimento. O que se ouvia nas ruas durante aquela manifestação? O hino nacional e uma canção que, sem qualquer sombra de dúvida, debochava do Estado de sítio decretado pelas autoridades. Rapidamente, renunciava o ministro da Economia, Domingo Cavallo, que já fora membro dos governos militares, peronistas e radicais, e foi o ideólogo do “contra-milagre”, um modelo neoliberal que desmantelou o papel regulador do Estado e todo o sistema de proteção social2
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Fortalecida por essa renúncia, a multidão passou a exigir, no dia 20 de dezembro, a do presidente De la Rúa. O autismo desse presidente não lhe permitiu compreender a esperança por mudanças que significou sua vitória eleitoral, assim como não entendeu a mensagem das urnas por ocasião das eleições legislativas de 14 de outubro de 2001 – uma enxurrada de abstenções e votos nulos (40% em algumas províncias) que foi batizada de “voto-raiva”. Mas foi então que aquele movimento alegre e festivo começou a ficar feio. A repressão foi brutal e a polícia montada espancou as Mães da Praça de Maio, assim como os militantes mais conhecidos das organizações de defesa de direitos humanos. Sete mortos em Buenos Aires, mais de trinta no plano nacional (balanço provisório), e milhares de pessoas presas.
Uma novidade democrática
O que ocorreu foi uma aliança entre setores mais pobres e marginalizados da população e a classe média das cidades, também em vias de empobrecimento
Com exceção de alguns casos isolados de gente pobre agredindo outros pobres, o estopim da violência partiu sempre da repressão policial. Carros incendiados e vitrines quebradas levavam a se prever o pior. Felizmente, a renúncia do presidente De la Rúa veio a tempo de acalmar os ânimos.
Todos os grandes acontecimentos históricos dão lugar a hipóteses conspiradoras ou pessimistas. Foi necessário um bom tempo para que, na historiografia argentina, os protagonistas dos acontecimentos de 17 de outubro de 1945 (que assinalaram o nascimento histórico do peronismo – leia, nesta edição, “Em busca da solução divina”, de Pierre Kalfon) deixassem de ser caracterizados como “uma horda de ignorantes manipulados pela polícia e pelos burocratas”. Algumas vozes isoladas já afirmaram que os recentes tumultos se devem a pessoas que foram manipuladas – seja por peronistas, seja por militares nostálgicos. Numa versão mais indulgente, seria possível dizer que tudo não passou de uma ação desesperada por parte de pessoas sem qualquer tipo de orientação ou de projeto político.
Os editoriais dos jornais mais tradicionais preferiram insistir nos riscos de imprevistos que são inerentes a qualquer movimento de multidões. Isso, com uma advertência: na democracia, o povo deve governar e deliberar através de seus representantes. Seria, então, sedicioso ou antidemocrático o movimento que derrubou dois governos em dez dias? Pelo contrário! Ao abalar as características mais enraizadas em sua cultura política, a Argentina acaba de produzir uma importante novidade democrática fechando, definitivamente, o ciclo histórico do seu século XX. Diante da falência absoluta de todo o sistema de proteção social, da bancarrota que levou à miséria e ao desemprego quase metade da população, do endividamento insustentável e impagável, os argentinos não optaram por um salvador fardado nem por um messias civil. Repudiaram o governo radical, autista, assim como repudiaram o primeiro governo peronista que o tentou substituir.
O segundo cacerolazo
De la Rúa não entendeu a mensagem das urnas por ocasião das eleições de outubro – uma enxurrada de abstenções e voto nulo (40%, em algumas províncias)
Nomeado no dia 23 de dezembro pelo Congresso, o governo de trejeitos e caretas de Rodríguez Saá teve a ousadia de levar à cena política as figuras mais corrompidas do passado. Apesar de uma série de promessas espetaculares – moratória da dívida, redução dos salários dos altos funcionários, pedido público de perdão às Mães da Praça de Maio pela repressão estúpida (com um retrato de família inesquecível e destinado, naturalmente, ao mundo inteiro), proposta de criar um milhão de empregos, anúncio da extradição de militares argentinos acusados por tribunais europeus pela violação de direitos humanos – as pessoas voltaram às ruas para um segundo cacerolazo: não para rejeitar as medidas anunciadas, mas para rejeitar os políticos corruptos e ladrões que pretendiam aplicá-las. Havia circulado intensamente uma hipótese pessimista: “Uma rebelião democrática que, uma vez mais, será confiscada por um cacique peronista habilidoso, demagogo e, além de tudo, corrupto.”
Essa segunda etapa é menos conhecida e foi bem menos divulgada pela imprensa internacional. Foi, principalmente, menos espontânea que a primeira. No dia 28 de dezembro, foram convocadas por grupos da sociedade civil duas manifestações importantes: a primeira, em frente aos tribunais, para exigir a renúncia da Corte Suprema; e a segunda, denominada “Celebração Ecumênica pelos Santos Inocentes”, na Praça de Maio. Foi esse segundo cacerolazo que levou à renúncia de Rodríguez Saá.
A oposição a Duhalde
Numa versão indulgente, seria possível dizer que foi uma ação desesperada por parte de pessoas sem qualquer tipo de orientação ou de projeto político
A lista das organizações que convocaram essa segunda manifestação é impressionante. Vai de conhecidas entidades de defesa dos direitos humanos a uma miríade de organizações não governamentais com nomes sintomáticos: “O caminho do sol”, “Crescer com amor”, “Fundação porta aberta”, “Fundação das boas ondas”, “Igualdade de direitos”, “Fundação Che Pibe”… Assim como o movimento dos piqueteros e as barreiras que, há meses, vêm sendo feitas nas estradas por milhares de desempregados, o surgimento na cena pública das organizações que vêm trabalhando, há muito tempo, nas redes de solidariedade e de inserção social e o plebiscito organizado pela Frente Nacional contra a Pobreza (Frenapo), em meados de dezembro de 2001, e que teve quase 3 milhões de votos3
, devem ser avaliados na análise desses dez dias de insurreição.
O atual governo do peronista Eduardo Duhalde resultou de um acordo entre os dois partidos históricos – radicais e peronistas – com o apoio da Igreja católica. O mecanismo institucional foi respeitado, com a Assembléia Legislativa aceitando as sucessivas renúncias e nomeando os presidentes interinos. A base eleitoral de Duhalde não é insignificante, pois é o único dos políticos do passado que pode reivindicar o papel de bombeiro. No entanto, mesmo tendo obtido uma ampla maioria por ocasião de sua nomeação, existe, mesmo assim, entre deputados e senadores – sem falar da voz das ruas – um núcleo de oposição de uns quarenta parlamentares que se opuseram à sua candidatura e desejam novas eleições com voto universal.
Uma articulação entre o social e o político
Abalando características enraizadas em sua cultura política, a Argentina produziu uma novidade democrática fechando o ciclo histórico do século XX
A paridade peso-dólar não sobreviveu; ocorreu, finalmente, a desvalorização4
e foi criado, progressivamente, um programa econômico, chamado de urgência nacional. É tão inútil tentar especular sobre o futuro político do atual governo quanto sobre as possibilidades de êxito do programa econômico: ambos apenas existem porque não havia alternativas disponíveis. A classe política declarou que se trata de sua última chance. A população ouviu e assimilou e, ainda que mantendo as panelas ao alcance da mão, decidiu tentar resolver os problemas mais imediatos. Os atores desses dez dias conscientizaram-se de sua força e pretendem organizar-se fora dos partidos políticos tradicionais. Querem ter peso sobre as grandes decisões econômicas e políticas (e, de momento, fazem isso exercendo uma espécie de direito de veto nas ruas). A segunda grande novidade é que começaram a falar em assembléias de rua, ou de bairro, e surgem idéias audaciosas e inovadoras.
No século XX, a Argentina teve treze eleições presidenciais com voto universal – a primeira em 1916 e a última em 1999. No contexto dessas treze eleições, os candidatos do Partido Radical venceram seis vezes e os do partido peronista seis vezes (o próprio Juan Domingo Perón foi eleito três vezes). No entanto, por ocasião dos acontecimentos recentes, a multidão cantou, por várias vezes, “Nem radicais, nem peronistas”.
É claro que é necessário tempo para que uma nova força política possa se organizar e – como foi o caso, em outras circunstâncias históricas – o velho e novo possam caminhar lado a lado. Mas, ainda que visível, se uma Argentina do passado sugere o pessimismo dos intelectuais e de pessoas ligadas ao ofício de pensar, uma geração nova, nascida na democracia, parece emergir. Se a vitória não for da dissolução social, a Argentina pode dar à luz uma articulação nova entre o social e o político.
(Trad.: Jô Amado)
1 – Fernando de la Rúa foi empossado no dia 10 de dezembro de 1999, após ser eleito pela coalizão Aliança pelo Trabalho, Justiça e Educação, formada pela União Cívica Radical (UCR) e pela Frente por um País Solidário (Frepaso).
2 – Ler, de Carlos Gabetta, “O naufrágio do ?modelo FMI?”, Le Monde diplomatique, janeiro de 2002. Ler também, de Maurice Lemoine, “Cacerolazos”, em nosso site Internet – www.monde-diplomatique.fr/, 27 de dezembro de 2001.
3 – Com urnas instaladas nas fábricas, igrejas, supermercados etc., esse plebiscito propunha votar a favor ou contra a criação de um seguro-desemprego de 380 pesos para cada chefe de família e/ou desempre