Dia mundial do habitat: a luta pelo Despejo Zero
A derrubada do veto de Bolsonaro ao Projeto de Lei é resultado da incansável luta dos movimentos populares pelo direito à moradia envolvidos na Campanha Despejo Zero, que desde o ano passado pressionam e sensibilizam os e as parlamentares pela aprovação da medida
A falta de rumo em relação à política habitacional e o aumento da pobreza no país têm submetido milhares de famílias a condições de moradia ainda mais precárias e inseguras. Desde 2020, um grande esforço de mobilização social envolvendo parlamentares, defensorias públicas, ministérios públicos e organizações da sociedade civil tem pautado a suspensão dos despejos como medida fundamental para a proteção da vida durante a pandemia por meio da Campanha Nacional Despejo Zero. Segundo o último levantamento da campanha, mais de 93 mil famílias vivem sob ameaça de despejo. O número é 495% maior quando comparado ao mês de agosto de 2020.
A campanha realizou uma articulação politica pelo Projeto de Lei (PL) 827/2020, de autoria da deputada Natália Bonavides (PT), o qual visa garantir o direito à moradia da população vulnerável ao impedir a realização de despejos, desapropriações ou remoções forçadas durante a pandemia. O PL – apoiado da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, além de diversas Frentes Parlamentares e organizações sociais – foi aprovado apenas em julho de 2021, com mais de um ano de atraso, tendo sido, no entanto, vetado integralmente por Bolsonaro em 5 de agosto.
No veto publicado no Diário Oficial da União (DOU), o presidente alegava que “embora seja meritória a intenção do legislador”, o PL “daria um salvo-conduto para os ocupantes irregulares de imóveis públicos, os quais frequentemente agem em caráter de má-fé e cujas discussões judiciais tramitam há anos”. Ao fazer tal afirmação sem fatos que comprovem seu argumento, Bolsonaro ignorou quase 20 mil famílias que já foram despejadas, segundo dados da Campanha Despejo Zero de agosto de 2021.
O Congresso Nacional derrubou na segunda-feira (27/09) o veto integral apresentado pelo Presidente da República (VET 42/2021). Com a decisão dos parlamentares, fica proibido o despejo ou a desocupação de imóveis até o fim de 2021 em virtude da pandemia do coronavírus. Na Câmara, o veto foi derrubado por 435 votos contra 6 (mais 2 abstenções). No Senado, o veto caiu com 57 votos a 0. O PL 827/2020 agora segue para promulgação e vai virar lei.
A derrubada do veto de Bolsonaro ao Projeto de Lei é resultado da incansável luta dos movimentos populares pelo direito à moradia envolvidos na campanha, que desde o ano passado pressionam e sensibilizam os e as parlamentares pela aprovação da medida.
O projeto suspende, até o fim de 2021, os despejos determinados por ações judiciais em virtude do não pagamento de aluguel de imóveis comerciais, de até R$ 1,2 mil, e residenciais, de até R$ 600,00. O texto ainda suspende os atos praticados desde 20 de março de 2020, com exceção dos já concluídos. Também dispensa o locatário do pagamento de multa em caso de encerramento de locação de imóvel decorrente de comprovada perda de capacidade econômica que inviabilize o cumprimento contratual. Além disso, autoriza a realização de aditivo em contrato de locação por meio de correspondências eletrônicas ou de aplicativos de mensagens. A lei não valerá no caso de o imóvel ser a única propriedade do locador e o dinheiro do aluguel consistir em sua única fonte de renda.
A medida não valerá para imóveis rurais. A retirada dessa possibilidade foi articulada pela bancada ruralista do Senado e, como não poderia deixar de ser, confirmada pela bancada ruralista da Câmara. Os ruralistas justificaram que a diminuição de renda por conta da pandemia e a crise econômica que vive o povo brasileiro se concentra no meio urbano. Para eles, o meio rural manteve a atividade produtiva ao longo da pandemia da Covid-19.
No entanto, estudo da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede PenSSAN) aponta que 60% da população do campo não se alimentou adequadamente em 2020. A população do campo também está sem acesso ao apoio financeiro por parte do poder público. No ano passado, o presidente Bolsonaro vetou o Projeto de Lei 735/2020, que previa auxílio emergencial e linhas de créditos para a agricultura familiar. Um novo projeto articulado novamente pelos movimentos populares do campo, juntamente com os partidos de oposição, foi aprovado na Câmara em junho deste ano e aguarda apreciação do Senado.
Desde que a pandemia do novo coronavírus começou, no início de 2020, diversos países fizeram alterações em suas legislações para garantir que seus cidadãos dispusessem de uma casa para se abrigar. Essas medidas foram adotadas num cenário que entendia a necessidade do distanciamento social para conter a transmissão viral e dava como certo o aumento da inadimplência de aluguéis diante de demissões, diminuição de jornada (e de salários) e estagnação da atividade econômica resultantes da crise sanitária.
No trimestre que se encerrou em maio de 2021, o Brasil registrou 14,8 milhões de desempregados, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), nível mais alto da série estatística desde 2012. Somado ao desemprego recorde, a inflação está em alta. Em junho de 2021, o IGP-M (Índice Geral de Preços-Mercado), que atualiza grande parte dos contratos de aluguéis, registrou 35,7% de aumento no acumulado de 12 meses, um recorde desde meados dos anos 1990, quando o Plano Real foi implementado e controlou a inflação.
Nesse cenário, as ações de despejo estão em alta em 2021. No estado de São Paulo, o número de ações com pedido de despejo aumentou 79% no primeiro trimestre de 2021, em comparação com o mesmo período de 2020.
Até 2019, o Brasil registrava um déficit habitacional de 5,8 milhões de moradias, classificadas entre domicílios precários, de coabitação e com um aluguel elevado, segundo levantamento da Fundação João Pinheiro. Assim, com o aumento do desemprego, a alta dos alimentos e a diminuição no valor do auxílio emergencial em 2021, diversas famílias perderam suas moradias e passaram a viver nas ruas ou ocupações – seja de terrenos ou prédios que não cumprem a função social.
A geógrafa Sharon Dias destaca em entrevista ao Politize! que o desequilíbrio no caso brasileiro não está na ocupação de terrenos ociosos nas grandes metrópoles, mas sim no fato de que estes terrenos bem localizados não cumprem sua função social, exigência estabelecida no artigo 5º da Constituição brasileira. A função social se refere a propriedades rurais e urbanas, as quais devem colaborar, de alguma forma, com o desenvolvimento justo da sociedade. É com base neste princípio que movimentos sociais e de moradia ocupam terrenos e prédios abandonados por seus proprietários.
Ela destaca que esse contexto dificulta o cumprimento das metas internacionais voltadas para habitação, como é o caso da Agenda 2030 e dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), da ONU, da qual o Brasil é signatário, e que em seu ODS 11 destaca a meta de “garantir o acesso de todos à habitação segura, adequada e a preço acessível, e aos serviços básicos e urbanizar as favelas”. Por isso, nesse dia mundial do habitat, lutamos pelo Despejo Zero.
Ana Moraes é formada pelo Pronera em Serviço Social na UFRJ. Faz parte da Coordenação Nacional do MST.