Diagnóstico e estratégia dos planos de governo
A comparação entre os programas de governo das candidaturas presidenciais mais bem posicionadas nas pesquisas é um esforço que deve concentrar análise técnica, percepção política e posicionamento ideológico. Confira o primeiro artigo do especial “Qual é o plano?”
Os programas de governo são textos de alto esforço retórico. Se um programa falar demais, ele pode comprometer politicamente uma candidatura, se falar de menos, o candidato pode ser acusado de superficialidade excessiva. O Brasil chega a sua nona eleição democrática consecutiva após a Constituição de 1988 ainda com evidentes ameaças à estabilidade democrática, em um clima político e conjunturas bastante complexas.
Nesse sentido, a comparação entre os programas de governo das candidaturas presidenciais mais bem posicionadas nas pesquisas é um esforço que deve concentrar análise técnica, percepção política e posicionamento ideológico. Nosso objetivo nas próximas semanas é trazer ao leitor como cada candidato efetivamente se posiciona no documento escrito quando ele possuía liberdade para criar, para apontar caminhos e soluções, algo que não é da rotina de um presidente da república.
Para dar início a esse processo, resolvemos analisar o diagnóstico de país e os objetivos estratégicos dos programas de Luiz Inácio Lula da Silva, Jair Bolsonaro e Ciro Gomes. E é aqui que começam os problemas que permearão a realidade política nacional nas próximas semanas. Certa vez, o ex-presidente americano Barack Obama afirmou em uma entrevista que uma pessoa1 “tem total direito de ter a opinião que quiser, mas que ela não poderia ter os próprios fatos”. E ele seguia sua análise afirmando o quão grave é para uma democracia que as pessoas não tenham uma base factual comum para que possam dialogar sobre os rumos de uma sociedade.
Esse é o caso dos diagnósticos dos programas de governo. A diferença entre os diagnósticos, em especial do programa de Bolsonaro com relação ao de Ciro e Lula, é gritante. A partir de uma análise factual tão oposta é que percebemos o quão ameaçada está a democracia brasileira. Se há um número consistente de apoiadores para as três candidaturas, a ponto de elas liderarem todas as pesquisas eleitorais já há alguns meses, é preciso que se compreenda que há um número significativo de brasileiros que percebem fatos diferentes entre si, o que maltrata o senso de coletividade, da coisa pública, da empatia, de tanta coisa fundamental para se viver em sociedade.
O programa de Bolsonaro começa afirmando que o ciclo que o Brasil viveu entre 2003 e 2016 (exatamente o período de governos petistas) foi um ciclo que “favoreceu a proliferação da pobreza”, enquanto o atual governo “impediu 14 milhões de brasileiros de entrar na linha da pobreza”. O texto desiste de emitir uma opinião sobre os governos Lula e Dilma, ele diz que os fatos atestam que os governos petistas foram um ciclo da pobreza. E ainda vai além, ele cita de forma misturada, sem levar em conta as diferenças metodológicas de cada uma das bases, dados da Oxfam, do Banco Mundial e do IBGE para corroborar “fatos” completamente distintos do que os fatos que baseiam o diagnóstico de Lula e Ciro. Evidentemente, existem diferenças de diagnóstico entre os programas de Ciro e Lula, mas eles não são completamente opostos. Se o programa de governo é um documento de esforço retórico, é preciso afirmar que o esforço retórico de Bolsonaro apresenta uma outra realidade, um outro país que está crescendo, gerando empregos, vivendo um “ciclo de prosperidade”.
Para Bolsonaro, contra fatos há argumentos. Assim, a mentira ganharia status de opinião, e a afirmação de que o atual presidente está mentindo também seria uma opinião. Por isso o esforço comparativo é complexo, mas não pode deixar de ser feito.
Ciro, por sua vez, faz um diagnóstico de um Brasil em crise social, com insegurança alimentar, baixa renda, desemprego, endividamento da população, falta de creches. No entanto, Ciro afirma que esse cenário foi causado por ‘todos os últimos governos”, cujo modelo econômico “deixou de acreditar no setor produtivo como o motor do desenvolvimento do país”. Aqui é importante destacar a diferença de opinião, e não de fatos, entre os diagnósticos de Ciro e Lula.
Obviamente, o programa de Lula se vale do uso de palavras como “resgate”, “recuperação”, “restauração”, “reconstrução”. Essas palavras apontam para a ideia de que o país vive uma profunda crise social, a exemplo do diagnóstico de Ciro, mas que a saída é a retomada do modelo de governo adotado pelo PT enquanto esteve no poder. Curiosamente, o programa cuja candidatura lidera as intenções de voto é nitidamente o do documento que menos se preocupou com a sua natureza publicitária. Os programas de Ciro e Bolsonaro ganharam capa, diagramação e os textos tiveram palavras cuidadosamente escolhidas para atrair pessoas e não gerar comprometimentos precipitados. O programa do PT mais parece uma resolução de congresso partidário, sem diagramação, com parágrafos numerados (a técnica da numeração de parágrafos serve aos mecanismos de debate coletivo na elaboração de textos, em que a pessoa “destaca” a necessidade de alteração em determinado parágrafo) e elevado teor panfletário.
Na parte dos compromissos, ou eixos estratégicos, há marcadores importantes a serem mencionados. O texto petista destaca, logo na segunda página os compromissos com “defesa da igualdade, democracia, soberania e da paz; desenvolvimento econômico sustentável com estabilidade; justiça social e inclusão com direitos, trabalho emprego, renda e segurança alimentar; direitos humanos, cultura e reconhecimento da diversidade; sustentabilidade social, ambiental, econômica e com o enfrentamento das mudanças climáticas”. O texto faz ainda menção expressa ao compromisso com o Estado de bem-estar social, o que reforça o viés social-democrático do programa petista.
Ciro, por sua vez, propõe um projeto nacional de desenvolvimento (PND) com investimento na ciência e tecnologia, melhoria das condições do mercado de trabalho, saúde, segurança pública, serviços básicos, redução da pobreza e uma revolução na educação publica. Seu objetivo é que o Brasil alcance indicadores de desenvolvimento semelhantes aos de Portugal em 2020, quando ocupava a posição 38 no ranking de “muito elevado desenvolvimento humano”.
No programa bolsonarista, o caminho apontado é “aprofundar as reformas” melhorando a eficiência dos gastos públicos, garantir emprego e renda e a retomada do crescimento econômico com maior “flexibilidade” da legislação trabalhista e tributária, garantindo a manutenção dos valores “Deus, pátria, família, vida e liberdade”. Os valores centrais (expressão utilizada no próprio texto) são a liberdade (liberdade é tão importante quanto a própria vida”) – liberdade econômica, religiosa, de expressão, para a defesa de direitos e para o uso responsável dos recursos naturais. Outro valor é a dignidade para os menos favorecidos, solidariedade social e voluntariado, equilíbrio socioeconômico regional. O texto ainda faz menção à fundamentação estratégica definida na “estratégia federal de desenvolvimento para o Brasil” instituída por Decreto em 2020, cujos eixos são: “governança e geopolítica”, “economia, tecnologia e inovação”, “saúde, educação e social”, “segurança e defesa”, “infraestrutura”, “sustentabilidade ambiental”.

Nenhum programa defenderia expressamente uma restrição de direitos, o negacionismo científico ou ainda a construção de governabilidade baseada na cessão do poder de gerenciamento do orçamento do executivo. Portanto, ao analisar os princípios fundamentais de cada programa, é preciso analisar o que está nas suas entrelinhas e ainda mais o que faltou a ele.
O programa petista é fortemente ideológico. Com claro posicionamento em ideais democráticos e reunidos num espectro ideológico à esquerda, é um documento de disputa de narrativa sobre os rumos do país. É preciso destacar que há um novo documento em processo de construção, e que não se sabe ao certo se ele será de fato lançado antes do primeiro turno das eleições. Mas o documento apresentado no ato do registro da candidatura (e essa foi a base da qual extraímos os três programas) é uma espécie de protocolo de intenções da coligação que sustenta a candidatura de Lula. Especial ressaltar que ele é o único assinado por todos os nove partidos que compõem a coligação “Brasil da Esperança”.
O programa de Ciro tenta se distanciar da agenda petista com o uso de palavras com menor viés ideológico, trazendo uma imagem de eficiência e objetividade. No entanto, o documento, logo no começo, parece apresentar um menor comprometimento com pautas que hoje são bastante importantes no espectro da esquerda, como a pauta ambiental, os direitos das mulheres e a questão racial. O documento, em sua parte inicial, se restringe a falar em redução do desmatamento e emissão de gases danosos à atmosfera e na garantia de acesso e respeito aos direitos humanos a todos e “especialmente às minorias”. Não há uma indicação de que a questão ambiental, os direitos das mulheres e a questão racial terão posicionamento estratégico na agenda cirista. A indicação estratégica não fala em diversidade e nem na pauta ambiental como um todo. O uso do termo “minorias” também é bastante complicado, uma vez que mais da metade de população brasileira é de mulheres e de pessoas negras, exatamente as que mais sofrem com a desigualdade.
Por fim, o programa bolsonarista é um casamento retórico entre o neoliberalismo e o conservadorismo. Se você não é neoliberal e conservador, parece que o Brasil de Bolsonaro não é o seu lugar. Ele usa vários termos relacionados à manutenção e aprofundamento das mudanças que o governo tem causado na sociedade e sempre atenua palavras que indicariam passos impopulares. A fundamentação estratégica aborda temas que qualquer governo no planeta terra deveria abordar. E cabe destacar ainda o caráter pouco democrático de se estabelecer, por decreto, uma estratégia federal de desenvolvimento (EFD) que vai até 2031, sendo que, no caso de reeleição, o governo Bolsonaro iria até 2026.
A essa altura, já sabemos que governos não resolvem nem em oito anos, os problemas estruturais da sociedade brasileira, com exceção de Bolsonaro, que parece de fato acreditar que está construindo um Brasil à sua maneira. O embate civilizatório que se avizinha no processo eleitoral não aparece com tanta ênfase nos documentos, que naturalmente servem à indicação, para as suas respectivas bases políticas, daquilo que elas querem ouvir.
Antonio Carlos Souza de Carvalho, advogado e cientista político, especialista em Economia do Trabalho e Sindicalismo.
1 O ex-presidente, na ocasião, citava um falecido senador americano, Daniel Moyniha. A entrevista foi dada a David Letterman, no seu programa “O Próximo Convidado”, disponível na plataforma Netflix.
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O mês de outubro revelará as escolhas do povo brasileiro para a composição dos governos dos estados e do país, assim como das câmaras estaduais, da câmara dos deputados e de 1/3 do senado federal. Isso se dará em um dos momentos sociais e políticos mais difíceis do Brasil após a sua redemocratização. Os indicadores sociais, de emprego e renda, a violência e a intolerância política revelam faces assombrosas de um país historicamente atingido pela desigualdade, pelo racismo e pelo machismo. Nesse cenário tão delicado, poucos serão os momentos de debate de ideias e de projetos de nação. Esse especial, feito em parceria com Juliana Borges e Antonio Souza de Carvalho, tem o objetivo de analisar e comparar os programas de governo dos principais candidatos na disputa presidencial a partir de temas essenciais ao presente e ao futuro do povo brasileiro.
Foram escolhidos os programas de governo dos candidatos com mais de 5% de intenção de votos nas principais pesquisas, e os documentos utilizados para análise são os disponibilizados por cada um dos candidatos no site do TSE, junto ao registro de cada candidatura.