Diego de Jesus, uma história de ficção?
“Não está claro? Preciso ir embora, o senhor tem que me soltar, minha mulher e meu filho precisam de mim lá fora”
— Doutor Buch, eu lhe aguardei aqui por muito tempo, sabia que um dia o senhor viria e esse dia chegou. Quero sua ajuda!
Quando entro na prisão, não o faço para encontrar pessoas dóceis ou submissas, nenhuma sociedade emancipatória busca isso, muito menos eu. Entro, pois, para encontrar seres humanos, com eles travar diálogos e entendimentos, tentando assim garantir que a Constituição e a lei sejam respeitadas e lhes permitam um mínimo de dignidade no cumprimento de suas penas.
Diego de Jesus não era dócil, tampouco submisso, era, isso sim, direto e impositivo, bem como sincero. Sua forma enfática e objetiva de se expressar não deixava dúvidas da honestidade das palavras. Foi assim que ele se dirigiu a mim, queria minha ajuda, sem mais. Pedi que o retirassem, explicando que primeiro terminaria a inspeção e depois o ouviria.
Mais tarde, portanto, em uma sala separada, no meio do sempre presente clangor das portas e grades de ferro, possuindo ainda algum tempo antes de voltar ao Fórum, pedi ao moço que me contasse sua história.
Estava preso por tráfico de drogas, condenado a cinco anos, em regime inicialmente fechado. Já se passara um ano desde que fora apanhado pela polícia e recebera sua certidão de nascimento, como se referia ao auto de prisão em flagrante.
Filho de pais vulnerabilizados, de pouca instrução e precária condição econômica, Diego viveu desde os 12 anos mais na rua do que em casa ou na escola. Logo aprendeu que, na sociedade de consumo, para ter respeito e ser reconhecido, precisava ser visto e, para ser visto, precisava ter coisas, como um par de tênis da moda, um relógio, óculos, boné. Um garoto mais velho do bairro, que tinha isso tudo e mais um pouco, mostrou-lhe o caminho das pedras, pedras de crack, no caso. Diego conseguiu passar ileso à adolescência de traficante, ou quase. Por duas vezes escapou da morte. A primeira, quando num descuido caiu numa região pertencente à facção contrária, saindo de lá com a promessa de que jamais voltaria, e com um corte de três centímetros na testa. A segunda, ao ser abordado, numa madrugada, logo após ter se desfeito de três pedras de crack, disse que uma torção no braço direito serviu como justiçamento.
Entre idas e vindas, ele achou o amor de sua vida, com quem se casou pouco tempo depois e teve um filho, Diego de Jesus Júnior. Logo, precisava deixar a vida do crime e achar um emprego honesto, imposição da moça. Foi contratado como ajudante de pedreiro. Entretanto, para a facção a que pertencia havia um preço a pagar, uma missão a cumprir. Foi encarregado de buscar uma grande carga de cocaína na cidade portuária e a levar para a capital do estado. Conseguiu realizar o intento com perfeição. Todavia, ao retornar para casa, com 20 gramas do produto recebido de brinde, caiu numa blitz. Silenciou sobre a carga, pois não era delator, mas, por aquela pequena quantia que portava, a condenação não tardou. Aos 18 anos, no cárcere, Diego esperava o momento para conversar com o juiz da execução penal que, segundo os demais presos, era muito humano, não admitia abusos e sempre dava decisões menos graves aos casos apresentados.
— Então, Doutor Buch, era isso — finalizou, levantando a sobrancelha, com uma interrogação na face.
— Mas isso o quê? O que você precisa? Você ainda não disse — indaguei.
— Não está claro? — inspirou e expirou — Preciso ir embora, o senhor tem que me soltar, minha mulher e meu filho precisam de mim lá fora. Aqui não tenho trabalho, não faço nada, fico o dia inteiro na cela. Tenho que voltar para casa! Serei pedreiro, já aprendi como faz.
— Não é simples, não é simples — repeti introspectivo — mas anotarei seu pedido e logo lhe dou retorno.
O jovem mostrou-se satisfeito e ainda perguntou em quanto tempo teria uma resposta.
Voltei para o gabinete, carregando dezenas de requerimentos nas mãos e a história de Diego na cabeça.
Ao contrário do que dizia Humberto de Campos, mesmo que o juiz queira, os cestos não sobem os rios, os peixes não cantam em árvores e os pássaros não fazem ninho no fundo do mar. Entretanto, os presos acreditam que sim, pois, se foi o Estado que os lançou para o abismo, para muito além do que a sentença condenatória estabeleceu, nada mais natural que o Estado-juiz os tire de lá.
O fato é que, quando se vê um ser humano necessitado, não se deve ficar em silêncio, não se pode ficar parado, é preciso agir, mesmo porque, perante a Justiça, há um dever de responder àqueles que pedem pela tutela jurisdicional.
No caso daquele rapaz, a crença fazia sentido e havia alguma possibilidade, conforme a lei, para uma prisão domiciliar. Busquei o processo e verifiquei os cálculos. A progressão ao regime semiaberto ainda demoraria mais um ano. Despachei, determinando a realização de estudo social familiar. Quando o relatório chegou, confirmando toda a história, ouvi o Ministério Público e a Defensoria e decidi.
A Lei de Execução Penal não prevê prisão domiciliar para homens do regime fechado. Porém, exceções se construíram ao longo do tempo, por questão humanitária nos casos de problemas graves de saúde e por analogia nos casos de cuidado de filhos crianças. Sobre essa hipótese, cuidado de filhos, a Constituição Federal trouxe como princípio a proteção integral da criança, com absoluta prioridade. Nesta senda, inclusive, veio o Estatuto da Primeira Infância, em vigor desde 2016. Consequentemente, tendo como pressuposto o direito da criança, passou-se a permitir, em casos excepcionais, a possibilidade do pai cumprir a pena em domicílio. O próprio código de processo penal também estabeleceu essa modalidade de prisão ao homem, caso ele seja o único responsável pelos cuidados do filho de até 12 anos.
E, assim, deferi a prisão domiciliar. O direito era certo, a criança e a família necessitavam do auxílio do pai, aquele jovem preso que sabia das coisas.
Padre Antônio Vieira, em um de seus sermões, disse: “um dia vão nos pedir estreita conta do que fizemos, mas muito mais ainda do que deixamos de fazer”. Quero imaginar que quando esse dia chegar para mim, Diego de Jesus sairá em minha defesa, impositivo e sincero.
João Marcos Buch é juiz de direito e membro da AJD.