Discriminação de motoristas de aplicativos e o direito à cidade
Enquanto não forem responsabilizados pelo estado e tomarem atitudes mais incisivas sobre o assunto, os aplicativos estarão negando e até mesmo violando o direito à cidade de pessoas negras, LGBTQIs, periféricas, de favelas.
Recentemente, surgiu uma nova denúncia de discriminação e violência lgbtfóbica cometida por motorista da Uber. O caso ganhou repercussão a partir das redes sociais de Clarice Falcão, atriz e cantora que denunciou em sua conta de Twitter a agressão sofrida por Célio Júnior, roteirista. Ele relatou o comportamento lgbtfóbico violento do motorista, que teria chegado a agredir fisicamente a ele e ao namorado, além de ter ameaçado com uma arma sua mãe.
Infelizmente, este não é um caso isolado e exemplifica de maneira contundente a violação ao direito à cidade vivida cotidianamente por LGBTQIs, mas também por negros e negras, moradores de favelas e outros grupos socialmente discriminados. Têm surgido com frequência, por exemplo, reclamações de influencers (youtubers, instagramers, etc.) negros/as, LGBTQIs, de periferia, dentre outros, sobre agressões e discriminação promovidas por motoristas da Uber, da 99 e de outros aplicativos.
O youtuber Spartakus denunciou em suas redes sociais a violência sofrida quando questionou o motorista que havia acabado de cancelar sua corrida ao vê-lo. Como registrado em vídeo pelo youtuber, ao perguntar ao motorista qual teria sido o motivo para o cancelamento, a resposta foi “Eu sou obrigado? Para de filmar essa porra aí, VIADO”. Outros artistas negros também têm denunciado o racismo sofrido em aplicativos. O humorista Yuri Marçal relatou a reação à sua escolha de assento. “Eu e meu produtor estávamos saindo do hotel e chamamos um Uber. Ele entrou na frente, e eu, atrás. O motorista disse para eu não sentar atrás dele se não ele teria que me dar um tiro, alegando motivos de segurança”.
Em uma série de vídeos no Instagram, o rapper Baco Exu do Blues relatou como diversos motoristas deixam de parar e seguem direto ao ver quem seria o passageiro, cancelando a corrida. Comunicador e criador do jornal Voz das Comunidades, Rene Silva e o ativista Raull Santiago também passaram por situações semelhantes. Em novembro do ano passado, estavam saindo de uma gravação na Zona Sul de São Paulo quando, ao se aproximar dos dois, o motorista deu ré com o carro e enviou mensagem perguntando “destino, destino, para onde vocês estão indo?”. Na sequência, a corrida foi cancelada. “Deve ter achado que eu ia para alguma periferia”. Depois de compartilhar esse e outros casos em suas redes, recebeu o relato de diversos seguidores com situações semelhantes.
Apesar de todas essas denúncias terem ocorrido apenas no último ano, não se trata de uma situação nova ou que somente acontece com famosos, vide comentários de usuários nas postagens em redes sociais que denunciam as situações. No cotidiano, várias outras pessoas sofrem com toda sorte de discriminação por parte de motoristas ligados a esses aplicativos, como Luana Watanabe e sua filha, Ana Clara. Ao se aproximarem de carro solicitado através de aplicativo, Luana conta que o motorista teria dito “Desculpa, mas não vou levar essa criança” em alusão ao fato de sua filha possuir Síndrome de Down.
Em pesquisa de campo para o doutorado no Rio de Janeiro, pude verificar por mim mesmo o que diversos moradores de favela da cidade vivenciam no cotidiano. Ao utilizar o serviço de um aplicativo para me deslocar da Zona Sul para o Complexo da Maré, recebi uma recusa do motorista em entrar na favela no momento em que percebeu que esse era nosso destino final. Toda simpatia dele exibida ao longo da viagem, claramente dirigida a um universitário branco da Zona Sul, desapareceu assim que percebeu que a rota do aplicativo indicava para sair da Avenida Brasil e entrar na Maré. Parou e disse que a partir dali eu poderia ir a pé. Questionado do motivo, já que não era o final da corrida, começou a disparar diferentes desculpas (trânsito, dificuldade de acesso de carros, etc.) até ser categórico “Não vou entrar aí!”.
As perguntas que devemos nos fazer diante de todos esses relatos são: pode o motorista dizer que se recusa a entrar “aí”? Pode negar viagem para “essa criança”? Determinar onde o passageiro sentará no carro? Cancelar a viagem em função da cor da pele?
A prerrogativa de motoristas de aplicativos pode significar discriminação?
Questionados por reportagens que ofereceram estes relatos, as companhias que gerenciam os serviços afirmam que é uma prerrogativa do motorista o cancelamento. Também afirmam, contudo, que é proibida por parte deles qualquer forma de discriminação, sendo as denúncias investigadas e ensejando penalidades ao motorista caso comprovadas. Mas em que casos isso ocorreu? Como foi conduzida a investigação? O que são consideradas provas para essas condutas? Quais foram as consequências dos relatos enviados? Em que percentual de viagens isso tem ocorrido? Sem a devida publicidade dessas e outras questões, torna-se difícil acreditar nesse compromisso assumido em um país em que casos de racismo, a lgbtfobia e outros tipos de discriminação raramente sofrem consequências.
Essa conduta não deveria ser permitida. A lei 7.329 que regulava o serviço de táxis em São Paulo, na década de 1960, já proibia o motorista de recusar passageiros, salvo nos casos expressamente previstos em lei. Pode-se alegar que se trata de uma lei aplicável apenas a São Paulo e voltada exclusivamente aos serviços de táxi, não abrangendo as novas modalidades de serviço oferecido pelos aplicativos.
No entanto, trata-se também de proibição estabelecida pela Política Nacional de Mobilidade, instituída pela Lei federal nº 12.587 de 2012, a qual estabelece a acessibilidade universal como o primeiro fundamento de toda a Política (Art. 5º, inciso I). No art. 7º, ainda estabelece como objetivos para a Política Nacional de Mobilidade a redução das desigualdades e promoção da inclusão social, garantindo acesso aos serviços básicos e equipamentos sociais e proporcionando melhoria nas condições urbanas da população no que se refere à acessibilidade e à mobilidade. Segundo o art. 14, é direito de todos os usuários do Sistema Nacional de Mobilidade receber o serviço adequado, ou seja, sem qualquer forma de discriminação. Importante lembrar que, a partir da Lei 13.640/2018, o serviço oferecido pelos aplicativos fazem parte do Sistema e são regidos pela Política de Mobilidade.
Ainda que não estivessem incluídas no Sistema de Mobilidade, o Código de Defesa do Consumidor (Lei Federal nº 8.078/1990) já proíbe (art. 39) ao fornecedor de produtos ou serviços recusar atendimento às demandas dos consumidores (inciso II) e recusar a venda de bens ou a prestação de serviços, diretamente a quem se disponha a adquiri-los mediante pronto pagamento, ressalvados os casos de intermediação regulados em leis especiais (inciso IX).
Mesmo que as companhias questionem a sua inclusão no Sistema de Mobilidade ou que alegassem que não se enquadrariam nas relações de consumo por serem apenas intermediárias – não podendo se responsabilizar pelo comportamento dos motoristas -, é importante ainda lembrar que a própria Constituição Federal brasileira determina em seu art. 5º que “a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais”. E não há como negar que as discriminações relatadas ferem diversos direitos e liberdades fundamentais: o direito à não discriminação, a liberdade de ir e vir, o direito à mobilidade e, especialmente, o direito à cidade.
O direito de ir e vir e a violação ao direito à cidade
Politicamente defendido por diferentes movimentos e atores sociais, o direito à cidade encontra-se legalmente protegido no Brasil e implica uma série de obrigações por parte do estado. Quando a Constituição Federal e o Estatuto da Cidade conjuntamente estabelecem que todos os brasileiros têm direito à cidade, assegura-se o direito a livremente ocuparem o espaço e usufruírem dos serviços e benefícios que as cidades oferecem sem qualquer forma de discriminação. Essa garantia apenas é possível mediante à promoção de meios de locomoção que permitam o acesso de toda a população às diferentes localidades. A mobilidade é essencial portanto como meio de efetivação do direito à cidade e, até mesmo, da liberdade de ir e vir, implicando, portanto, em obrigações por parte do estado brasileiro. Dentre essas obrigações está, não apenas a promoção de sistemas públicos de transporte coletivo, mas também a regulação dos sistemas privados e individuais, como aqueles promovidos pelos aplicativos em questão.
Na recém divulgada pesquisa Origem e Destino, realizada a cada 10 anos pelo Metrô em São Paulo, embora ainda ocupe o 7º lugar dentre os principais modais, a utilização de serviços de táxi observou o maior crescimento dentre estes, verificando um aumento de 414% entre os anos de 2007 e 2017, em função da entrada dos serviços de demanda por aplicativo. E quem pensa que este crescimento se deu exclusivamente nas classes altas está completamente enganado, sendo o crescimento mais acentuado observado nas faixas média e baixa de renda. Estamos, portanto, diante de uma mudança significativa na forma de transporte, que certamente impacta as possibilidades de acesso da população pobre ao território da cidade. A discriminação (racial, em função da orientação sexual, da identidade de gênero, dentre outras) verificada nos casos relatados certamente influencia e impacta essas possibilidades de acesso, contudo. Lembrar que a pobreza tem cor e CEP – negra e moradora de favelas e regiões periféricas onde os motoristas se recusam a entrar – nos alerta para a importância de atitudes firmes no combate à discriminação verificada nos serviços prestados pelos aplicativos. A discriminação não pode ficar no meio do caminho da efetivação do direito à cidade.
Enquanto não forem responsabilizados pelo estado e tomarem atitudes mais incisivas sobre o assunto, os aplicativos estarão negando e até mesmo violando o direito à cidade de pessoas negras, LGBTQIs, periféricas, de favelas. A cidade é de todas nós, que a construímos no nosso cotidiano, por isso temos o pleno direito a vivenciá-la de maneira plena, segura e saudável, sem constrangimentos. Se nossa mobilidade não está adequadamente assegurada, isso se torna impossível. É o direito de ir e vir, uma das mais básicas liberdades garantidas pela nossa Constituição Federal. Como Rosa Parks fez um dia, recusando-se a seguir uma norma injusta que a impedia de ter acesso a um transporte público de qualidade por ser negra, devemos começar a dizer aos serviços de aplicativos “HOJE NÃO!”.
Rodrigo Faria G. Iacovini é advogado e doutor em planejamento urbano e regional, coordenador executivo do Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico, assessor do Instituto Pólis e membro do coletivo LabLaje.