Discurso fake de combate à fome versus práticas necessárias
A fome não é consequência da pandemia, e sim de uma estrutura desigual que decide quem come, o que come, e quem não necessariamente come.
Dentre as coisas que assumiram certa centralidade em tempos de Covid-19, o debate sobre a necessidade de romper a quarentena ganha certo destaque. Entre as alegações feitas por figuras públicas para a quebra do isolamento, ecoa a necessidade das famílias em garantir meios para seu sustento, para que as economias das famílias não sejam prejudicadas e para que as mesmas não passem fome ou, em outras palavras, para que possam se alimentar.
De um lado temos a fome utilizada para angariar a opinião pública a fim de interesses muito mais partidários do que “humanos”, que naturalizam e banalizam a questão alimentar. Mas também temos, por outro lado, preocupações legítimas sobre a possibilidade de falta de estoque, dificuldades de abastecimento e acesso e possível aumento no valor dos alimentos. Afinal, a maior parte do nosso dia é dedicado para garantir alimentos para a semana, para o mês. Nada mais legítimo que tais preocupações.
Internacionalmente, organizações de combate à fome e de promoção ao direito humano à alimentação têm gerado relatórios acerca da questão alimentar como um todo, inclusive sobre as populações que se enquadram em cenários de fome.
Dentre as preocupações dos relatórios, tais como o da Rede Global contra Crises Alimentares, consta o cenário de países que já vivenciam crises alimentares e que podem ter tais quadros intensificados, a partir da diminuição de renda ou aumento no preço dos alimentos. Dentre esses territórios, os que recebem ajuda alimentar também podem ter quadros agravados, dada a possível diminuição de recurso humano e monetário dos países doadores. Além disso, seja crônica ou aguda, pessoas que estão em insegurança alimentar, formam quadros de desnutrição, que, por sua vez, debilitam o sistema imunológico, propiciando desenvolvimento de quadros agravados de doenças.
As organizações que compuseram o relatório – entre elas a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), o IPC e a UNICEF – se comprometem a manter os esforços para que as populações mais vulneráveis não tenham seus quadros de crise alimentar intensificados.
2 bilhões
Vale mencionar que, até 2019, o número de pessoas em algum tipo de insegurança alimentar era de aproximadamente 2 bilhões e, aproximadamente 820 desnutridas, de acordo com a FAO e infelizmente, depois de décadas de diminuição no número de desnutridos, o Brasil apresentava índices crescentes. Portanto, a fome não é invenção da pandemia ou do necessário isolamento social. A fome é consequência de uma estrutura desigual que decide quem come, o que come, e quem não necessariamente come.
Dito isso, a produção internacional de alimentos deve ser colocada em pauta, pois, a fome pode aumentar pós-pandemia e mesmo que isso ocorra, todos os esforços devem ser pensados para que o inverso aconteça, a curto, médio e longo prazo. As principais projeções apontam principalmente para a pobreza crescente pós-pandemia como meio de aumento da insegurança alimentar. De acordo com o International Food Policy Research Institute, projeta-se que em 2020, ao menos 140 milhões de pessoas a mais caiam na pobreza e, com isso, a insegurança alimentar aumentaria.
A fim de que os impactos da Covid-19 não sejam maiores nos sistemas agroalimentares, as organizações e relatórios recomendam que os países não tomem atitudes precipitadas, tais como as compras de pânico, com grande estocagem de alimentos, ou ainda medidas de limitação à exportação, tais como Rússia, Vietnã e Cazaquistão realizaram no mês de março. Tais posições poderiam resultar em aumento no preço dos alimentos e, mesmo que essas atitudes possam resolver a demanda interna a curto prazo, os efeitos a médio prazo a partir do aumento dos preços podem ser devastadores para a aquisição posterior.
Produção local
Nesse sentido, vale pontuar a importância direcionada à necessária articulação com a produção e produtor local. Em meio à diminuição de renda das famílias, o consumo por produtos mais diversificados pode diminuir, o que acarretaria, em dificuldades para o pequeno e médio produtor. Além disso, o produtor doméstico, pelo caráter de sua produção em abastecer de maneira diversificada o mercado interno, auxilia em um processo de menor dependência às oscilações do mercado internacional. Contudo, para que o pequeno agricultor possa atender às demandas, necessita de apoio governamental, seja para seguir produzindo e vender diretamente aos consumidores, seja para seguir produzindo e vender para que o governo distribua para a população.
Por isso também que, tanto as recomendações das organizações quanto as políticas adotadas por alguns países envolvem auxílio tanto a partir da distribuição de insumos, quanto a partir da melhoria da infraestrutura de transportes para facilitar o escoamento, assim como políticas de proteção social para inclusive, garantir o acesso ao alimento. Até o dia 20 de abril, havia ao menos 640 políticas adotadas em torno da questão agroalimentar, acesso à renda, cadeias de suprimentos ao redor do mundo, disponíveis no banco de dados da Food and Agriculture Policy Decision Analysys (FAPDA).
Anteriormente à pandemia, os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), e especificamente seu segundo objetivo, de título “Acabar com a fome, alcançar a segurança alimentar e melhoria da nutrição e promover a agricultura sustentável”, guiava as políticas para atingir as metas com o prazo até 2030. Diferentemente do que alguns discursos dizem, seguir as metas de investir na produção local, remover as distorções do mercado, preservar a biodiversidade de sementes, garantir sistemas e práticas agrícolas resilientes, não pode esperar até 2030, sob a justificativa de “temos problemas maiores agora”.
A verdade é que, teremos problemas maiores se não voltarmos a devida atenção para a questão alimentar e para quem produz comida no nosso país e no mundo.
Além disso, uma política pouco articulada com os diferentes setores, visando o abastecimento pura e simplesmente, sem contar com a participação do pequeno produtor pode gerar quadros ainda piores a médio e longo prazo. Uma visão puramente produtivista acerca da questão alimentar pode gerar políticas que visem aspectos mais quantitativos e menos qualitativos, pois a obtenção de calorias, não necessariamente significa ingestão de proteínas, vitaminas e minerais essenciais para o organismo.
Do mesmo modo, tratar a questão alimentar de maneira oportuna sem criar políticas efetivas de combate à fome, de nada adianta. Dizer que se preocupa com a alimentação das famílias e extinguir o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), além de não promover as políticas de Segurança Alimentar e Nutricional, soa um pouco incoerente, para não dizer “fake”.