Discutindo gênero em fóruns internacionais: a participação do Legislativas no C20
Justiça econômica, violência, saúde sexual e reprodutiva e empoderamento feminino são questões abordadas ao longo das recomendações realizadas pelos Grupos de Trabalho do C20 para um mundo regenerativo e próspero
O Grupo dos Vinte (G20) é composto pelas maiores economias do mundo, que, juntas, representam cerca de 85% do Produto Interno Bruto (PIB), mais de 75% do comércio e dois terços da população mundial. Todos os anos, os países membros se reúnem em Cúpulas, sob presidência rotativa, para discutirem questões econômicas e financeiras de ordem mundial. Em novembro de 2024, o Brasil será a sede dessa reunião, tendo assumido a presidência pró-tempore do fórum em novembro de 2023 pela primeira vez, sucedendo a Índia. No entanto, é importante ressaltar que a Cúpula é “apenas” o ponto culminante de um extenso calendário que inclui mais de cem reuniões entre os treze grupos de engajamento, que entregarão recomendações para políticas públicas aos chefes de Estado de todo o mundo.
A participação ativa da sociedade civil nos fóruns internacionais é, porém, essencial para assegurar uma representação inclusiva e abrangente dos interesses globais. Nesse sentido, para garantir que as vozes da sociedade civil sejam ouvidas e consideradas nas discussões sobre políticas globais, o grupo de engajamento C20 (Civil Society) atua como um contraponto importante. Seu princípio fundamental é o de “não deixar ninguém para trás”, buscando equilibrar o diálogo entre os governos e os representantes dos setores econômicos.
Além de promover a accountability do G20, o C20 é um espaço de incubação de soluções inovadoras, contribuindo de forma significativa tanto na preparação das reuniões de Sherpas quanto na definição de políticas financeiras de longo prazo. Os sherpas, no contexto do G20, são altos funcionários ou representantes que atuam como intermediários entre os líderes nacionais e os grupos de trabalho do G20. Eles têm um papel crucial na negociação e na elaboração de políticas e declarações que serão adotadas pelos líderes do G20. A atuação do C20 é fundamental, sobretudo ao trazer as preocupações e as recomendações da sociedade civil para as discussões do G20.
No contexto brasileiro, o C20 é estruturado em dez grupos de trabalho, cada um focado em áreas estratégicas e prioridades específicas, como economias inclusivas, sistemas alimentares, meio ambiente, saúde, educação, entre outros. Temas transversais, como igualdade de gênero, antirracismo, direitos humanos e inclusão de pessoas com deficiência, são considerados em todas as ações do grupo.
O histórico do C20 demonstra seu crescente protagonismo desde sua formalização como grupo de engajamento oficial do G20 em 2013, durante a presidência russa do grupo. No Brasil, a Organização Não Governamental (ONG) Gestos desempenha o papel de Sherpa do C20, contribuindo com sua expertise na defesa dos direitos das pessoas soropositivas para o HIV e das populações vulneráveis às infecções sexualmente transmissíveis. Além disso, a Abong (Associação Brasileira Organizações Não Governamentais) preside o grupo de engajamento.
A rodada do Brasil no C20 é um exemplo de como a sociedade civil pode influenciar a agenda internacional. O Brasil tem uma rica tradição de ativismo e mobilização social, e sua participação no C20 permite que questões importantes, como desigualdade de gênero, direitos das mulheres e desenvolvimento sustentável, sejam abordadas de maneira mais inclusiva e representativa. A colaboração entre organizações brasileiras e o governo pode resultar em políticas mais equitativas e eficazes, refletindo a diversidade de opiniões e necessidades da população.
As mulheres na política externa brasileira
O estudo da política externa brasileira em relação às mulheres mostra como o Brasil tem implementado políticas sensíveis ao gênero em três dimensões principais: diplomacia, cooperação para o desenvolvimento e segurança. Embora o Brasil não tenha uma política externa explicitamente feminista, como a Suécia ou o Canadá, o país adotou posições progressistas em fóruns internacionais e realizou ações significativas em cooperação Sul-Sul e na agenda de Mulheres, Paz e Segurança.
Desde os primeiros governos do PT (2003-2016), o Brasil assumiu posições claras em fóruns internacionais em defesa dos direitos das mulheres, alinhando-se com o feminismo transnacional. Essa abordagem incluiu a assinatura de acordos internacionais contra a violência e discriminação de gênero e a participação ativa em conferências da ONU sobre os direitos das mulheres.
A cooperação para o desenvolvimento Sul-Sul também foi um pilar importante da política externa brasileira voltada para as mulheres. A Agência Brasileira de Cooperação (ABC) tem participado de projetos que promovem os direitos das mulheres e meninas em países africanos e latino-americanos, como a implementação de bancos de leite humano e a criação de forças policiais especializadas no atendimento a mulheres vítimas de violência de gênero (Salomón, 2020).
A agenda de Mulheres, Paz e Segurança é outro exemplo da atuação brasileira. Em 2017, o Brasil lançou seu Plano de Ação Nacional sobre Mulheres, Paz e Segurança, alinhando-se à agenda do Conselho de Segurança da ONU. Esse plano representa um passo significativo na incorporação da perspectiva de gênero em operações de paz e segurança, refletindo o compromisso do Brasil com a promoção dos direitos das mulheres em cenários de conflito e pós-conflito.
A influência da sociedade civil, particularmente das organizações feministas, tem sido crucial na formulação e implementação dessas políticas. A Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM) desempenhou um papel central como principal agência de feminismo estatal, facilitando a interação entre o movimento feminista e o governo. A criação do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM) e a realização de Conferências Nacionais de Políticas para as Mulheres exemplificam os mecanismos participativos que permitiram a inclusão das demandas feministas nas políticas públicas (Salomón, 2020).
A colaboração entre a SPM, o Itamaraty e as organizações da sociedade civil criou uma parceria estratégica feminista que fortaleceu a posição do Brasil em fóruns internacionais e promoveu políticas progressistas para as mulheres. Essa parceria evidenciou-se nas negociações internacionais e na implementação de projetos de cooperação para o desenvolvimento, mostrando como a participação da sociedade civil pode contribuir para a construção de uma política externa mais inclusiva e equitativa.
A análise da política externa brasileira em relação às mulheres revela a importância da horizontalização, em que diferentes atores, incluindo a sociedade civil, contribuem para a formulação de políticas. Esse modelo de feminismo participativo estatal tem mostrado ser eficaz na promoção dos direitos das mulheres e na representação de seus interesses em nível internacional. A experiência brasileira destaca a necessidade de continuar fortalecendo esses mecanismos de participação para garantir que as políticas globais reflitam as necessidades e aspirações de todos os segmentos da sociedade.
O legado do C20 para as discussões sobre igualdade de gênero
A inclusão das questões de gênero nas discussões do G20 tem sido fundamental para se pensar a promoção dos direitos das mulheres de forma transversal e multidimensional. Nesse sentido, um dos grupos de engajamento do G20 é o Women 20 (W20), no qual empreendedorismo, mulheres nas áreas de ciência e tecnologia, economia do cuidado, violência de gênero e justiça climática são apenas alguns dos temas discutidos para a elaboração de recomendações para políticas públicas voltadas para as mulheres. Entretanto, as questões de gênero não se limitam apenas ao W20 – na verdade, são também abordadas pelos Grupos de Trabalho (GT) do C20 e de outros grupos de engajamento.
O Grupo de Trabalho Gender Equality and Disability (Igualdade de Gênero e Deficiência) se destaca nesse sentido. Apresentado no ano de 2022 dentro do Policy Pack formulado durante a presidência da Indonésia, teve como uma de suas recomendações para os membros do G20 “construírem e melhorarem o acesso ao capital para mulheres e pessoas com deficiência, dando um mandato para o setor financeiro fornecer apoio financeiro de, no mínimo, 10% de sua carteira de crédito especificamente para PMEs lideradas por mulheres e pessoas com deficiência”. Outra recomendação formulada por esse mesmo GT visava “recordar aos países do G20 a promulgação de políticas de salvaguarda para eliminar a violência de gênero e deficiência no local de trabalho, particularmente em setores de alto risco como plantações (especificamente em plantações de óleo de palma), extrativismo, vestuário e trabalho doméstico”.
Posteriormente, durante a presidência da Índia, no ano de 2023, o Grupo de Trabalho Gender Equality and Women’s Empowerment (Igualdade de Gênero e Empoderamento Feminino) foi conduzido como um dos eixos de discussão do C20. A criação do grupo reforça que a desigualdade de gênero tem sido internacionalmente reconhecida como uma questão transversal e que deve ser abordada para alcançar não apenas os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), como também garantir direitos humanos. Conjuntamente, foi abordado o reconhecimento do impacto positivo a longo prazo que o empoderamento feminino tem perante a situação econômica das famílias e consequente redução significativa da pobreza. Evidencia-se, nesse sentido, que as mulheres têm maior probabilidade em promover práticas ambientalmente sustentáveis na agricultura e no consumo.
A partir dessas recomendações, é possível observar a transversalidade das formulações e objetivos a serem alcançados com a implementação de tais medidas pelos membros do G20. Justiça econômica, violência, saúde sexual e reprodutiva e empoderamento feminino são questões abordadas ao longo das recomendações realizadas pelos Grupos de Trabalho do C20 para um mundo regenerativo e próspero. Para isso, a capacitação das mulheres é um componente crítico para alcançar a igualdade de gênero tão almejada e necessária.
Existem, porém, entraves para a discussão de uma temática tão politicamente sensível em um grupo tão culturalmente diverso, o que ocasiona, de forma ineficiente, um raro consenso sobre as questões de igualdade de gênero e promoção da diversidade entre as nações do G20. Ao passo que alguns países, como o Canadá, apresentam maior espaço para discussões sobre Igualdade de Gênero, outros ainda estão entrelaçados ao conceito de “Cidadãs de Segunda Classe” ao referirem-se às mulheres nos espaços civis.
Mesmo assim, independentemente dos seus valores culturais e sistemas políticos, é necessário que os membros das reuniões do C20 busquem abordar as questões de gênero de maneira construtiva e colaborativa, de modo que diferenças culturais e políticas sejam superadas e recomendações para políticas públicas em prol da igualdade de gênero em diversos setores da sociedade sejam plenamente realizadas com consenso e harmonia. Além disso, é necessário que as recomendações de anos anteriores do C20 relacionadas a gênero sejam revisitadas pelos membros, de modo que se avalie se foram suficientes e/ou se geraram resultados de forma eficaz, reforçando a necessidade de responsabilização dos Estados pelos compromissos assumidos durante a Cúpula.
Por fim, é preciso abrir espaços para que temas que não foram abordados em outras edições do fórum ganhem espaço na agenda do G20. O estudo “Criando Sinergias entre a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável e o G20”, produzido pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), indica que metade dos países do G20 ainda contam com menos 30% de mulheres em seus parlamentos, tendo o Japão o pior índice, com 10%, seguido por Brasil, Índia, Rússia, Turquia, Coreia do Sul, Arábia Saudita, Indonésia, China e EUA, respectivamente (IBGE, 2024). Apesar de estarem entre os piores países nesse ranking, os Policy Packs do C20 da Indonésia e da Índia não abordaram a questão da participação das mulheres na política, o que mostra a urgência de fortalecer essa discussão durante a presidência do Brasil, o segundo pior país do G20 neste indicador, enfrentando desafios significativos para garantir a representação das mulheres em cargos públicos e assegurar uma participação política livre de violência de gênero.
Legislativas na agenda de gênero no C20 Brasil
Desde março de 2024, o projeto Legislativas (Grupo de Estudos sobre Gênero e Política da Universidade Federal do ABC) integra o C20, participando das discussões do Grupo de Trabalho 08, sobre Direitos das Mulheres e Igualdade de Gênero, e do Grupo de Trabalho 10, com foco no ODS 16, tratando de temas como Governança Democrática, Espaço Cívico, Anticorrupção e Acesso à Justiça. Essa é a primeira participação do projeto – liderado por estudantes da UFABC – em um fórum internacional, constituindo um momento de aprendizado e inserção junto à sociedade civil organizada.
Durante os últimos dois meses, foram realizadas diversas reuniões para elencar as prioridades temáticas em cada grupo de trabalho e, posteriormente, construir suas devidas recomendações, visando, especialmente, dar seguimento às recomendações dos anos anteriores e aprimorá-las. É importante ressaltar que o Legislativas tem participado de forma ativa desses encontros, realizando debates plurais com representantes de diversas organizações da sociedade civil. O papel prioritário do Legislativas nessas reuniões, porém, tem sido reforçar a importância da discussão sobre gênero e participação política para a construção das recomendações do grupo, além de contribuir para a elaboração de um documento que trate as questões de gênero de maneira transversal.
Apesar de o processo de discussão e elaboração do documento do C20 ter sido finalizado no final de maio, ainda há uma longa jornada de trabalho da sociedade civil organizada no G20 Brasil: é preciso fortalecer as ações de defesa das recomendações realizadas pela sociedade civil aos Estados do G20. Nos dias 1 e 2 de julho de 2024, o C20 Brasil irá realizar a Midterm Meeting no Rio de Janeiro, concomitantemente à Mideterm Conferece do T20 (Think20) e às vésperas da terceira reunião de Sherpas do G20 Brasil, que também serão realizadas no Rio. Esse será um momento importante de mobilização em torno das recomendações elaboradas pelo grupo, que devem ser entregues ao governo brasileiro ainda em julho. Além disso, em novembro, apenas dois dias antes da Cúpula do G20, será realizada a primeira edição da Cúpula Social – uma inovação importante apresentada pela presidência brasileira – que possibilitará uma maior participação de atores não governamentais nas discussões do fórum, evidenciando o trabalho realizado pelos grupos de engajamento durante o ano.
Ana Beatriz Aquino, Bruno Fabricio Alcebino da Silva, Sara Massari Nunes Paes e Gabriela Macedo Cota são pesquisadores do projeto Legislativas e graduandos em Relações Internacionais pela Universidade Federal do ABC (UFABC).
Referências
ACESSO AO POLICY PACK 2022. Disponível em: https://drive.google.com/file/d/14F6pk_41Dip_nLTg_P9jzKt7jE6Q8UqR/view
ACESSO AO POLICY PACK 2023. Disponível em: https://c20.amma.org/wp-content/uploads/2023/08/C20-india-2023-policy-pack-09-08-23-v24-Opt.pdf
G20 BRASIL. Civil Society (C20). Ministério das Relações Exteriores e Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República do Brasil, 2024. Disponível em: https://www.g20.org/pt-br/g20-social/c20-civil-society#:~:text=Na%20presid%C3%AAncia%20brasileira%2C%20a%20Sherpa,infec%C3%A7%C3%B5es%20sexualmente%20transmiss%C3%ADveis%20(ISTs). Acesso em: 28 mai. 2024.
IBGE. Criando Sinergias entre a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável e o G20. Rio de Janeiro, 2024. Disponível em: <https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv102080.pdf>. Acesso em: 05 mai. 2024.
BRASIL. Ministério da Economia. Nações do G20 têm consenso raro sobre igualdade de gênero e a promoção da diversidade. Disponível em: https://www.gov.br/trabalho-e-emprego/pt-br/noticias-e-conteudo/2024/Abril/nacoes-do-g20-tem-consenso-raro-sobre-igualdade-de-genero-e-a-promocao-da-diversidade . Acesso em: 01 mai. 2024.
SALOMÓN, Mónica. Explorando a política externa brasileira em relação às mulheres: dimensões, resultados, atores e influências. Revista Brasileira de Política Internacional, v. 63, n. 1, 2020. Disponível em: https://doi.org/10.1590/0034-7329202000101. Acesso em: 28 mai. 2024.
VER. Estes países não são para mulheres. Disponível em: https://ver.pt/estes-paises-nao-sao-para-mulheres/ . Acesso em: 01 mai. 2024.