Distritão: falência dos partidos e sub-representação popular
O Distritão já foi rejeitado duas vezes pelo Congresso, mas em 2021 os parlamentares aparentam maior disposição para sua aprovação
Uma reforma eleitoral de grandes proporções está em discussão na Câmara dos Deputados, com apoio declarado de seu presidente, Arthur Lira (PP). O objetivo de Lira é aprová-la até outubro, já que isso é condição necessária para que as mudanças sejam aplicadas ainda nas eleições de 2022. Dentre as alterações previstas no relatório produzido por Renata Abreu (Podemos-SP), no âmbito da comissão especial que avalia a proposta de emenda constitucional (PEC), uma em particular altera de forma muito significativa a estrutura da competição no Brasil: o chamado Distritão. A proposta mais avançada na Câmara adota o Distritão para as eleições de 2022 como etapa de transição para um sistema distrital misto a partir de 2026, com metade das cadeiras do parlamento eleitas por um sistema proporcional, à semelhança do nosso modelo atual, e metade pelo sistema majoritário uninominal (distrital), similar ao adotado nos Estados Unidos e Reino Unido. Sem entrarmos no mérito dessa última proposta, tecemos aqui alguns comentários sobre os malefícios que o Distritão pode acarretar para a democracia brasileira.
O Distritão é na verdade um apelido para o sistema de voto único intransferível (single non-transferable vote – SNTV), hoje aplicado em pouquíssimos países no mundo. O sistema é de fácil entendimento, sendo esse, inclusive, o principal argumento em defesa de sua adoção.
Com ele, os distritos eleitorais continuam sendo as unidades federativas (estados) e os parlamentares eleitos são os mais votados em cada distrito até que sejam preenchidas todas as vagas em disputa. No Rio de Janeiro, por exemplo, que possui 46 cadeiras na Câmara dos Deputados, os(as) 46 candidatos(as) mais votados(as) conquistariam as vagas, sem a oportunidade de voto na legenda partidária. Isso difere radicalmente do sistema proporcional de lista aberta hoje em vigor no Brasil para eleição de deputados e vereadores. No sistema atual, as cadeiras em disputa são proporcionalmente distribuídas entre os partidos de acordo com a sua votação total, mas dispondo os eleitores do voto preferencial – ou seja, eles escolhem os seus candidatos e não apenas as legendas partidárias de sua preferência.
Adotado em boa parte dos países do mundo, o sistema proporcional guarda algumas características que justificam sua aplicação, duas das quais, inter-relacionadas, são destacadas a seguir.
Em primeiro lugar, o sistema proporcional faz excelente uso das preferências dos eleitores, na medida em que reduz significativamente o desperdício de votos, exceto quando o eleitor vota em um partido que não obtém sequer uma cadeira. Salvo esse caso, os votos dados a um candidato não eleito contribuem para que o partido desse mesmo candidato possa justamente eleger outros nomes. O objetivo do sistema é garantir que os votos da maior quantidade possível de pessoas sejam aproveitados na eleição. Ele permite que os eleitores escolham o(a) candidato(a), mas também reforça o papel dos partidos, já que os votos recebidos por cada legenda contam para a distribuição de cadeiras.
É uma lógica distinta, portanto, das eleições presidenciais, em que os votos no candidato derrotado são descartados. O Distritão reproduz a lógica majoritária da eleição presidencial, aprofundando o desperdício de votos e eliminando a complementaridade saudável que existe hoje entre a eleição presidencial e a congressual. Em artigo recente, a Folha de S.Paulo, estimou, por exemplo, que se o Distritão tivesse sido implantado em 2018, cerca de 70% dos votos válidos teriam sido perdidos. A comparação não é exata, porque pressupõe que as estratégias eleitorais seriam as mesmas em contextos institucionais distintos (e não seriam), mas ajuda a entender o déficit de representação que o sistema tende a gerar.
O fato de o sistema transferir votos entre candidatos de um mesmo partido, no entanto, tem sido objeto frequente de críticas por parte de alguns parlamentares e eleitores com base em dois argumentos principais. O primeiro deles é que candidatos com votação ínfima são “puxados” por candidatos eleitos com número de votos superior ao quociente eleitoral (total de votos válidos/total de cadeiras em disputa) – base de cálculo para distribuição das cadeiras entre os partidos da competição. Essa transferência, entretanto, está na raiz do sistema proporcional, sendo um mecanismo importante para evitar excessiva personalização da representação política. Ainda assim, o Congresso aprovou em 2015 medida que mitiga distorções desse modelo ao estipular um patamar mínimo de votação para que um parlamentar seja eleito: a votação não pode ser inferior a 10% do quociente eleitoral, independentemente de sua posição na lista partidária. O segundo argumento enfatiza que eleitores votam em um candidato de um determinado partido, mas acabam elegendo um candidato pertencente à legenda distinta. É importante ressaltar que esse não é um efeito do sistema proporcional, mas sim uma distorção dele causada pela possibilidade de coligações entre partidos para cargos proporcionais, o que foi corrigido em 2017. A proibição dessas coligações já valeu para as eleições municipais de 2020 e seria aplicada pela primeira vez em eleições nacionais/estaduais em 2022. Infelizmente, o atual relatório da comissão especial, se aprovado na íntegra, impedirá que esse modelo, novo e promissor, seja testado em um pleito nacional.
A segunda grande vantagem do sistema proporcional, relacionada ao melhor aproveitamento dos votos, é o fato de ele permitir que a diversidade de preferências da população brasileira seja efetivamente representada. Um sistema que não computa o voto em candidatos não eleitos, a exemplo do Distritão, tem impacto profundo sobre a qualidade do debate político e, por consequência, sobre a natureza das políticas públicas produzidas. Com a queda do sistema proporcional, portanto, é de se esperar sub-representação ainda maior de grupos sociais politicamente minoritários, a exemplo de mulheres, negros, indígenas e LGTBQIA+, em benefício de candidatos(as) com status social privilegiado, a exemplo de celebridades, pessoas com amplo acesso a recursos financeiros, elites locais, pastores e lideranças religiosas em geral, dentre outros. Nessa direção, inúmeros estudos acadêmicos mostram que nos países que adotam sistemas proporcionais a representação de grupos minoritários é maior comparativamente aos que adotam o sistema majoritário.
Dito isso, podem ser inferidas duas conclusões sobre o Distritão: ele enfraquece a representação partidária e tende a aumentar a percepção de falta de representação. Com a eleição dos mais votados em cada distrito eleitoral, os programas partidários saem de cena para dar lugar a campanhas exacerbadamente pouco cooperativas, pois não haverá mais incentivos importantes à coesão partidária, tais como o voto em legenda e o impacto dos votos dos partidos nas candidaturas individuais. Parlamentos sem partidos fortes também tendem a ser fonte de problemas de governabilidade. Os partidos ajudam a organizar a agenda e o processo legislativo na Câmara dos Deputados. Seu enfraquecimento aumenta o custo de coordenação entre parlamentares e Executivo e diminui o peso de negociações programáticas em benefício de barganhas individuais. O fim das coligações para cargos proporcionais pretende justamente aperfeiçoar o contorno programático dos partidos e, com isso, melhorar a representação política ao diminuir, inclusive, o peso de legendas de aluguel no Congresso. O Distritão joga por terra esse objetivo, projetando um cenário de crise política continuada entre o Legislativo e o Executivo e eventualmente até de paralisia governamental.
Com a adoção do Distritão, vale acrescentar, são eliminadas as suplências partidárias. Ou seja, se um parlamentar se ausenta por quaisquer motivos, incluindo o exercício de cargo Executivo, assume o primeiro mais votado não eleito daquele distrito. Não há qualquer garantia, portanto, de que o suplente tenha posições minimamente parecidas com as do parlamentar substituído. A saída de parlamentares para ocuparem cargos no Executivo ou disputarem outra eleição, portanto, pode tornar os legislativos suscetíveis a mudanças imprevistas e pouco representativas no espectro ideológico. No parecer da deputada Renata Abreu, há proposta de mitigação desse dano, mas que tão somente descaracteriza o princípio majoritário do Distritão sem fazer justiça ao sistema proporcional.
No que se refere à percepção que a população tem da representação política e à conexão entre eleitos e eleitores, o simples fato de que o sistema desperdiça grande número de votos, que passam a valer como votos brancos e nulos, desautoriza o argumento de que ele resultaria em aumento da legitimidade do sistema. O efeito seria bem o contrário. Para além do desperdício de votos, quando não há incentivo institucional para que os partidos sejam programáticos, há enormes chances de redução na capacidade do sistema de exigir responsividade. Os partidos funcionam como filtros que permitem ao eleitor checar o comportamento dos seus candidatos, mas também como norte orientador para os candidatos eleitos, que assumem que as propostas de seus partidos foram validadas pelas preferências manifestas de seus eleitores na forma do voto. No Distritão, o que vale é a proposta individual de cada candidato. Os partidos perdem a condição de exercer a contento esse papel de mediação, enquanto os eleitores encontrarão na fiscalização do comportamento parlamentar uma tarefa ainda mais árdua.
Presidentes de diferentes partidos já se pronunciaram contra o Distritão, parte deles, no entanto, alega que não cobrará fidelidade de sua bancada na votação da proposta. Na centro-esquerda, todos os partidos, à exceção do PCdoB, que teme não superar a cláusula de desempenho de 2022 e ser extinto por falta de acesso aos fundos partidário e eleitoral, manifestaram-se contra a mudança. Na centro-direita, as bancadas permanecem divididas, o que torna o cenário mais nebuloso no que diz respeito à avaliação das tendências de voto. Uma eventual aprovação de proposta dessa natureza produzirá resultado danoso para o sistema político brasileiro, com enorme retrocesso em termos de representação e possivelmente aumento nos custos eleitorais – a suposta redução desses custos é razão também costumeiramente ventilada nos corredores da Câmara em prol do Distritão. Afinal, campanhas personalistas, com ampliação de concorrência, tendem a aumentar gastos e não a diminuí-los, vide o exemplo do Japão, onde esse sistema foi extinto no início da década de 1990 como decorrência do aumento de casos de corrupção e encarecimento das campanhas.
A proposta de emenda constitucional que trata do assunto vem sendo discutida a toque de caixa na Câmara, sem o debate e a transparência que o tema requer. Para ser aprovada, precisa do apoio de três quintos dos deputados, em dois turnos, e de quórum e regime semelhantes no Senado. O Distritão já foi rejeitado duas vezes pelo Congresso, mas em 2021 os parlamentares aparentam maior disposição para sua aprovação. O cálculo dos apoiadores dessa medida certamente parte da avaliação de que ele facilita a recondução daqueles que já estão em exercício do poder. É irônico constatar que logo a legislatura mais marcada pela renovação da história da Nova República é aquela que pretende fechar a porta à entrada de novos parlamentares na próxima eleição. Os políticos obviamente querem se reeleger, mas isso não pode ser feito pelo sacrifício das qualidades do nosso sistema representativo, já tão combalido.
Debora Gershon é cientista política, doutora (IESP/UERJ) e mestre em Ciência Política (IUPERJ), com pós doutorado pela University of California, San Diego (UCSD), e pesquisadora do Observatório Legislativo Brasileiro (OLB).
Leonardo Martins Barbosa é doutor em Ciência Política pelo IESP/UERJ e pesquisador do Observatório do Legislativo Brasileiro (OLB) e do Núcleo de Estudos sobre o Congresso (NECON).