Do reconhecimento à superação da fome
Talvez por conta dos efeitos devastadores ou das fortíssimas imagens que produz, a inanição segue servindo para que que se encubra o drama da fome parcial. No entanto, isso não é suficiente para explicar a tão duradoura ocultação do fenômeno. É necessário reconhecer que há uma utilização, no mínimo, ambígua dos conceitos de insegurança alimentar, subnutrição e fome, o que não apenas prejudica a compreensão da realidade, como também difunde falsos consensos habilmente utilizados para justificar a manutenção de relações econômicas e sociais responsáveis pela fome.
Ao declarar que no Brasil não se passa fome por não ver “gente pobre pelas ruas com físico esquelético”, Jair Bolsonaro reforçou mais um senso comum que pesa sobre essa temática. É verdade que pouco depois o presidente voltou atrás e disse que alguns passam fome no país, mas fez questão de ressaltar que não via ninguém magro no ambiente em que estava, associando mais uma vez a fome a corpos mirrados pela falta de alimentos.
Ainda hoje é comum o entendimento de que fome e inanição são sinônimos e que sua incidência estaria restrita ao semiárido nordestino ou à regiões distantes na África e na Ásia. Em Geografia da Fome, publicado originalmente em 1946, Josué de Castro já se levantava contra essa representação do fenômeno e explicitava a existência da fome parcial ou oculta, “na qual pela falta permanente de determinados elementos nutritivos, em seus regimes habituais, grupos inteiros de populações se deixam morrer lentamente de fome, apesar de comerem todos os dias”.
Para o médico e geógrafo recifense, tão importante quanto explicar porque muitas pessoas morriam por não ter o que comer, era desvendar as relações econômicas e sociais responsáveis pela existência de um número muito maior de pessoas que vivia uma vida toda com fome, mesmo havendo alimentos suficientes para que isso não ocorresse.
Talvez por conta dos efeitos devastadores ou das fortíssimas imagens que produz, a inanição segue servindo para que que se encubra o drama da fome parcial. No entanto, isso não é suficiente para explicar a tão duradoura ocultação do fenômeno. É necessário reconhecer que há uma utilização, no mínimo, ambígua dos conceitos de insegurança alimentar, subnutrição e fome, o que não apenas prejudica a compreensão da realidade, como também difunde falsos consensos habilmente utilizados para justificar a manutenção de relações econômicas e sociais responsáveis pela fome.
Um conceito em disputa
Assim como ocorre com vários outros conceitos, não existe um consenso em torno da definição da fome e das formas de mensurá-la. Há quem entenda, como o presidente, que a fome estaria restrita aos casos mais agudos de subnutrição, caracterizados pela deficiência energética crônica, ou seja, por uma dieta insuficiente do ponto de vista calórico. Para quem adota essa definição a mensuração da fome passa pela avaliação antropométrica e são considerados famintos apenas os indivíduos emagrecidos, ou seja, aquelas pessoas cujo índice de massa corporal (a relação entre altura e peso) está abaixo do recomendado.
De forma semelhante, a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) utiliza o indicador de prevalência de subnutrição para definir o número de famintos em cada país. Calculado a partir da relação entre o suprimento de alimentos de um país (medido em disponibilidade calórica per capita) e o requerimento mínimo de energia de sua população, de acordo com a própria FAO esse indicador foi “projetado para capturar um conceito clara e estreitamente definido de subnutrição, nomeadamente um estado de privação de energia que dura mais de um ano”.
Há pelo menos três graves problemas nessa forma de definir e mensurar a fome. Primeiramente, a FAO toma como referência as necessidades calóricas mínimas para uma vida sedentária (em média 1.800 kcal/dia), muito aquém das necessidades de quem realiza trabalhos manuais. Em segundo lugar, o período de referência de um ano é muito longo, ocultando assim os graves efeitos produzidos pela escassez temporária de alimentos responsáveis por surtos de fome. Por fim, o indicador considera apenas a ingestão de calorias e não incorpora outros dados sobre a qualidade dos alimentos consumidos.
As definições que procuram restringir a fome aos casos mais graves de desnutrição ou subnutrição se aproximam do que Josué de Castro denominava como fome total, ou seja, “a verdadeira inanição que os povos de língua inglesa chamam de ‘starvation’, fenômeno, em geral, limitado a áreas de extrema miséria e a contingências excepcionais”.
Por essa razão, diferentes esforços foram realizados no sentido de adotar uma definição de fome mais compatível com a realidade vivida pelas pessoas que encontram dificuldade para se alimentar de forma adequada. Nesse sentido, no início da década de 1990 uma escala foi desenvolvida nos Estados Unidos com o objetivo de mensurar a insegurança alimentar nos domicílios.
Partindo da compreensão de que a insegurança alimentar é um fenômeno de intensidade variável e que seus estágios mais severos estão associados à fome, os pesquisadores responsáveis desenvolveram um questionário capaz de colher informações sobre uma variedade de condições, experiências e comportamentos que indicam a existência e o nível de insegurança alimentar nos domicílios.
Utilizando esses questionários os domicílios passaram a ser classificados em 4 categorias: segurança alimentar; insegurança alimentar sem fome; insegurança alimentar com fome (moderada); e insegurança alimentar com fome (grave). Nota-se que os dois termos não são tratados como sinônimos, mas que foi estabelecida uma relação direta entre os graus mais severos de insegurança alimentar e a fome.
Os dados sobre a insegurança alimentar e a fome no Brasil
A partir de 2003, no contexto de lançamento do Programa Fome Zero, tem início o esforço de traduzir e adaptar a escala desenvolvida nos Estados Unidos para que ela pudesse ser aplicada no Brasil e servisse, entre outras coisas, para acompanhar e avaliar as políticas públicas voltadas à promoção da segurança alimentar. Uma vez validada, a Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (EBIA) foi utilizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) como suplemento do questionário da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD) em 2004, 2009 e 2013, fornecendo assim os dados mais confiáveis que temos sobre a insegurança alimentar e a fome no Brasil. Atualmente, os dados mais atualizados são da PNAD de 2013, mas há previsão de atualização uma vez que a Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) de 2017-2018, cuja publicação está prevista para 2019, aplicou o questionário sobre a segurança alimentar nos domicílios.
Há, no entanto, duas diferenças significativas entre a escala estadunidense e a brasileira que podem ser responsáveis por um subdimensionamento da insegurança alimentar e da fome no Brasil. A primeira refere-se ao tempo de referência dos eventos de interesse, ou seja, o período sobre o qual incidem as perguntas da entrevista. Enquanto nos Estados Unidos as perguntas buscam captar episódios de insegurança alimentar domiciliar nos últimos 12 meses, no Brasil esse intervalo foi reduzido para 3 meses. Além disso, é preciso destacar que os pesquisadores que desenvolveram a escala estadunidense consideravam a existência de fome a partir do momento em que se constata a insegurança alimentar moderada, visto que nesses casos já haveria relato de redução na ingestão de alimentos, o que indicaria que os adultos teriam experimentados repetidamente a sensação de fome. Já no Brasil, oficialmente a identificação da fome está associada exclusivamente aos domicílios em situação de insegurança alimentar grave.
Por discordar da distinção realizada na adaptação da escala americana para a realidade brasileira, tomo aqui os dados referentes à insegurança alimentar moderada e grave para quantificar a fome no país. De acordo com as três edições da PNAD citadas acima, a proporção de domicílios em situação de insegurança alimentar era de 34,9% em 2004, 30,2% em 2009 e 22,6% em 2013. Se tomarmos os dados relativos à insegurança alimentar moderada e grave, nota-se que houve uma diminuição dos domicílios onde há incidência de fome: 16,9% em 2004; 11,5% em 2009 e 7,8% em 2013. Em números absolutos isso significa que em 2013 havia aproximadamente 17,5 milhões de pessoas convivendo com a fome em seus domicílios.
É impossível negar que entre 2004 e 2013 houve uma redução tanto da insegurança alimentar como da fome no Brasil, mas os dados também indicavam que ainda havia muito a ser feito para acabar com a fome no país. Em outras palavras, os esforços dos governos do Partido dos Trabalhadores (PT) produziram resultados expressivos, mas, ao mesmo tempo, não haviam sido suficientes para acabar com a fome e muito menos com a insegurança alimentar no país.
Como foi possível então que, a partir de 2014, o próprio governo federal tenha passado a afirmar, contra as evidências apresentadas pelos dados do IBGE, que a fome tinha se tornado um fenômeno isolado, em geral restrito a grupos específicos como as populações indígena, quilombola e em situação de rua?
Em um contexto de extrema polarização política e às vésperas da eleição presidencial de 2014, a retirada do Brasil do Mapa da Fome da FAO foi utilizada como um atestado da eficiência do modelo de gestão social implantado pelo PT desde 2003. Como vimos, a FAO adota uma concepção bastante restrita de fome e a saída desse mapa representava que o país estava a caminho de superar as formas mais graves de subnutrição (fome total), fenômeno gravíssimo e em geral restrito aos países mais pobres do mundo e associado a conflitos armados, guerras ou às consequências sociais de eventos naturais extremos.
É evidente que o PT merece ser reconhecido pelos esforços no sentido de tirar o Brasil dessa inquietante lista de países. No entanto, já naquele momento também era possível indagar sobre quais deveriam ser as próximas estratégias do governo federal para garantir a segurança alimentar para toda a sociedade. Bastaria uma intensificação das políticas e programas existentes ou seria necessário ir além e propor mudanças de caráter estrutural para que pudéssemos de fato superar o drama da fome?
Infelizmente de 2014 para cá o contexto político e econômico se deteriorou gravemente. Nos últimos anos temos observado o aumento do desemprego e da pobreza, fatores diretamente associados à fome no campo e na cidade. Além disso, desde o golpe de 2016 houve um fortalecimento de uma agenda política e econômica fundada nos cortes de gastos sociais e na supressão de direitos (trabalhistas, previdenciários, humanos etc.) que poderiam amenizar o sofrimento dos mais pobres. Nesse sentido, é muito provável que os dados da próxima pesquisa do IBGE sobre insegurança alimentar revelem que o desafio de acabar com a fome no país seja ainda maior.
Do reconhecimento à superação da fome
Frente a esse grave cenário é imprescindível que a sociedade brasileira reconheça a existência da fome e exija o compromisso do Estado com sua erradicação. A experiência mundial já demonstrou que não existem fórmulas mágicas para isso, mas é possível elencar um conjunto de ações que podem nos aproximar desse objetivo. Entre elas estão: o fortalecimento da agricultura camponesa, que produz 70% dos alimentos que consumimos; a melhoria da rede de abastecimento alimentar voltada às camadas populares, em especial nas periferias das grandes cidades; a generalização de restaurantes populares e comunitários, que podem ser utilizados para servir refeições gratuitas ou com preços subsidiados em áreas com alta incidência de insegurança alimentar; o aumento dos recursos destinados ao Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), garantindo que as crianças que necessitem tenham acesso à alimentação gratuita também nos períodos de férias; a readequação dos valores dos benefícios do Programa Bolsa Família que opera com uma linha de extrema pobreza mais baixa do que a linha adotada pelo Banco Mundial (R$ 89 e R$ 140 mensais respectivamente).
Estas são algumas das várias medidas de caráter emergencial que poderiam ser tomadas. Não há nenhuma grande novidade na sua proposição e todas elas já demonstraram que produzem efeitos positivos em termos de acesso aos alimentos. No entanto, mais importante ainda é reconhecer que também serão necessárias mudanças estruturais em nossa sociedade.
Historicamente o sucesso econômico das elites brasileiras não produziu melhorias nas condições de vida da população como um todo. Pelo contrário, em geral as condições necessárias ao sucesso de setores como o agroexportador e o capital financeiro, entre elas a baixíssima remuneração dos trabalhadores, assim como a concentração de terras e de capital, foram diretamente responsáveis pela existência da fome no país. A superação da fome passa, portanto, pelo enfrentamento do interesses econômicos que hoje governam o país.

A organização e mobilização verificada na realização do banquetaço nacional em fevereiro deste ano, quando em mais de 40 cidades foram preparadas e servidas milhares de refeições como forma de protesto contra o fim do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) e em apoio à luta pela produção de alimentos agroecológicos, demonstra que já existem organizações, coletivos, redes e movimentos dispostos a enfrentar esse desafio.
Além disso, uma vez que o Consea foi colocado no limbo e que tudo indica que a 6ª Conferência Nacional Segurança Alimentar e Nutricional prevista para novembro de 2019 não será realizada, em julho deste ano foi convocada por mais de 60 representantes de organizações e movimentos da sociedade civil e ativistas, a Conferência Nacional, Popular, Autônoma: por Direitos, Democracia e Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional a ser realizada no primeiro semestre de 2020.
Em suma, recolocar a fome no centro do debate não pode significar um estreitamento em nossos horizontes. Ainda que a situação alimentar de parte expressiva da população brasileira seja extremamente grave, não podemos reduzir nossas expectativas a mera garantia da sobrevivência. Como indicava Rosa Luxemburgo, no tenebroso início do século XX, precisamos vislumbrar formas de levar nossas gigantescas lutas ao extremo e de sair do colapso avançando.
José Raimundo Sousa Ribeiro Junior é doutor em Geografia Humana pela Universidade de São Paulo, professor visitante do Instituto de Saúde e Sociedade da UNIFESP e representante da Associação dos Geógrafos Brasileiros (AGB-SP) no Conselho Municipal de Segurança Alimentar (COMUSAN).
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