Doenças genéticas e classe social
Novas tecnologias reprodutivas prometem prevenir doenças genéticas graves. O que aconteceria se apenas os ricos tiverem acesso a elas?
A medicina genética e a manipulação de DNA suscitam muitas preocupações. Assim que essas palavras são pronunciadas, alguns imaginam resultados assustadores, experiências fracassadas, Frankensteins, mundos dominados por super-homens geneticamente modificados. Ao projetarmos cenários tão distantes, contudo, não correríamos o risco de nublar uma ameaça imediata e muito real? Pois, ao modificar nossa concepção da doença, a medicina genética contribui para o aumento das desigualdades.
Se pudesse, você usaria técnicas reprodutivas para evitar que seu filho tivesse uma doença hereditária? Para muitos pais em potencial, essa questão não é mais ficção científica. Se o genoma deles apresenta um risco particular de câncer de mama ou de ovário, agora eles podem evitar transmitir essa variante patogênica aos filhos. O mesmo acontece se cada um deles possuir um gene de atrofia muscular da coluna vertebral – o que implicaria uma chance de 25% de o bebê nascer com uma doença degenerativa fatal: novamente, a genética pode mudar o jogo.
Isso é desejável? Nos Estados Unidos, futuros pais respondem majoritariamente que sim, se levado em conta o sucesso crescente do teste genético introduzido em 2011, que permite a observação não invasiva do DNA fetal. Se ampliada a outras camadas da população, essa opinião torna-se mais contrastada: os norte-americanos de forma geral aprovam certos usos e recusam outros. De acordo com um estudo de 2018 da Universidade de Chicago,1 os norte-americanos seriam favoráveis a intervenções destinadas a reduzir o risco de câncer em uma criança, mas rejeitariam a possibilidade de escolher a cor dos olhos ou otimizar sua inteligência. Em resumo, bebês saudáveis, mas não catalogados.
Ironicamente, essa é justamente a manipulação genética com fins terapêuticos – em sua versão mais consensual – que poderia apresentar mais problemas em um futuro próximo. Como prevenir doenças hereditárias poderia ser algo nefasto? À primeira vista, a operação é totalmente benéfica. Entretanto, várias indicações sugerem que os testes pré-natais podem se tornar um luxo reservado a uma elite, transformando certas doenças genéticas em um problema “que só acontece com outras pessoas”.

Isso é sugerido pelo caso da síndrome de Down, ou trissomia 21, uma anomalia cromossômica relativamente comum e para a qual as mulheres conseguem realizar testes de detecção há décadas. A síndrome de Down é uma diferença, não uma doença em si. Em 2011, uma equipe de pesquisadores entrevistou 284 pessoas com mais de 12 anos afetadas por essa síndrome: 99% disseram que estavam felizes.2 Na ocasião das entrevistas, muitos pais me confiaram se considerar privilegiados por terem um filho trissômico, apesar de sublinharem a necessidade de recursos e apoio. Também mencionam a importância de um diagnóstico pré-natal que integre certa compreensão das experiências e necessidades das pessoas envolvidas. Esse ideal raramente é posto em prática, e programas avançados de triagem às vezes são vistos como uma afronta à humanidade das pessoas com deficiência.
Paradoxalmente, restringir o acesso à triagem pode ser ainda mais perigoso para o bem-estar das pessoas com síndrome de Down, transformando esse evento aleatório em uma anomalia quase ausente em alguns grupos e relativamente comum em outros. Nem todo mundo decide fazer o teste dessa síndrome e, quando o resultado é positivo, alguns pais preferem continuar a gravidez. A grande maioria, entretanto, faz a escolha oposta. Segundo um estudo – o mais abrangente sobre o assunto – publicado em 2012 por pesquisadores da Universidade da Carolina do Sul,3 dois terços das mulheres grávidas que descobrem que seu feto é portador da síndrome de Down optam por fazer um aborto. Mas essa proporção varia de acordo com o ambiente, e a probabilidade de uma mulher dar à luz um filho com síndrome de Down depende de sua cultura, crenças religiosas, local de vida, renda etc. O acesso aos testes pré-natais modificou a incidência da síndrome de Down a ponto de torná-la uma marca geográfica e de classe. Como as famílias abastadas têm cada vez menos filhos afetados, a síndrome está cada vez mais associada a outros ambientes.
Existem milhares de doenças genéticas e em breve poderemos diagnosticá-las ainda mais no início da gravidez. Os testes se concentrarão em doenças que gerem risco de vida desde a infância, em patologias menos graves ou mesmo em doenças que aparecerão mais tarde, como Parkinson ou Alzheimer. Em alguns casos, os resultados poderão atestar se a criança será portadora de determinada doença. Entretanto, na maioria das vezes, apontam apenas um risco aumentado, indicando a presença de genes que colocam as pessoas em maior risco de doenças cardíacas ou câncer de colo do útero, por exemplo.
Para muitos pais, o aborto é um ato doloroso, e isso limita a incidência de testes pré-natais. A situação é muito diferente quando se trata de escolher entre vários embriões no contexto da fertilização in vitro (FIV). Esse setor está crescendo nos Estados Unidos, em parte graças ao teste genético pré-implantação (PGT), que envolve a coleta de uma pequena amostra de células de um embrião inicial para analisar seu DNA.
Recentemente, chegaram ao mercado muitas ofertas de rastreamento de centenas de doenças raras, como fibrose cística ou doenças órfãs, como trimetilaminúria, também conhecida como “síndrome do odor de peixe podre”, um distúrbio metabólico caracterizado por emanações corporais fétidas. Esses testes são caros, e ainda assim não é nada comparado ao valor que é preciso desembolsar para utilizar essas informações em outras análises. Por exemplo, o sr. e a sra. Smith descobrem que ambos são portadores do gene da hipofosfatasia – o que faria seus filhos terem uma chance em quatro de nascer com ossos fracos e deformados, e morrer cedo. Para evitar essa probabilidade, eles podem passar pelo teste PGT. A fertilização in vitro custará US$ 20 mil por ciclo, aos quais deverão ser adicionados US$ 10 mil em custos laboratoriais para determinar quais embriões não são portadores da doença.
Para muitas famílias, essas quantias são insignificantes: equivalem mais ou menos a um ano de universidade, e elas podem evitar desastres. Um casal rico com histórico de câncer de mama e ovário pode se livrar desse flagelo em uma geração. E, se produz embriões suficientes, pode tirar proveito deles para reduzir o risco de desenvolver a doença de Alzheimer ou escolher um bebê menos propenso a doenças cardíacas nas coronárias. Para outras famílias, essas despesas são proibitivas, em um contexto em que nada é feito para tornar a fertilização in vitro mais acessível.
Nos Estados Unidos, pouco menos de 2% dos recém-nascidos são concebidos dessa maneira; nos países que destinam fundos públicos à procriação assistida por medicamentos – como Israel, Dinamarca e Bélgica –, os números são duas a três vezes maiores. Quarenta anos após sua introdução, a técnica permanece fora do alcance de muitos bolsos norte-americanos.
As desigualdades no sistema de saúde nos Estados Unidos não são novas e o acesso à fertilização in vitro é apenas um exemplo entre muitos. Mas, considerando as possíveis consequências de um mundo em que apenas os ricos possam reduzir ou eliminar o risco de doença genética, a aposta assume dimensões inteiramente diferentes. Algumas patologias hereditárias sempre afetaram populações em particular, como a anemia falciforme, mais presente nos afro-americanos, a doença de Tay-Sachs, nos judeus asquenazes, ou mesmo um raro caso de nanismo observado entre os Amish. Com os testes pré-natais, as doenças genéticas podem atingir desproporcionalmente certos grupos regionais, culturais e socioeconômicos – geralmente os mais frágeis.
O problema não é apenas moral, mas também prático. Famílias abastadas lutam contra essas doenças faça chuva ou faça sol: financiam pesquisas, divulgam as doenças que afetam seus pares, estabelecem associações, atraem a atenção da mídia. As famílias modestas não têm esse poder e provavelmente serão perdedoras na “Olimpíada das Doenças”,4 um jogo de soma zero em que certos grupos pressionam e buscam direcionar fundos de pesquisa e assistência para determinadas doenças que os preocupam.
Além disso, esses grupos podem alimentar uma crescente falta de empatia e de tolerância: se uma parte da população se sente protegida, ela pode não ter o reflexo da compaixão, sentimento que decorreria do exercício de se colocar no lugar de uma pessoa doente ou com deficiência, ou ainda de pais com filhos nessas condições. Proteger os filhos parece, dessa forma, uma questão de jurisdição e responsabilidade dos pais. Onde a sociedade via o acaso, ou a má sorte, passará a ver uma falha e relutará a “pagar pelos erros dos outros”.
Laura Hercher é diretora de pesquisa no programa de genética humana Joan H. Marks no Sarah Lawrence College, Estados Unidos, e âncora do podcast The Beagle Has Landed. Uma versão longa deste artigo foi publicada na revista norte-americana The Nation (23 ago. 2019).
1 “The December 2018 AP-NORC Center Poll”, The Associated Press – NORC Center for Public Affairs Research da Universidade de Chicago, dez. 2018. Disponível em: <www.apnorc.org>.
2 Brian Skotko, Sue Levine e Richard Goldstein, “Self-perceptions from people with Down syndrome” [Autopercepção de pessoas com síndrome de Down], American Journal of Medical Genetics, v.155, n.10, Hoboken (Nova Jersey), out. 2011.
3 Jaime Natoli (org.), “Prenatal diagnosis of Down syndrome: a systematic review of termination rates (1995-2011)” [Diagnóstico pré-natal da síndrome de Down: uma revisão sistemática das taxas de aborto (1995-2011)], Prenatal Diagnosis, v.32, n.2, Charlottesville (Virgínia), fev. 2012.
4 Virginia Hughes, “The Disease Olympics” [Olimpíadas das Doenças], 6 mar. 2013. Disponível em: <www.virginiahughes.com>.