Dogmas ambientais
Em resposta à crítica que recebeu de Bruno Milanez, o autor defende que “a empresa privada não é uma caixa preta imune à pressão social” e pode, sim, modificar seus comportamentos em relação ao meio ambiente a partir das reivindicações da sociedade: um tema de enorme atualidade e impacto político
“Ambientalismo empresarial”, artigo que publiquei na terceira edição de Le Monde Diplomatique Brasil, em outubro, recebeu crítica de Bruno Milanez no número 5, de dezembro. O texto contém quatro observações básicas. Primeiro, ele se insurge contra a equipe do jornal por ter publicado o artigo que “carece do olhar crítico que caracteriza o periódico”. Em segundo lugar, repudia a perspectiva metodológica que usa programas teóricos desenvolvidos na França e nos Estados Unidos para inspirar perguntas e hipóteses sobre fenômenos brasileiros. O terceiro ponto falho, segundo a crítica, é que o artigo ignora a devastação e os comportamentos predatórios das empresas. Por fim, reitera, na opinião de Milanez, a crença neoliberal de que o Estado não tem condições de intervir na questão ambiental e é crédulo em um horizonte de empresas bem intencionadas para tratar do tema.
O jornalismo responsável tem a missão básica de trazer um conjunto de fatos e análises que ampliem a capacidade do leitor de interpretar a complexidade do mundo em que vive. A natureza crítica dessa atividade não pode consistir na denúncia das várias dimensões de um suposto “modelo dominante” (na agricultura, na indústria, na macroeconomia, na cultura), cujas leis gerais já são suficientemente conhecidas e do qual cabe ao jornal exprimir os exemplos. Nem tampouco em julgar que as alternativas a esse modelo já estão dadas. Que este seja o procedimento de um partido político ou de uma agremiação religiosa é compreensível. Afinal, nesses casos, trata-se de passar uma mensagem clara cujo desfecho é a ação. No caso de um jornal, a idéia de que existe uma compreensão integrada, clara, organicamente articulada entre a maneira como funciona a sociedade e as razões que explicam suas crises (seu modelo dominante) só poderia conduzir ao conforto do dogmatismo. A marca decisiva de um jornalismo de qualidade está justamente em apontar fatos e interpretações da realidade que vão além do senso comum e daquilo que o leitor já sabe.
Neste sentido, informar o público brasileiro que, nos Estados Unidos, uma equipe inspirada nos trabalhos do célebre sociólogo Pierre Bourdieu e na noção por ele elaborada de campos sociais está descobrindo dimensões novas e interessantes no comportamento das empresas não quer dizer que isso seja o traço dominante do que é feito pelas corporações norte-americanas. Da mesma forma, o resultado de pesquisas sobre a “gestão antecipativa da contestabilidade”, formulada por Olivier Godard (um dos mais expressivos nomes do ambientalismo europeu, cuja influência foi decisiva para que a Constituição francesa incorporasse o princípio da precaução – em nome do qual, agora, a França decidiu congelar o avanço dos transgênicos em seu território), pode abrir ao leitor brasileiro a oportunidade de enriquecer sua própria reflexão sobre o tema. Os programas de pesquisa citados no texto não têm a ambição de exprimir “a realidade estadunidense e francesa”, ao contrário do que diz Milanez. O que interessa neles são os conceitos em que se apóiam, a visão teórica que oferecem da realidade que interpretam, as perguntas estimuladas pela formulação, as hipóteses que sugerem e os métodos em que se sustentam. Se isso é útil ou não para o “caso brasileiro”, vai depender do talento do pesquisador que recorre a esses programas. Que o emprego de trabalhos de “pesquisadores africanos, asiáticos e, no nosso caso particular, latino-americanos” é importante não há dúvida. Mas que a origem nacional dos pesquisadores possa atestar a fertilidade de sua utilização é uma idéia que reduz a atividade intelectual ao paroquialismo ou ao dogma.
O terceiro aspecto da crítica de Milanez é que “Ambientalismo empresarial” não mostra o caráter eminentemente predatório da ocupação do território nacional e trata as atividades das companhias brasileiras como se fossem movidas por preocupações socioambientais. Para isso, insiste que nosso problema não está tanto na Amazônia e sim no Cerrado e apresenta a informação de que entre 1986/1987 e 2000/2001 “não houve nenhuma derrubada de floresta para plantação de soja”.
O cerrado e a Amazônia
Já que Milanez procurou passar ao leitor informações ausentes do artigo que ele criticou, não deveria ter omitido os dados da equipe da Universidade Federal do Pará, publicadas na edição de julho de 2007 de Ciência Hoje, que mostram o extraordinário avanço de áreas mecanizadas na Amazônia. O que Milanez quis dizer é que fazer um pacto que restrinja o avanço de novas ocupações na Amazônia sem que isso inclua também o Cerrado não passa de cortina de fumaça. Esta posição foi defendida no capítulo sobre agricultura sustentável da Agenda 21 brasileira, redigida pela equipe do Departamento de Economia da FEA/USP e do Instituto Emílio Goeldi em 1999. A ela se pode fazer hoje – mas talvez não em 1999 – uma ressalva: é importante denunciar e reverter as práticas destrutivas no Cerrado, mas não se deve subestimar a importância de um acordo que envolva, inicialmente, a Amazônia. E isso nos leva ao quarto ponto da crítica.
Que a esmagadora maioria das práticas de responsabilidade socioambiental não passa de “greenwashing”, de propaganda enganosa, de tentativa de mudar a embalagem dos produtos, disso não há dúvida. Que o ambientalismo empresarial “é algo ainda muito incipiente no Brasil” ou que a soja e o carvão sejam setores suficientemente problemáticos para que as mudanças aí anunciadas pelas empresas despertem desconfianças, como insiste Milanez, é verdade. Mas ele aí arromba uma porta aberta e apóia sua crítica naquilo que não leu no artigo que critica: em sua opinião, “o autor [de “Ambientalismo empresarial”] sugere ao leitor, mesmo que implicitamente, que as empresas que fazem parte desses arranjos (algumas das quais são mencionadas nominalmente) praticam uma boa gestão ambiental e social, o que é altamente questionável”. Não é verdade. O que “Ambientalismo empresarial” sustenta não é que as empresas pratiquem boa gestão ambiental e social. Isso não está no artigo. Tampouco o texto preconiza que o governo se omite ou sugere que ele nada pode fazer nos temas que se referem a sustentabilidade socioambiental. O que o texto e as correntes teóricas em que se inspira procuram fazer é mostrar que a empresa privada não é uma caixa preta imune à pressão social. Mais do que isso: a não ser que se preconize, como base da mudança social, a eliminação do setor privado e sua transformação em propriedade pública, os esforços no sentido de mudar os comportamentos empresariais são temas politicamente decisivos e de imensa atualidade científica. Acusar de neoliberais os que acreditam na capacidade de o mundo social interferir no que fazem as empresas é preferir o conforto da retórica aos desafios mais difíceis da mudança social.
*Ricardo Abramovay é professor titular do Departamento de Economia da FEA/USP, pesquisador do CNPq e integrante do Conselho Editorial de Le Monde Diplomatiuqe Brasil. www.econ.fea.usp.br/abramovay