Dois argumentos de Ortega y Gasset contra a direita brasileira – que o cultua
“A rebelião das massas”, que hoje é compartilhado por alunos de Olavo de Carvalho nas redes sociais e disponibilizado em sites e blogs nomeadamente conservadores, como o Terça Livre, no entanto, possui argumentos que, se lidos com acuidade e honestidade intelectual, são na verdade caros a essas posições
Como a maioria dos escritores do chamado boom da literatura latino-americana, o peruano Mario Vargas Llosa entrou nos anos 1960 como um socialista convicto. A Revolução Cubana, em 1959, fora vista por escritores como ele e o colombiano Gabriel García Márquez como o grande acontecimento político da região no século XX, e quiçá um dos episódios mais importantes da história da América Latina. O encanto, porém, durou pouco: ao longo daquela década, Llosa foi se tornando crítico do governo revolucionário cubano ao mesmo tempo em que se inclinava para um liberalismo cuja referência encontrava nas leituras do filósofo espanhol José Ortega y Gasset.
A virada definitiva não poderia ser mais simbólica: em fevereiro de 1976, durante uma sessão de cinema na Cidade do México, ele esbofeteou García Márquez – já próximo de Fidel Castro e responsável pela recém-criada Prensa Latina – no rosto. Outrora amigos íntimos, eles não voltariam a se falar nunca mais.
Nessa época, “A rebelião das massas”, publicado como livro por Ortega y Gasset em 1930, em Madri, na Espanha (a obra começou a ser feita em 1926, por meio de artigos escritos no jornal espanhol El Sol, onde ele trabalhava como jornalista), já era mais famosa do que o seu autor, que morrera em outubro de 1955. Um ano depois do soco de Llosa em García Márquez, o filósofo espanhol Julián Marías escreveu um prefácio a uma nova edição dizendo que ali estava uma das obras mais relevantes do século XX – e agregava: “Eu diria também que é uma das mais mal-interpretadas.”
Massa rebelde
Uma dessas interpretações diz respeito à “massa rebelde” que Ortega y Gasset se referia. As esquerdas reagiram dizendo que ele, um burguês, estaria se referindo à classe trabalhadora espanhola do começo do século XX, que começava a ter voz no contexto da Segunda República Espanhola (1931-1939). Essa leitura ganha vigor porque, entre os exemplos que o filósofo dava dessa rebeldia estava o sindicalismo francês – mas não só.
As esquerdas, obviamente, também torceram a boca para o pessimismo de sua filosofia em relação às hierarquias sociais – que para ele são ontológicas em qualquer sociedade –, enquanto as direitas conservadoras preferiram se atentar apenas à sua teoria da história.
A crítica à esquerda, de qualquer forma, é válida: o filósofo considerava ser mais fácil encontrar “indivíduos sem qualidade” nas classes inferiores, assim como grandes homens nas classes superiores – e nisso sua filosofia, além de deixar de ser reflexão concreta para ser juízo de valor, constrói uma ferramenta conceitual que estabelece divisões sociais a partir das posições de classe, uma estratégia comum dos estratos superiores intelectualizados, como argumentava o sociólogo Pierre Bourdieu.
Confusões interpretativas
Julián Marías, porém, pode ter colaborado para as confusões interpretativas que rodeiam até hoje o livro de Ortega y Gasset, como a leitura que foi feita de “A rebelião das massas” no Brasil dos últimos anos, em que houve uma ascensão de grupos conservadores na sociedade suficiente para transbordar para a política institucional.
Teólogo além de filósofo, ele é autor de “A perspectiva cristã”, livro de 1999, que hoje é difundido à exaustão em fóruns da direita conservadora brasileira. Como Marías participou de cursos que Ortega y Gasset ministrou na Espanha nos anos 1930 – há quem diga que foi seu mentor –, a associação dos pensamentos entre ambos parece natural. “A rebelião das massas”, que hoje também é compartilhado por alunos de Olavo de Carvalho nas redes sociais e disponibilizado em sites e blogs nomeadamente conservadores, como o Terça Livre, no entanto, possui argumentos que, se lidos com acuidade e honestidade intelectual, são na verdade caros a essas posições – especialmente no Brasil de 2018-2019. Dois deles serão expostos aqui.
A violência como norma
O primeiro deles serve como base para todo o pensamento do filósofo tanto em “A rebelião das massas” como em seus demais livros e ensaios: a crítica à violência como norma. Ortega y Gasset diagnosticava em 1926 que, pela primeira vez na história, um tipo específico de ator público assumia o controle da sociedade: o homem-massa, em cuja estrutura psicológica se encontravam duas concepções vulgares da vida – a primeira era a de que a existência humana não necessitava mais de esforço para ser praticada, de que os limites haviam sido superados pelos séculos anteriores, dos quais ele era um herdeiro desleixado, e a segunda de que, por causa disso, ele sentia-se intelectual e moralmente completo, sendo incapaz de escutar razões que não as suas próprias.
Esse “homem vulgar”, que a história sempre havia relegado à obediência e que agora estava à frente da Europa, resolvera agir no mundo por meio da “ação direta”, era o “garoto mimado da história humana” que andava por toda a parte impondo sua “barbárie íntima”. Ortega y Gasset fazia referência, sobretudo, ao fascismo italiano.
O homem-massa é, para o autor, uma postura no mundo, uma forma de ser, um saber de si que Ortega y Gasset julga equivocado e assim, longe de se referir a classes sociais, propõe analisar sua psicologia. Esse novo ator havia tomado o poder, e o problema desse diagnóstico era que ela tinha resolvido governar o mundo sem ser capaz, sobrando-lhe só a violência como instrumento.
“Ter uma ideia é crer que se possuem as razões dela, e é, portanto, crer que existe uma razão, uma orbe de verdades inteligíveis. Idear, opinar, é uma mesma coisa como apelar a tal instância, submeter-se a ela, aceitar seu código e sua sentença, crer, portanto, que a forma superior da convivência é o diálogo em que se discutem as razões de nossas ideias. Mas o homem-massa sentir-se-á perdido se aceitasse a discussão, e instintivamente repudia a obrigação de acatar a essa instância suprema que se acha fora dele. […] Detesta-se toda forma de convivência que, por si mesma, implique acatamento de normas objetivas, desde a conversação até o parlamento, passando pela ciência. Isso quer dizer que se renuncia à convivência da cultura, que é uma convivência sob normas, e retrocede-se a uma convivência bárbara”, escreveu ele em seu livro clássico. Qualquer semelhança com o fenômeno bolsonarismo não é mera coincidência.
Liberalismo
O oposto da violência, para Ortega y Gasset, poderia ser encontrado naquela liberdade que filósofos como John Stuart Mill tinham exaltado no liberalismo. Nesta forma política, o diálogo, a convivência e a aceitação do outro estavam impregnados em instrumentos como a razão, os trâmites, a justiça e as normas, expressões de uma “suprema generosidade” antinatural que os seres humanos haviam alcançado na organização de suas sociedades em contraposição à força, à barbárie e à incivilidade. Mais do que o liberalismo, portanto, o autor de A rebelião das massas acreditava que ele precisaria ser democrático – leia-se progressista.
“O liberalismo – convém hoje recordar isto – é a suprema generosidade: é o direito que a maioria outorga à minoria e é, portanto, o mais nobre grito que soou no planeta. Proclama a decisão de conviver com o inimigo; mais ainda, com o inimigo débil. Era inverossímil que a espécie humana houvesse chegado a uma coisa tão bonita, tão paradoxal, tão elegante, tão acrobática, tão antinatural. Por isso, não deve surpreender que tão rapidamente pareça essa mesma espécie decidida a abandoná-la. É um exercício demasiado difícil e complicado para que se consolide na Terra”, diz em outro trecho de sua obra.
E sobre o liberalismo em oposição à barbárie do homem-massa, ele diz: “Trâmites, normas, cortesia, usos intermediários, justiça, razão! De que veio inventar tudo isso, criar tanta complicação? Tudo isso se resume na palavra ‘civilização’, que, através da ideia de civis, cidadão, descobre sua própria origem. Trata-se com tudo isso de fazer possível a cidade, a comunidade, a convivência. Por isso, se olhamos por dentro cada um desses instrumentos da civilização que acabo de enumerar, acharemos uma mesma entranha em todos. Todos, com efeito, supõem o desejo radical e progressivo de cada pessoa contar com as demais. Civilização é, antes de tudo, vontade de convivência. É ser incivil e bárbaro na medida em que não se conte com os demais”.
Críticas à esquerda à parte, o argumento central de Ortega y Gasset é um ataque conceitual e moral a várias facetas da parcela conservadora da direita brasileira atual – que o cultua. A primeira é ao comportamento violento do bolsonarismo na arena pública, como quando o então candidato a deputado estadual Rodrigo Amorim (PSL-RJ) quebrou uma placa de rua que fazia referência à vereadora Marielle Franco – assassinada no Rio de Janeiro em março do ano passado – durante um evento de sua campanha. A placa havia sido colocada em um logradouro do bairro da Cinelândia por membros do PSOL, partido de Marielle. Eleito com mais de 140 mil votos um mês depois, Amorim ressimbolizou o ato emoldurando a peça quebrada e pendurando-a no seu novo gabinete – exatamente a expressão da violência como norma.
“Incivilizadas”
Outra faceta atacada pelo argumento de Ortega y Gasset são as posições e proposições violentas e “incivilizadas”, nos seus termos, que se expressam na figura do hoje presidente da República, Jair Bolsonaro. Para não citar ataques a grupos minoritários da sociedade na imprensa, ele iniciou, ainda quando parlamentar, um movimento de exaltação à figura de Carlos Alberto Brilhante Ustra, coronel do Exército que ficou conhecido como um dos principais torturadores do período militar brasileiro (1964-1985). Frei Tito, uma das vítimas, escreveu em um relato de 1970 que, antes de um interrogatório, Ustra lhe afirmou que ele iria conhecer a “sucursal do inferno”. O Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI), que ele chefiou entre 1970 e 1974, matou 47 pessoas, segundo a Comissão da Verdade. Para além das declarações, Bolsonaro venceu a campanha eleitoral de 2018 prometendo que, se eleito, tentaria modificar as regras da Lei do Desarmamento para facilitar o acesso dos cidadãos a armas de fogo. Entidades nacionais e internacionais consentem que a medida tenderá a recrudescer a violência na sociedade brasileira. Ainda assim, o projeto avançou por meio de um decreto que o presidente assinou em fevereiro.
O sábio-ignorante
Em A rebelião das massas Ortega y Gasset também expôs os problemas da divisão do trabalho marcada pelo fenômeno do especialismo. Um deles tinha ligação instantânea com o diagnóstico do homem-massa: seu caráter de sábio-ignorante.
O sábio-ignorante era produto da organização social do século XX, porque fora nesse século que a ciência passou a abranger (e a depender de) um maior número de pessoas para operar. Nesse movimento, ela se recortou progressivamente em áreas tão distintas que, em dado momento, se tornou impossível construir uma interpretação geral da realidade – como faziam os intelectuais “pré-modernos” –, e setores científicos passaram a ser completamente estranhos uns aos outros.
Assim, o cientista moderno “é um homem que, de tudo que precisa saber para ser um sujeito sensato, só conhece uma determinada ciência, e mesmo desta ciência só conhece bem a pequena porção em que é um investigador ativo”.
O fenômeno do especialismo já vinha sendo criticado de várias formas desde antes dos anos 1920 e ganharia expressão popular por meio do filme Tempos modernos, de Charles Chaplin (1936), mas Ortega y Gasset via nele um problema mais grave. Sendo o indivíduo moderno um especialista em sua área de conhecimento, um “indivíduo parcialmente qualificado”, ele assumia aquela postura típica de segurança de si do homem-massa e, de posse dela, se colocava em todos os outros debates existentes dos quais, recortados pela própria ciência, ele nada sabia. Se a característica desse sujeito é “não querer dar razões nem querer ter razão”, o sábio-ignorante “se trata de um senhor que se comportará em todas as questões que ignora não como um ignorante, mas com toda a petulância de quem é um sábio em sua questão especial”.
O sábio-ignorante, para o filósofo espanhol, é um homem médio entre a ignorância e o conhecimento que, por meio de sua posição especializada, constrói ideias taxativas sobre o mundo e não consegue escutar nada nem ninguém que não a sua própria opinião. Em sociedades em que a violência é a norma, em que o convívio com os outros por meio do diálogo é a última ratio, “já não é tempo de escutar, mas ao contrário, de julgar, de sentenciar, de decidir”. Portanto, em todas as questões da vida pública era fácil encontrar as análises grosseiras do sábio-ignorante, um “cego e surdo impondo suas opiniões”.
Ortega y Gasset escreveu isso sete décadas antes do surgimento e da expansão das redes sociais virtuais que, como afirmou o escritor italiano Umberto Eco em 2015, sem nenhuma preocupação com o tom das palavras, “deram voz a uma legião de imbecis”. De fato, delas saíram questões controversas da contemporaneidade, mas que demonstram como suas preocupações eram legítimas: o debate sobre o formato do planeta Terra, a difusão em grande escala de fake news, o crescimento do ódio na internet e seu transbordamento para a realidade em vários países e a capacidade de manipulação de dados e de informações para fins políticos e econômicos afirmam a atualidade de A rebelião das massas para além das divisões dos espectros políticos. O que ele apontava é observado agora, em que a última atitude de uma direita em ascensão e no controle do Estado é “escutar” críticas possíveis.
Se por um lado, a colocação de mais gente na arena pública que as redes sociais operaram é um dos últimos fenômenos alcançados pelas democracias, por outro é uma das armas de sua própria destruição, porque permitiu, nos termos de Ortega y Gasset, que os sábios-ignorantes não apenas expandissem sua capacidade de opinar sobre o que não sabem, como lhes deu poder para arregimentar outros da mesma estirpe e aumentar sua capacidade de ação. Em outras palavras, o filósofo estava dizendo que um homem medianamente qualificado, seguro de si mesmo o suficiente para não escutar, só falar e fazer, era um perigo para a vida civilizada moderna. E se essa crítica pode ser usada pelos conservadores em relação aos espectros que se lhe opõem, como as esquerdas, cabe perfeitamente também para si mesma, já que até para cultuar a história em detrimento ao futuro é preciso algum conhecimento correto dela.
Vinícius Mendes é jornalista, cientista social e mestrando do Departamento de Sociologia da USP.