Dois pontos de início para o fim
Autora Camila Prando, radicada em Brasília, explora as múltiplas facetas da separação e do matrimônio em livro experimental de poesia
Primeiro, o casamento; depois, a separação. Ou seria o inverso? Em Diário de separação / matrimônio (Macabéa, 2024), da autora paranaense radicada em Brasília, Camila Prando, a ordem dos fatores altera o resultado. A obra tem dois pontos de partida e dois finais possíveis: casamento ou separação, separação ou casamento. E o leitor decide por onde iniciará seu trajeto.
O projeto gráfico insere essa dualidade nas capas: são duas, uma para cada lado da publicação, indicando os dois livros no mesmo volume. Ao optar por começar pelo matrimônio, é possível identificar logo nos primeiros versos o uso de uma língua, digamos, inventada, que terá continuidade: “Empiezo escribiendo / em portuñol porque foi assim que começou / E terminou”. Pela via da separação, o livro se apresenta assim:“Costelas / feito / lanças / veias roxas / no dorso / da mão / tudo / devorado / pura fratura / os restos espalhados”. A invenção de uma língua, por um lado, o estilhaço, por outro. Síntese e separação, tão complementares, unidos na edição.
O que também se destaca na composição da obra são os elementos gráficos, como desenhos, carimbos, documentos judiciais rasurados, poemas de um verso só, poemas rarefeitos na página e marcações temporais de datas. O acúmulo dessas informações leva a supor uma espécie de estudo ou investigação em curso, cujo objetivo é reunir provas, senão da cena de um crime, do tempo vivido que se perdeu. Como nos versos: “As fotografias / agarram a casa / a um passado / feito uma pinça / num único pelo.”
A ambivalência parece costurar todo o volume: matrimônio e separação, síntese e estilhaço, fragmento e totalidade, e início e fim. Segundo a autora, a escrita se deu em dois momentos, ou movimentos, distintos. O Diário de separação foi uma escrita lenta, fragmentada, que ganhou unidade no processo de montagem. O Matrimônio aconteceu durante uma viagem de avião, em que começou a ler Libros chiquitos, da argentina Tamara Kamenzain; na qual ela se referia à experiência de Paloma Vidal, autora nascida na Argentina e que cresceu no Brasil, de escrever durante um voo. Como diz a própria Tamara, livros bons, para ela, são “aqueles que nos fazem parar de ler para escrever.”
O matrimônio/Diário de separação é um diário pouco usual, que se volta mais para a reunião de indícios de acontecimentos do que para a confissão derramada de si mesma. Uma influência, talvez, do trabalho da autora, que é pesquisadora de temáticas relacionadas ao desaparecimento no sistema de justiça criminal brasileiro.
Os poemas sintéticos e alusivos contrastam com a ambiência doméstica, causando um tipo de estranhamento. Tomamos parte de algo que é e não é familiar, simultaneamente – temos um diário em mãos, documentos e indícios quase óbvios e, ainda assim, não estamos totalmente imersos no que nos é mostrado. Camila Prando, afinal, parece escrever algo que adiamos tocar por completo, como nos versos: “O telefone toca / Eu não escuto / Eu não escuto / Eu não escuto.”
Ana Luiza Rigueto é jornalista, poeta e crítica de literatura.