Donald Trump e a promessa de uma nova era de ouro
O presidente estadunidense aproxima-se do que alguns autores têm denominado pós-fascismo, um fenômeno que representa um amálgama instável entre ultranacionalismo e liberalismo, marcado por contradições internas profundas
Nas primeiras semanas de seu novo governo, Donald Trump proclamou o começo de uma “nova era de ouro” para os Estados Unidos. Mas as promessas de renascimento nacional escondem algo mais sombrio. Elas não são apenas otimismo exagerado. Sua retórica messiânica transformou a vitória eleitoral em um evento místico, uma ruptura definitiva com o passado e o início de uma vida nova. Em seus discursos carregados de simbolismo ecoam vestígios de uma ideologia fascista. Trump redesenha o futuro do país, lançando dúvidas sobre os rumos da democracia norte-americana e alimentando temores sobre a verdadeira natureza de sua liderança.
A análise de pronunciamentos reunidos pelo The American Presidency Project revela uma guinada em sua narrativa política. Durante o primeiro mandato, Trump nunca mencionou uma “nova era de ouro” em seus discursos presidenciais. A ênfase recente nessa ideia indica uma mudança estratégica e simbólica, que levanta questionamentos sobre os objetivos dessa nova abordagem. Mais do que uma simples mudança retórica, trata-se de um reposicionamento que pode sinalizar um movimento mais profundo e potencialmente ameaçador, moldando não apenas sua própria imagem, mas também a trajetória de uma nação inteira.

Foi em um comício realizado em Butler, Pensilvânia, no dia 5 de outubro de 2024, durante a campanha presidencial, que Trump falou pela primeira vez em uma “nova era de ouro”. O contexto não poderia ser mais carregado de simbolismo. Doze semanas antes, na mesma cidade, no mesmo local, Trump havia sobrevivido a um atentado que quase lhe custou a vida. Diante de seus apoiadores, o candidato dramatizou o episódio ao relembrá-lo. Declarou que o atirador havia falhado devido “à mão da Providência e à graça de Deus”. E proclamou com veemência: “daqui apenas um mês, vamos inaugurar uma nova era de ouro de segurança americana, prosperidade, soberania e liberdade para nossos cidadãos de todas as raças, religiões, cores e credos”.[1]
Em seu discurso, Trump resgatou seu velho slogan Make America Great Again, mas agora este era ampliado com a promessa de novos tempos. A narrativa implicava um rompimento ainda mais profundo com o passado recente e um desejo declarado de transformação radical. Não se tratava apenas de rejeitar a herança dos governos democratas. O atual presidente parecia desdenhar de toda a história política norte-americana, incluindo as administrações republicanas. Essa negação do passado tem se expressado nas críticas que frequentemente dirige a seus predecessores, contrariando o protocolo. Biden, Obama, Clinton, Bush, pai e filho, Regan e até mesmo Abraham Lincoln e George Washington já foram objetos de suas farpas.[2]
O simbolismo do momento era extraordinariamente poderoso. Ao proclamar o início de uma nova era no mesmo lugar onde enfrentara a proximidade da morte, Trump transformava sua narrativa em algo impregnado de misticismo e grandiosidade messiânica. Esse renascimento, quase milagroso, não se limitava a ele como indivíduo, mas era apresentado como um evento de alcance nacional, destinado a inspirar e redimir toda uma nação. Sob sua liderança, os Estados Unidos, deveriam se erguer das cinzas de um passado atribulado e reencontrar seu esplendor, numa espécie de renovação coletiva que unia destino pessoal e nacional em uma só trajetória épica.
Nos dias seguintes, Trump reforçou essa ideia. No dia 15 de outubro, em Atlanta, Georgia, anunciou: “vamos lançar uma nova era de ouro de sucesso americano para os cidadãos de todas as raças, religiões, cores e credos. Vai ser uma época de ouro”. [3]E no dia 19, em seu discurso em Latrobe, Pensilvânia, insistiu, enfatizando o alcance secular das mudanças que anunciava: “Esta será a nova era de ouro da América. Daqui a 100 anos, a eleição presidencial de 2024 será vista como a maior vitória dos Estados Unidos”.[4]
Imediatamente após vencer as eleições, no discurso em que aceitou sua eleição como 47º presidente dos Estados Unidos, pronunciado em 6 de novembro, Trump afirmou mais uma vez: “Esta será realmente a era de ouro da América. É isso que precisamos ter”. Ao seu lado, o novo vice-presidente JD Vance, confirmou: “Depois do maior retorno político da história americana, vamos liderar o maior retorno econômico da história americana, sob a liderança de Donald Trump”.[5]
A ideia de uma nova era de ouro também marcou o discurso com o qual o presidente inaugurou seu mandato, no dia 20 de janeiro de 2025. Imediatamente após as saudações de praxe, o novo presidente proclamou: “a era de ouro da América começa agora mesmo”.[6] Segundo Donald Trump, a partir daquele momento, os Estados Unidos retomariam seu caminho de prosperidade e voltariam a ser respeitados mundialmente. Ele afirmou que o país recuperaria sua soberania, restabeleceria a segurança e corrigiria os desequilíbrios da justiça. Para Trump, a prioridade seria transformar os EUA em uma nação próspera, orgulhosa e livre, destacando que a “América em breve será maior, mais forte e muito mais excepcional do que nunca”.
De acordo com o presidente estadunidense, a nova era deixaria para trás uma época na qual uma elite radical e corrupta havia explorado o poder e a riqueza dos cidadãos, enquanto os pilares da sociedade americana estavam fragilizados e à beira do colapso. Sua narrativa ríspida acusava seus antecessores de terem traído os Estados Unidos, sem, entretanto, nomeá-los. Sua eleição representaria, assim, um mandato claro para reverter completamente a perfídia acumulada ao longo do tempo, devolvendo ao povo sua confiança, sua riqueza, sua democracia e sua liberdade. Para Trump, “a partir deste momento, o declínio da América está encerrado”.
Essa nova era e o fim da decadência foi anunciada no discurso inaugural como o início de uma revolução, uma palavra que raramente é utilizada na política norte-americana para falar do presente. Segundo o chefe de Estado, suas ações representariam o início de uma “restauração completa da América e a revolução do senso comum”. A ideia foi retomada discurso que pronunciou no World Economic Forum, três dias depois: “O que o mundo testemunhou nas últimas 72 horas é nada menos que uma revolução do senso comum. Nosso país logo estará mais forte, mais rico e mais unido do que nunca, e o planeta inteiro estará mais pacífico e próspero como resultado desse incrível momento e do que estamos fazendo e faremos”.[7]
O senso comum que protagonizaria essa revolução é informado pelos valores tradicionais preponderantes na sociedade norte-americana. Tais valores, acalentados pelas pessoas comuns, teriam sido abandonados pelas elites. A alegada corrupção das elites políticas e culturais não é apenas uma questão prática ou administrativa, mas é interpretada, antes de tudo, como uma decadência moral profunda. Donald Trump, no entanto, não pode se posicionar como um membro do povo. Sua postura marcada pela convicção inabalável de que foi ungido por Deus para desempenhar um papel único na história o distanciam da ideia de pertencimento a uma coletividade anônima. Ainda assim, ele se posiciona como alguém alinhado as tradições e ao modo de vida da sociedade norte-americana e determinado a proteger, com firmeza, aqueles que os abraçam.
É justamente esse fundamento moral, embutido na narrativa de uma revolução do senso comum, que lhe permite se colocar como o líder legítimo desse movimento. Ele não apenas reivindica compreensão e afinidade com as pessoas comuns, mas também se coloca como o defensor de uma ordem que, segundo ele, deve ser restaurada.
Os mitos de declínio e renascimento nacional ou civilizacional, como aqueles destacados no recente discurso político de Donald Trump, são elementos característicos da ideologia fascista.[8] O fascismo, em suas diversas manifestações, se alimenta da ideia de que uma crise profunda coloca em risco não apenas o futuro, mas a própria existência da comunidade nacional. Essa crise é apresentada como uma ameaça total, envolvendo a corrupção moral e a degradação cultural, criando uma narrativa de urgência que demanda uma resposta radical. A crise, entretanto, não é o produto natural da estrutura política e social. Ela é o resultado de uma traição. Judeus, comunistas e até mesmo liberais, seriam parte de uma conspiração cujo objetivo seria espoliar e arruinar a nação.
Nos diferentes contextos históricos em que o fascismo emergiu, ele se posicionou como a única força política capaz de resgatar a nação dessa suposta ruína iminente. Essa ideologia constrói sua legitimidade não apenas por meio do apelo à ação imediata, mas também pela promessa de um renascimento glorioso, no qual a ordem, os valores tradicionais e a unidade nacional seriam restauradas. Da mesma forma, Trump utiliza essa retórica ao desenhar um quadro de declínio e caos, que ele afirma ser capaz de reverter, colocando-se como o líder indispensável para conduzir a nação ao ressurgimento de sua grandeza.
Apesar da retórica, o presidente não pode ser considerado um fascista. Sua ideologia, embora autoritária, não nega o modelo político desenhado pelos founding fathers. Destaca, entretanto, os aspectos mais antidemocráticos deste modelo, como a defesa de um Executivo forte e a desconfiança em relação à participação popular. Seu pensamento encontra suas raízes em tradições políticas norte-americanas, marcadas pela escravidão, pela supremacia racial e pela exclusão social, e não nos movimentos inspirados por Mussolini ou Hitler.[9]
O presidente dos Estados Unidos tem recebido, entretanto, o apoio de grupos neofascistas e neonazistas. Indivíduos como o neonazi Andrew Anglin, fundador de The Daily Stormer, Don Black, o editor do site Stormfront, e Rocky Suhayda, líder do American Nazi Party, manifestaram anteriormente seu apoio a Trump[10] Com frequência, estes grupos veem o presidente como alguém capaz de criar “oportunidades” para seus movimentos, ou como um indivíduo que partilha os mesmos inimigos, notadamente os imigrantes. É um “vizinho”, mas não um “camarada”.
Mais importante e mais frequente é o alinhamento de grupos e milícias supremacistas. Trata-se de organizações nacionalistas cristãs que reivindicam as tradições políticas e culturais norte-americanas. Membros do grupo supremacista Proud Boys frequentemente participam de manifestações em apoio a Trump. Essa organização desempenhou, também, um papel crucial no planejamento e execução do ataque ao Capitólio em janeiro de 2021. Como retribuição, Trump concedeu em seu primeiro dia de governo, a anistia a Enrique Tarrio, um dos líderes envolvidos na ação.[11]
O presidente estadunidense aproxima-se do que alguns autores têm denominado pós-fascismo, um fenômeno que representa um amálgama instável entre ultranacionalismo e liberalismo, marcado por contradições internas profundas.[12] Embora compartilhe com o fascismo do entre-guerras alguns traços, como o culto à personalidade, a exaltação nacionalista e a demonização de inimigos internos e externos, o pós- fascismo se distingue por sua ausência de um projeto revolucionário explícito e sua adesão, pelo menos retórica, às normas da democracia liberal.
O pós-fascismo se caracteriza por sua fluidez ideológica, adaptando-se às condições contemporâneas, o que o torna uma ideologia volátil e potencialmente perigosa, capaz de evoluir em direções mais autoritárias ou mesmo flertar com os elementos mais radicais do fascismo histórico. Os discursos sobre uma “nova era de ouro” ou uma “revolução do senso comum”, comuns na nova retórica de Trump, podem ser interpretados como sinais dessa evolução. Tais narrativas evocam um apelo messiânico e restaurador, prometendo um retorno a um passado idealizado, enquanto rejeitam explicitamente os valores do pluralismo e da diversidade que sustentariam a democracia moderna.
A ideia de uma “nova era de ouro” expõe uma interação complexa entre um conservadorismo autoritário e correntes ideológicas fascistas. Apesar de Trump ainda manter algum vínculo, embora ambíguo, com as normas democráticas, sua retórica messiânica e o apelo ao renascimento nacional levantam questionamentos sobre os rumos da política nos Estados Unidos. A evocação do senso comum e a defesa de valores tradicionais servem tanto para mobilizar grupos ultranacionalistas quanto para legitimar narrativas excludentes. Entender como essas dinâmicas se desenvolverão, seja no cenário doméstico ou em suas repercussões globais, é fundamental para enfrentar os desafios e os riscos associados a um ambiente político radicalizado.
Alvaro Bianchi é professor titular do Departamento de Ciência Política da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
[1] TRUMP, D. Remarks at a Campaign Rally in Atlanta, Georgia. The American Presidency Project, 2024b. Disponível em: https://www.presidency.ucsb.edu/documents/remarks-campaign-rally- atlanta-georgia. Acesso em: 25 jan. 2025.
[2] TRUMP, D. Remarks at a Campaign Rally in Latrobe, Pennsylvania. The American Presidency Project, 2024d. Disponível em: https://www.presidency.ucsb.edu/documents/remarks-campaign- rally-latrobe-pennsylvania. Acesso em: 25 jan. 2025.
[3] TRUMP, D. Remarks at a Campaign Rally in Butler, Pennsylvania. The American Presidency Project, 2024c. Disponível em: https://www.presidency.ucsb.edu/documents/remarks-campaign- rally-butler-pennsylvania. Acesso em: 25 jan. 2025.
[4] JACKSON, D. Donald Trump likes to throw shade at other presidents. Here’s how he does it. USA Today, 3 nov. 2024. Disponível em: https://www.usatoday.com/story/news/politics/elections/2024/11/03/donald-trump-shades- former-presidents/75806193007/
[5] TRUMP, D. Remarks Accepting Election as the 47th President of the United States in Palm Beach, Florida. The American Presidency Project, 2024a. Disponível em: https://www.presidency.ucsb.edu/documents/remarks-accepting-election-the-47th-president- the-united-states-palm-beach-florida. Acesso em: 25 jan. 2025.
[6] TRUMP, D. Inaugural Address. The American Presidency Project, 2025a. Disponível em: https://www.presidency.ucsb.edu/documents/inaugural-address-54. Acesso em: 25 jan. 2025.
[7] TRUMP, D. Remarks to the World Economic Forum. The American Presidency Project, 2025b. Disponível em: https://www.presidency.ucsb.edu/documents/remarks-the-world-economic- forum-0. Acesso em: 25 jan. 2025.
[8] BIANCHI, A. Fascismos: ideologia e história. Novos estudos CEBRAP, v. 43, n. 1, p. 45–63, 2024.
[9] Ver, p. ex. RILEY, D. What is Trump? New Left Review, n. 114, p. 5–31, 2018; ROSENFELD, G. D. An American Führer? Nazi Analogies and the Struggle to Explain Donald Trump. Central European History, v. 52, n. 4, p. 554–587, 2019.
[10] MIRRLEES, T. Trump and the Alt Right: The Mainstreaming of White Nationalism. Em: PERRY, B.; GRUENEWALD, J.; SCRIVENS, R. (org.). Right-Wing Extremism in Canada and the United States. Cham: Springer International Publishing, 2022. p. 67–96.
[11] GPAHE. Proud Boys Celebrate Pardons and Plan to Help Trump’s Agenda. Em: Global Project Against Hate and Extremism. 21 jan. 2025. Disponível em: https://globalextremism.org/post/proud-boys-celebrate-pardons/. Acesso em: 27 jan. 2025.
[12] TRAVERSO, E. As novas faces do fascismo: populismo e a extrema-direita. Belo Horizonte: Âyné, 2021.