Dos Vedas ao Kama Sutra
Nascidas das louvações a Deus, em idioma sagrado, as literaturas indianas compõem uma tradição marcada pela diversidade de gêneros; por temáticas que vão do casto ao heróico e ao profano; pelo desejo, desde Buda, de fazer arte nas múltiplas línguas faladas pelo povoTirthankar Chanda
As literaturas indianas são religiosas em sua origem. É graças aos poetas religiosos panteístas, adoradores das divindades da aurora, das montanhas e dos rios, que temos os primeiros textos literários – os Vedas. Seus autores viveram há 3.500 anos, no noroeste do subcontinente indiano. Esse era habitado por tribos indo-européias que conquistaram toda a bacia do rio Indo. Os Vedas, arquivos da balbuciante civilização hindu e monumento literário, dividem-se em quatro coletâneas de hinos e cânticos (Rig Veda, Yajur Veda, Sama Veda e Atharva Veda) dirigidos às suas divindades tutelares. Literalmente, Veda significa “conhecimento”. Um conhecimento de ordem essencialmente mítica e espiritual, devido à crença, entre os hindus, de que as compilações védicas não são inspiração humana, mas nascidas da própria boca do demiurgo Brahma. Textos revelados que não poderiam se anunciar a não ser em sânscrito, a língua dos deuses.
Durante o período védico, que dura quase mil anos, o sânscrito torna-se a língua franca, codificada desde o século 6 a.C. pelo gramático Panini. No entanto, mesmo nessa época, a Índia já era multilíngue e a escolha desta ou daquela língua pelos poetas e bardos tinha implicações sociais e religiosas importantes. O Buda, por exemplo, aparece no século 6 a.C. Seu ensinamento era dissonante com o elitismo brâmane. Fazia suas pregações em dialetos populares como o pali ou o prakrit. Tesouro da literatura narrativa mundial, os Jataka, ou as narrativas das vidas anteriores de Buda, (sendo que algumas foram contadas pelo Mestre em pessoa), estão em pali, língua de contestação da rigidez do hinduísmo e do sistema de castas.
Das louvações a relatos homéricos e um real maravilhoso
Apesar destas contestações, o prestígio do sânscrito como língua da cultura não pára de crescer durante o primeiro milênio de nossa era. É a época em que são produzidas as grandes criações da literatura pós-védica. As epopéias abrem o baile. Surgidos na virada da era cristã, o Ramayana e o Mahabharata [1] relatam guerra e paz no crepúsculo dos tempos, assim como as narrativas homéricas. Partindo de eventos históricos ocorridos nos primeiros séculos do estabelecimento das tribos indo-européias no subcontinente indiano, os dois poemas épicos misturam mito e verdade histórica, real e maravilhoso. Assim, colocam em cena o confronto universal do Bem e do Mal.
O Ramayana [2], que significa “a marcha de Rama”, é atribuído ao poeta lendário Valmiki. Conta como um príncipe do norte da Índia consegue superar os obstáculos geográficos e militares para libertar sua esposa, que o demônio Ravana raptou e manteve prisioneira na sua ilha fortificada, ao largo da costa meridional. Essa história foi verdadeiramente inspirada em cantos heróicos que celebravam as campanhas de colonização ariana do sul da Índia. Composta em um sânscrito bastante puro e redigida na forma, ainda nascente, de shlokas (estrofes de quatro versos octossílabos), o Ramayana é marco de uma mudança. Anuncia a alta poesia da época clássica, que se seguirá por meio da preocupação com a forma e o lirismo.
O Mahabharata também diz respeito a uma história de guerra. Mas uma guerra fraticida que opõe dois clãs de uma mesma tribo ariana, os Bhartas. É um conflito apocalíptico, lançado pelos cinco irmãos Pandavas aos seus primos Kauravas, com a finalidade de recuperar seu reino. É considerado o maior livro do mundo: contém 400 mil versículos, divididos em dezoito seções. No núcleo da guerra multiplicam-se milhares de episódios em vários gêneros, narrativas independentes, poemas dentro de poemas. Essa narrativa repleta de desejos inspiraria Henri Michaux à seguinte reflexão: “Você contaria essa história a um galho velho, e renasceriam folhas e raízes nele!”.
O ambiente requintado dos impérios gera o Kamasutra
A partir do século 4 a.C., a Índia entra na era dos grandes impérios, que durará mais de mil anos. As dinastias sucessivas (Maurya, Kushana, Gupta) centralizam o país e criam condições políticas e sociais favoráveis ao florescimento de uma civilização brilhante, sofisticada, urbana. Essa é geralmente comparada à de Atenas, na época de Péricles, ou à de Florença sob os Médicis. Na corte desses impérios e sua vassalagem, elabora-se uma literatura profana. Desenha-se nos livros sagrados e fundamentais da civilização brâmane (os Vedas), as epopéias, ou os Purana. Conta-se o amor, as festas, as alegrias e as vicissitudes da vida das camadas abastadas da sociedade.
O Natyashashtra [3] (Tratado da arte do espetáculo), atribuído a um certo Bharata, é a mais antiga obra de retórica (século 1 a.C.). Elabora as concepções fundamentais que regem a arte poética e, sobretudo, a célebre teoria das nove rasas ou sentimentos (ternura, heroísmo, páthos, fúria, medo, desgosto, cômico, maravilhoso e paz) que a poesia supostamente causa nos espíritos. O poeta é julgado mais pelas façanhas verbais do que pela originalidade de seus temas. Esses são retirados das mitologias tradicionais e já conhecidos pelos leitores.
A figura literária marcante desse período é certamente Kalidasa, considerado, frequentemente, o Shakespeare da Índia antiga. Dramaturgo e poeta, Kalidasa é o autor da célebre Sakuntala [4]. Esse drama em sete atos, que conta o triunfo da inocência, suscita a admiração de Goethe. Ele vê, no drama, as origens do pensamento romântico, do qual será um dos principais nomes na Europa. A tradição atribui a Kalidasa três peças de teatro e numerosos poemas. O mais original é sem dúvida Meghaduta [5], narrativa em versos das dores do exílio de um yaksha (cortesão da corte do deus da prosperidade), que pede às nuvens que carreguem uma mensagem à sua bem-amada.
Outro desenvolvimento da literatura narrativa são as coletâneas de contos e fábulas. A mais antiga e conhecida é a Pancatantra [6] (século 5). Há duzentas versões em mais de cinqüenta línguas, no mundo. No século 11, o erudito Somadeva, da Caxemira, deu aos contos sua forma definitiva. Reuniu-os em uma obra magistral: (Kathasaritsagar ou “Oceano dos rios de contos”), que contém cerca de 100 mil versos e 350 contos. O célebre Kamasutra, que significa literalmente “Aforismos sobre o desejo”, também foi escrito ao longo deste período clássico. Foi feito para responder à curiosidade dos jovens aristocratas, e sem dúvida para melhor reger a vida sentimental e erótica da época. Interessante é que seu autor, Vatsyayana, que teria vivido entre os séculos 4 e 6, era um asceta.
O abandono do sânscrito e a revolução da poesia
Paralelamente às epopéias e à poesia clássica em sânscrito, desenvolveu-se no sul, no ínicio da era cristã, uma literatura em língua tâmile marcada por altos valores morais e humanistas. Ela está na origem da sensibilidade devocional, conhecida pelo nome de bhakti, que representa uma doutrina religiosa fundada pelo laço de amor entre o fiel e sua divindade. Com centenas de lugares de prática da religião hindu bramânica, em cerimônias complicadas, a bhakti tornou-se bastante popular a partir do século 6, no Tamil Nadu, no sul da Índia. Foi fonte de inspiração de um vasto corpus de poesia à glória de Shiva e Vishnou. Esse movimento, que também envolve a Índia ocidental e setentrional, encontra, desde o século 12, seus principais porta-vozes em poetas como Jayadev, Vidyapati, Surdas, Kabir, Mirabaï, Toukaram e Namdev.
Geralmente vindos de categorias sociais marginalizadas, eles irão revolucionar profundamente a poesia. Introduzirão temas como desejo, amor e a fusão mística com Deus (na ocorrência de Krishna). Têm expressão, sobretudo, em línguas locais como o braj, o hindi, o marathi, com o fim de alcançar audiência popular. Desde o início do segundo milênio, a Índia vive a emergência das línguas vernaculares. Entre os séculos 12 e 13, graças ao talento e às audácias lingüísticas
Tirthankar Chanda é professor de literaturas pós-coloniais da Universidade de Paris – VIII e do Instituto Nacional de Línguas e Civilizações Orientais, de Paris, e jornalista da Radio France Internationale e da revista Jeune Afrique.