Duas gerações de atentados suicidas
Concebido como método de guerra contra o ocupante israelense no Líbano, o atentado suicida surgiu em 1982, criado pelo Hezbollah xiita libanês. De lá para abril de 2000, de 16 passou-se a 39 atentados por ano, espalhados por mais de 34 países ou zonas de crisePierre Conesa
«Nós só temos esta opção. Não temos bombas, tanques, mísseis, aviões, helicópteros» declarava o xeque Abdallah Sahmi, dirigente do Jihad Islâmico na faixa de Gaza para explicar os atentados suicidas ao jornal ABC no dia 21 de agosto de 2001. Mas esta declaração de guerra assimétrica explica o crescimento alarmante e quase exponencial dos atentados suicidas ? Não é certo. O camicase tornou-se, em alguns anos, a bomba inteligente e barata do terrorismo de nova geração, produto de uma ideologia e de uma técnica de preparação facilmente transponível e exportável.
O atentado suicida constitui um ato operacional violento indiferente às vítimas civis, cujo sucesso é amplamente condicionado pela morte do ou dos terroristas. Para tentar compreender a novidade do fenômeno é preciso excluir a referência constante aos camicases japoneses que se consideravam combatentes que visavam objetivos militares. A originalidade do fenômeno atual deve-se antes à exarcebação do comportamento de sacrifíco em contextos cada vez mais mitificados.
Hoje, mais de 34 países ou zonas de crise1 conheceram ataques suicidas. Quarenta e dois foram visados por atentados contra seus interesses no exterior2. De um ritmo médio de 16 atentados por ano entre 1982, data do aparecimento desse tipo de ação, e abril de 2000, passou-se a 39 em ritmo anual.
Método de guerra
O atentado suicida foi originalmente concebido como método de guerra contra o ocupante israelense e depois contra a ONU no Líbano em 19823 , no Sri Lanka em 1987, na Palestina em 1994 depois da matança na mesquita de Hebron, na Turquia em 1995, na Cachemira em julho de 1999, na Chechênia em 2000, para estender-se à Rússia em 2002 e ao Iraque em 2003. Torna-se método terrorista « indireto » contra os Estados Unidos no Quênia e Tanzânia em 2001, contra a França no Paquistão, contra a Austrália na Indonésia em 2002 e no Magreb em abril e maio de 2002. Constitui um método de guerra civil ou inter-religiosa na Arábia
Saudita ou no Paquistão há vários anos e no Iraque desde 2003. Pode até ser utilizado para executar « contratos » como o assassinato do comandante Massud. Também se mundializou: o atentado do World Trade Center associou camicases de seis nacionalidades (mais de quinze contando a logística) e as 3 052 vítimas são de umas cem nacionalidades diferentes.
Os Tigres Tâmeis, hinduístas, aperfeiçoaram a técnica copiada do Hezbollah xiita libanês. A eles se creditam perto de duzentos atentados suicidas, ou seja, bem mais do que os palestinos
Os alvos visados tornaram-se de uma heterogeneidade incrível: os escritórios da ONU, turistas nos hotéis (Mombaça no Quênia) ou boates (Bali), sinagogas (Buenos Aires ou Djerba), um compound4 povoado de médio-orientais (na Arábia Saudita), um banco (em Istambul), um navio de guerra (USS Cole), um petroleiro ( Limbourg)… E principalmente um inacreditável número de vítimas « colaterais ».
O lugar geográfico dos atentados se estendeu do território do inimigo militar (Israel ou Sri Lanka) ao de um regime execrado (Estados Unidos) ou a países muçulmanos (Tunísia, Marrocos) e mesmo islamistas (como o governo turco atual ou a Arábia Saudita).
Procedimento mimético e religioso
O fenômeno é largamente de origem muçulmana, mas não exclusivamente. Desde 9 de julho de 1987, com um atentado que matou quarenta soldados do Sri Lanka, os Tigres Tâmeis5, hinduístas, aperfeiçoaram a técnica copiada do Hezbollah xiita libanês. A eles se creditam perto de duzentos atentados suicidas, ou seja, bem mais do que os palestinos. O Partido dos Trabalhadores Curdos (PKK), embora leigo e leninista, recorreu a isso em períodos de enfraquecimento militar para remobilizar suas tropas. O procedimento é mimético, tanto quanto religioso. Passaram-se mais de dez anos entre os ataques suicidas do Hezbollah libanês (1982) e os primeiros camicases palestinos (1994), depois de uma volta pelo Sri Lanka.
Quanto à personalidade do candidato ao suicídio, não é sempre a do jovem exaltado, influenciável, até drogado e saído de um meio desfavorecido. Os autores dos ataques do 11 de setembro de 2001 eram formados, provenientes de classes médias sem história nem passado militante. A motivação pessoal pode explicar alguns casos como o de Hanadi Tayssir Djaradat, a jovem advogada palestina que quis vingar seu irmão e seu noivo, em Jenine, em outubro de 2003, mas não está presente no perfil de camicases vindos de madrasas6 paquistanesas para cometer atentados suicidas na Cachemira7. Menos ainda nos islamistas indonésios que optaram por matar turistas australianos em Bali.
Bomba terrorista “eficiente”
O atentado suicida provoca quatro vezes mais vítimas que os ataques terroristas clássicos e permite atacar diretamente os locais mais sensíveis do território do adversário
A multiplicação deste tipo de atentados tem de início sua explicação no fracasso de outras formas terroristas. Entre 2000 e 2002, os ataques suicidas representaram 1% dos atentados palestinos, mas fizeram 44% das vítimas. Israel teve cinqüenta e nove em 2002, quase tantos quanto durante os oito anos precedentes (sessenta e dois). Apesar de representar a forma mais « eficiente » de bomba terrorista, apta a escolher o melhor momento e o melhor lugar, seu valor militar nem sempre é claro.
O atentado suicida constitui antes uma facilidade, porque não necessita de plano de evasão, e em caso de fracasso, o terrorista aceita às vezes suicidar-se como fazem os tâmeis equipados com uma pílula de cianeto. Provoca quatro vezes mais vítimas que os ataques terroristas clássicos, segundo um estudo da Rand8. Por fim, permite atacar diretamente os locais mais sensíveis do território do adversário: Nova Iorque, Washington, Tel-aviv, Moscou e personalidades inacessíveis como primeiros-ministros e presidentes.
O custo de organização é baixo, cerca de 150 dólares, segundo os cálculos israelenses. A relação custo de organização/danos dos ataques do 11 de setembro de 2001 se revela impressionante, pois para uma despesa de menos de um milhão de dólares, as perdas econômicas totais para os Estados Unidos são estimadas em 40 bilhões de dólares.
Apavorante banalidade
Passou-se em alguns anos, do ato executado por um só terrorista, aos atentados de grupo : onze no Marrocos, dezenove nos ataques do 11 de setembro e quatorze camicases tâmeis para atacar a base aérea militar de Colombo em 24 de julho de 2001.
Progressivamente, tornou-se uma técnica terrorista de uma apavorante banalidade. Pode-se distinguir dois tipos: os ligados a crises de longa duração e os ligados a um inimigo auto proclamado e globalizado (o ocidente, o judeu…)
O primeiro se difundiu em zonas de crise, em resposta a contextos políticos e culturais similares, fruto de um passado doloroso para várias gerações como na Palestina, no Sri Lanka, na Cachemira e na Chechênia: os chechenos deportados por Stalin por colaboração, os palestinos vítimas do “desastre9” ou os tâmeis em parte deportados pelos britânicos para as plantações, apátridas na independência, naturalizados cingaleses e depois parcialmente « renacionalizados » indianos. O camicase é um filho da segunda ou terceira geração depois do drama original, isto é, aquelas que não compreendem porque nunca aparece uma esperança.
A construção do mártir
Tornada uma técnica terrorista de uma apavorante banalidade, pode-se distinguir dois tipos: os ligados a crises de longa duração e os ligados a um inimigo auto proclamado e globalizado
A cultura da violência e da morte é muito cheia de potencialidades. A construção da figura do mártir que suplanta progressivamente a do combatente é essencial para preparar o terreno. O clima mortífero mantido pela violência das tropas ocupantes e pela glorificação dos resistentes prepara para o sacrifício supremo supostamente preferível à vida cá embaixo. O estudo feito por Eyad Sarraj, psiquiatra palestino fundador do Gaza Community Mental Health Programme(sic) 10 é aterrador. Um quarto dos jovens de Gaza aspira morrer como mártir, alguns recusam-se a ir à escola, temendo encontrar seus pais presos ou mortos e sua casa destruída. “Na primeira Intifada, o perigo era limitado aos lugares onde os soldados e os atiradores de pedras se enfrentavam, explica11. Hoje a morte vem do céu. Qualquer um pode ser atingido a qualquer momento. Isso cria um estado crônico de pânico”. Quem viu seu pai ou seu irmão humilhados, prefere, no seu jogo, encarnar o soldado israelense.
“Racionalidade delirante”, diz Jacques Semelin a respeito dos processos de genocídio12, mas ainda assim, racionalidade. O suicídio por vingança parece altruísta, segundo a classificação de Émile Durkheim. O camicase entrega sua vida por uma coletividade identificada, politicamente estruturada segundo uma ordem etno-nacionalista que reivindica um território. O recrutamento é facilitado pelo sentimento de traição das jovens elites diplomadas que estão « conseguindo » deixar o território de violência e sofrimento e que brutalmente voltam para sacrificar-se13. O objetivo final da luta pertence ao campo político, mesmo se encerra uma justificativa religiosa. A relação com os pais e a coletividade permanece e geralmente uma festa da mesma natureza de um casamento vem celebrar o sacrifício.
Mesmo se o camicase se isola na fase de preparação do atentado, ele se dirige à sua família, o que não foi o caso dos autores do 11 de setembro. “Quero vingar o sangue dos palestinos, particularmente o sangue das mulheres, dos velhos e das crianças. E mais particularmente o do bebê Himan Hejjo cuja morte me chocou até o fundo do coração… dedico meu ato de humildade aos fiéis do Islã que admiram os mártires e trabalham pela causa deles…”, explicou Mahmoud Ahmed Marmash (atentado suicida de Netanya de maio de 2001).
Impasse total
O sentimento de impasse total nasce depois de várias fases de negociação sem conclusão ou consideradas enganosas. Os primeiros atentados do Hamas aprecem em Israel depois do processo de Oslo que (o Hamas) queria fazer capotar, depois da retomada da colonização israelense nas terras que deveriam normalmente caber aos palestinos e tem como fator de deflagração o massacre na mesquita de Hebron, em fevereiro de 1994, de trinta fiéis, pelo colono Baruch Goldstein. A crise das representações políticas tradicionais, sejam clânicas (Chechênia) ou combatentes (a Organização de Libertação da Palestina, OLP ou a Frente de Libertação da Cachemira, JKLF14) é freqüente. Mais amplamente, a incapacidade das elites locais para mudar a ordem do mundo conspurcado aqui em baixo leva a escolher uma solução purificada pelo martírio. A rivalidade entre partidos ou grupos tradicionais (como entre palestinos ou tâmeis) desacredita ainda mais os partidos tradicionais. Assim, o LTTE eliminou fisicamente os membros da Organização de Libertação do Eelam Tamil (TELO) em 1985, depois os da Frente de Libertação Revolucionária Popular do Eelam (EPLRF) em 1986-87, duas organizações rivais.
O clima mortífero mantido pela violência das tropas ocupantes e pela glorificação dos resistentes prepara para o sacrifício supremo supostamente preferível à vida cá embaixo
A utilização do atentado suicida testemunha também uma vida sem saída. A legitimidade religiosa ou sacrificadora é então vivida como superior à legitimidade patriarcal. « O Corão contra o Pai », o wahhabismo contra as confrarias sufis, faz notar a especialista Penélope Larzillière. A religião aí é um fator favorável, mas um clima de sacrifício de morte pode bastar.
Para lavar a desonra
As mulheres ocupam um lugar crescente entre os palestinos, no PPS sírio que fez cinco mulheres participarem de doze ataques suicidas ou no LTTE, que formou sua brigada de mulheres voluntárias, as Tigres Negras. Um estupro por soldados da ocupação deflagra às vezes a decisão da jovem, duplamente desonrada pelo ocupante e em relação à sua sociedade. A motivação pessoal parece uma estranha mistura de resistência à ocupação e mesmo de reação contra o machismo da sociedade local15. Wafa Idriss, primeira mulher camicase palestina, repudiada por seu marido por causa da esterilidade e obrigada a voltar para sua família, desonrada, para lavar a infâmia não encontrou outro meio que o sacrifício supremo capaz de subverter a ordem social. Caso não isolado, como mostram os exemplos de Ahlam Araf Tamimi, autora de um atentado em 9 de agosto de 2001 e da tamil Dhanui que assassinou Rajiv Gandhi. Todas duas haviam “pecado” e carregavam bebês ilegítimos. “Era um ato contra a ocupação mas é também para mim o meio de provar a minha família que eu valia tanto quanto meus irmãos que tinham o direito de ir à Universidade, enquanto que para mim isso era proibido”, declarou Fatma Al Said, presa depois do assassinato de dois soldados israelenses16.
A vontade de não atingir vítimas inocentes pelo menos dá lugar ao debate. O presidente checheno Aslan Masrhadov condenou os atentados contra vítimas civis como o Grande Mufti da Arábia Saudita, Xeque Abd el Aziz al-Cheirh, ou o Mufti Mohammed Sayyid Al Tantawi, xeque da Universidade Al Azhar, no Egito.
O fracasso da punição coletiva
Globalmente estes atentados entram, apesar da vestimenta religiosa, em uma lógica fundamentalmente política: só um processo sério de negociação pode pará-los. A violência contra-terrorista baseada na punição coletiva se revela um fracasso. « Nós vamos levar a guerra para a terra deles. Assim eles têm de fazer a guerra nas casas deles e não nas nossas. Nós combatemos nas terras deles e levamos vantagem », assegura um oficial do Tshal17 . Mas depois da segunda Intifada, há três vezes mais vítimas palestinas que israelenses e a política de força de Ariel Sharon não protege Israel, pois atualmente há três vezes mais vítimas israelenses do que há vinte e cinco anos.
Um quarto dos jovens de Gaza aspira morrer como mártir, alguns recusam-se a ir à escola, temendo encontrar seus pais presos ou mortos e sua casa destruída
Estes métodos adubam a terra na qual floresce o candidato ao suicídio. É significativo que não se encontrem atentados suicidas na Argélia18. A relativa juventude do conflito, a despeito da violência da guerra civil desde 199119, não basta para explicar esta ausência.
Bem mais inquietante é a segunda categoria de atentados suicidas que tem sua consagração no ataque contra o World Trade Center. O inimigo tornou-se uma construção globalizante e imaginária, “reificada”: “Os judeus, os Cruzados e os hipócritas”, segundo os termos de Bin Laden, que junta assim no mesmo saco todos os alvos heteróclitos, sem qualquer preocupação com a religião das vítimas indiretas. Em 21 de maio, a rede Al Jazira apresenta uma gravação na qual o número dois da Al Qaeda, Ayman al-Zawahiri, chama os muçulmanos “a combater os americanos… “, exorta-os a “expulsar os ocidentais da península arábica, terra do Islã”, “os cruzados e os judeus só compreendem a língua do assassinato, do banho de sangue e das torres incendiando-se”. E acrescenta: “Ó muçulmanos, tomai vossa decisão e atacai as embaixadas dos Estados Unidos, da Grã-Bretanha, da Austrália e da Noruega (sic) 20, suas companhias e seus empregados”.
Efeito surpreendente da globalização
As redes às quais se imputa tradicionalmente estes atentados suicidas se compõem de três estratos de geração: o dos veteranos “afegãos” que lutaram contra os russos, como Bin Laden, Adnan Ersoz, o Turco, ou Abu Qatada de Londres; o mais jovem, dos “bosno-chechenos” como Azad Ekings, o turco dos atentados de Istambul, os irmãos David e Jérome Courtailler ou Menad Benchelalli, o jovem lionês que preparou um atentado químico contra a embaixada russa em Paris. Fascinada por estes antigos combatentes, se agrega uma terceira geração, que chega a vinte membros, como Richard Reid, o homem do sapato-bomba, que aceita o sacrifício por uma causa mítica: o triunfo do Islã, o restabelecimento do Califado e a união reencontrada dos muçulmanos. Estes jovens constituem « grupúsculos sem nome », segundo a expressão do especialista turco dos movimentos islamistas, Rusen Cakin, cimentados por um desvio sagrado apoiado em uma ideologia sectária e de sacrifício. O tempo é abolido por uma referência mitológica às idades de ouro do Islã (salafistas).
A incapacidade das elites locais para mudar a ordem do mundo conspurcado aqui em baixo leva a escolher uma solução purificada pelo martírio
A ideologia guerreira apresenta a vantagem de designar um inimigo reificado, ao qual se nega qualquer valor, concentração de todos os males e de todas as inquietudes (americanos, israelenses, franceses para os magrebinos…). Não há mais identidade nacional reivindicada, mas uma espécie de identidade planetária, a “umma”(comunidade dos crentes). Tanto quanto a mesquita, o cibercafé torna-se o verdadeiro local de encontro. Freqüentemente saídos de famílias multiculturais ou desenraizadas, às vezes titulares de várias nacionalidades, estes candidatos ao suicídio vivem uma geografia simbólica: a terra do Islã é onde eles estão e onde podem « legitimamente » fazer atentados.
É um dos efeitos surpreendentes da “Glocalização”: as solidariedades são locais e freqüentemente constituídas em um mesmo bairro ou da mesma cidade, como uma gangue, mas os agentes de ligação são planetários e colocam o máximo de fronteiras entre os grupos. O grupo islamita marroquino Assirat al Mustaqim (o caminho certo) do qual vinham oito dos quatorze terroristas é uma mistura de seita e bando de bairro do subúrbio popular Sidi Mumen, e o imã vinha da França.
Promessa de um “depois”
Os ocidentais convertidos ou os « reborn in Islam »21 podem tornar-se batedores dos futuros alvos (como Richard Reid em Israel) e fornecedores de passaportes falsos declarados perdidos e renovados à vontade como fez Zacarias Mussaui. As peregrinações ao Paquistão, à Cachemira ou ao Afganistão são freqüentes. O dinheiro é facilmente disponível. Segundo a Scotland Yard, a rede de 4 000 associações islâmicas e 50 bancos permite a cada ano redistribuir os três milhões de libras da Zakat22. Estas viagens freqüentes participam da desterritorialização do combate tanto quanto os contatos pela Internet.
O clima mortífero impregna a paisagem. O caso dos Mujaidins do Povo iranianos, dos quais alguns membros se imolaram pelo fogo durante a prisão preventiva de Maryam Radjavi pela Diretoria de Vigilância do Território (DST) francesa, constitui um exemplo interessante desses meios mitificados que predispõem os militantes ao sacrifício, mesmo por um motivo fútil. Podem-se encontrar fenômenos análogos com os suicídios coletivos, à vezes entre os prisioneiros do PKK e nas seitas apocalípticas que se dizem sitiadas por um mundo de incompreensão e agressão (suicídio na Guiana com David Koresh, por exemplo, ou o Culto Solar na França).
Saídos de famílias multiculturais ou desenraizadas, às vezes titulares de várias nacionalidades, estes candidatos ao suicídio vivem uma geografia simbólica : a terra do Islã é onde eles estão
O lugar central do Guru/líder/Emir é essencial para dar corpo à promessa de um « depois » melhor, seja na terra, graças ao triunfo da causa, ou no céu. É freqüentemente autoproclamado como Richard Robert, “o Imã de olhos azuis” dos atentados no Marrocos, originário da cidade francesa de Saint-Etienne. O culto da personalidade desenvolve a adesão quase religiosa ao chefe ao qual o sacrifício é devido. Seja Maryam Radjavi, Bin Laden, ou Abdulla Ocalan, o líder do PKK ou Riduan Isamudin, aliás Hambali, o líder operacional da Jamaa Islamyia indonésia. Vivendo sempre escondido, o chefe do LTTE, Valupilaye Prabhakaran23, concede um jantar e às vezes uma foto como recompensa final ao futuro sacrificado.
Indiferença a efeitos colaterais
Os alvos são universais (Nações Unidas, Cruz Vermelha, World Trade Center, bancos…), os métodos cada vez mais cegos, os efeitos colaterais indiferentes: a guerra contra outros muçulmanos não é proibida. A legitimação vem da invectiva lançada contra os “hipócritas”, sejam xiitas qualificados de “meio-judeus” ou maus crentes acusados de viver “à ocidental”, na depravação. O atentado contra o complexo residencial Al Mohaya de Riyad, em 8 de novembro de 2003, matou vítimas de dezenove nacionalidades, principalmente do oriente próximo e nenhum ocidental. O atentado contra a sinagoga de Istambul matou, entre dezenove vítimas, cinco judeus turcos. A Al Qaeda, cuja mão Washington vê em todo lugar, tornou-se um “inimigo mitológico”, nota, com razão, Richard Labevière.
Os atentados de Istambul são simbólicos da ruptura com o Islã político tradicional: o fundador do Hezbollah turco é um “afegão”, Adnan Ersoz. A segunda geração, a dos bosno-chechenos se reúne junto a Azad Ekings, que recrutou e formou jovens camicases de vinte anos, freqüentadores do cibercafé de Bingol. Os atentados suicidas visaram um país que recusou sua assistência aos americanos durante a guerra do Iraque e que é governado por um partido político que se alinha ao Islã político, o Partido da Justiça e do Desenvolvimento, cujo chefe, primeiro ministro, declarou: “Por meio de seus cidadãos judeus, é um ataque contra a Turquia!” Estes atentados marcam uma linha de fratura entre os islamitas políticos “constitucionalistas” que escolheram a via eleitoral, tal como foram conhecidos nos anos 1980 e os pequenos grupos dispersos nos quais se recrutam os camicases da nova geração.
Arma assimétrica
O conceito de « guerra global contra o terrorismo » é um erro político, pois assimila grupos e ações diferentes
É certo que os dois tipos de camicase não são independentes. Os primeiros servem de referências simbólicas aos segundos em uma mitologia do Islã martirizado. Mas procedem de tratamentos diferentes. O conceito de « guerra global contra o terrorismo » é um erro político, pois assimila grupos e ações diferentes. Um processo político de negociação é a única solução no caso de comportamentos suicidas etno-nacionalistas de fundamento religioso da Chechênia, da Palestina, etc. Assim, a retirada das tropas israelenses do Líbano fortaleceu o Hezbollah na decisão, tomada desde os últimos anos da ocupação, de parar com os atentados suicidas, que visavam aliás apenas alvos militares – e não civis.
A brutalidade das forças ocupantes indianas, russas, cingalesas ou israelenses faz em geral mais vítimas do que os atentados.Ela legitima o ato terrorista como arma assimétrica e nega o estatuto de vítimas inocentes às populações civis: seja porque estas também estão armadas (colonos israelenses) seja porque fingem ignorar os massacres cometidos (populações russas). Por fim, a brutalidade assegura o apoio da população e alimenta o viveiro no qual se recrutam os futuros camicases.
A segunda categoria de atentados camicases atingiu um grande número de países e continua a estender-se. E nenhum país europeu pode imaginar-se ao abrigo de tais atos.
(Trad.: Betty Almeida)
1 -Líbano, Israel-Palestina, Argentina, Chechênia-Ingúchia-Ossécia e Rússia, Cachemira, Índia, Sri Lanka, Tadjiquistão, Indonésia, Arábia Saudita, Síria, Marrocos, Afeganistão, Estados Unidos, Turquia, Iraque no sul xiita, no triângulo sunita e no Curdistão (iraquiano), Iêmen, Paquistão, Filipinas, Tunísia, Egito, Quênia, Tanzânia, Coveite, Croácia, Espanha, Usbequistão e dois projetos visando Cingapura e a Malásia.
2 – Além dos países já citados, há a Grã-Bretanha, a Jordânia, a Espanha, a França, a Alemanha, a Itália, a Austrália e a Suíça (via Cruz Vermelha em Bagdá).
3 – O primeiro atentado suicida em 1981 visa a embaixada do Iraque em Beirute e é perpetrado por um grupo islamita Al Da?wa, atualmente membro do conselho transitório.
4 – Em inglês no original (N.T.).
5 – Tigres da Libertação do Eelam Tamil – LTTE
6 – Escolas tradicionais islâmicas (N.T.).
7 – Amélie Blom, “les kamikazes du Cachemire: “martyrs “d?une cause perdue”, Critique internationale, N° 20, julho de 2003.
8 – An alternative strategy for the war on terrorism,11 de dezembro de 2002.
9 – O ano de 1948 foi marcado pelo êxodo de 750.000 a 850 000 palestinos. A historiografia palestina chama esta diáspora de “al Naqba” , o desastre.
10 – Ler Eyad Sarraj, “Israel-Palestine, la déchirure des enfants au front”, Le Monde diplomatique, novembro de 2000.
11 – Palavras repetidas por ocasião da 6a Bienal dos Cinemas Árabes, no Instituto do Mundo Árabe, Paris, 2002.
12 – “Les rationalités de la violence extrême”, Critique internationale, N°6, julho de 2000, pp 143-158.
13 – Cf sobre a Cachemira, Amélie Blom, op. cit. ; sobre o mártir palestino, Penelope Larzillière in Diechkoff e Leveau, Israéliens et palestiniens; la guerre en partage, Balland, Paris 2003, p. 105.
14 – Amélie Blom, “Les kamikazes du Cachemire, ?martyrs? d?une cause perdue”, Critique internationale, op. cit.
15 – Ler Barbara Victor, Femmes kamikaze, Flammarion, Paris, 2003.
Pierre Conesa é antigo alto-funcionário da Otan. Autor, entre outros, de Mécaniques du chaos: bushisme, prolifération et terrorisme, editora L’aube, La Tour d’Aigues, 2007.