É hora de deixar a imaginação descansar
Se abandonarmos a imaginação, perceberemos que a pandemia do Covid-19 exige o envolvimento de uma diversidade de agentes onde cada um de nós é peça-chave nos esforços para debelar os efeitos do vírus
O cenário que vivemos da pandemia do Covid-19 aumenta a percepção que temos das pessoas ao nosso redor e, principalmente, daquelas que assumem algum protagonismo relevante e/ou público. Essa oportunidade é mais uma questão prática do que sensonrial. Simplesmente porque são nesses momentos que precisamos que cada um exerça o melhor que está ao seu alcance e de acordo com o que se espera pela profissão ou posição que se ocupa.
Nesse contexto, pode-se entender por que surgem tantas pessoas a chamar de heróis aqueles que somente tentam, e querem, fazer o melhor que podem. Ver profissionais como heróis é uma necessidade daqueles/as que estão perdidos/as ou, no mínimo, não sabem o que fazer neste momento. Primeiro porque o herói é uma pessoa que se sacrifica em nome de todos, não busca resultados ou glória, faz o diferencial em uma comunidade ou, simplesmente, de acordo com o dicionário Michaelis: É o Homem que se notabiliza por feitos guerreiros ou atos de grande coragem. Assim, portanto, o herói emerge de um contexto de guerra. E, essa, refere-se a qualquer combate ou luta, que pode ser travada com ou sem armas.
Em referência ao vírus Sars-Cov-2 não é difícil encontrar manchetes que se utilizam do termo guerra para caracterizar a luta contra o vírus. E porque vivemos em guerra, existe a linha de frente. Caracterizam a linha de frente como aquela onde a pessoa com o vírus é atendida pelo profissional de saúde. E é neste encontro que, no imaginário popular, surge o herói. Tenho amigos médicos e da área da saúde que, tenho plena certeza, não querem e não conseguem entender por que são vistos como detentores de atos de extrema valentia, como heróis. “Mas estou a fazer o meu trabalho!” diriam eles/as. E com tão grande afinco que orgulha-nos a todos/as!, diríamos nós. Não entendem porque, apesar de todo o volume de trabalho e risco que se colocam (ou são colocados), sabem que são os que possuem a formação e a diligência profissionais, o compromisso acadêmico, patronal e, portanto, sabem que são os capacitados para realizar o atendimento às pessoas. Em especial aos profissionais da medicina, eles têm a consciência que estão dependentedes de uma legião de outros/as profisisonais para a perfeita execução de seu ofício.
Além do trabalho que exercem com o seu par inseparável, o pessoal da enfermagem, os serviços médicos dependem, dentre outros, dos auxiliares de enfermagem, do pessoal da limpeza (talvez aqueles que mais se exigem nos correntes dias), dos profissionais da recepção, da parte administrativa, da segurança… de uma infindade de profissionais responsáveis por fazer com que o local de trabalho, os hospitais, estejam aptos para o acolhimento dos doentes. E como o exercício da medicina, para a situação do Covid-19, é realizado nas delimitações do hospital, ainda há os profissionais dos transportes (públicos e privados) responsáveis por conduzir as pessoas até lá e, ainda, das forças de segurança pública, para manter o ordenamento do tráfego automotivo. Assim, o chamamento de herói, que surge da linha de frente de uma guerra, seguramente, deve ser um tanto mais alargado que somente a pontuação realizada nos médicos e demais profissinoais da saúde.
Diante da complexa engrenagem inerente aos seviços médicos, sabemos que a conotação do herói não partiu dos profissinoais da medicina. Mas do pensamento popular da guerra, materializado em manchetes, vídeos e recursos digitais midiáticos. E, assim como a materialização do pensamento comum ocorre nesses veículos de comunicação, o espirro, a tosse, a febre, o cansaço e a respiração difícil do indivíduo materializam o vírus, que é invisível aos nossos olhos. Se tanto o imaginário da guerra depende da sua materialização em palavras, e o vírus, no indivíduo, o herói vive não somente na imaginação popular que se concretiza do profissional da saúde. É muita imaginação para um momento de pandemia.
Se abandonarmos a imaginação, perceberemos que a pandemia do Covid-19 exige o envolvimento de uma diversidade de agentes onde cada um de nós é peça-chave nos esforços para debelar os efeitos do vírus. Veremos que os profissionais da ciência, que enxergam o vírus por meio de seus instrumentos de trabalho, o da restauração, que zela por todos os procedimentos para a não proliferação do vírus, o da saúde que se esforça para extinguir os sintomas do agente infecciosos e tantos outros, somente querem exercer as suas funções da melhor forma possível e de maneira a retomar a rotina perdida. Perceberemos que não precisamos de heróis, mas de indivídulos conscientes de suas responsabilidades consigo mesmos e com os outros. E, principalmente, deixaremos de entregar aos “heróis” a responsabilidade de cuidarmos de nós mesmos e uns dos outros.
Rogério Lima Barbosa é mestre e doutor pela Universidade de Coimbra.