Ecologia ou barbárie
Com a morte de Murray Bookchin, em 2006, o Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK) prometeu fundar a primeira sociedade que estabeleceria um confederalismo democrático inspirado nas reflexões do teórico da ecologia social e do municipalismo libertário. Um reconhecimento tardio para esse militante norte-americano aBenjamin Fernandez
Em 6 de janeiro de 2014, os cantões do Rojava, no Curdistão sírio, federaram-se em comunidades autônomas. Eles adotaram um contrato social que estabelece democracia direta e gestão igualitária dos recursos com base em assembleias populares. Foi ao ler a obra política de Murray Bookchin e trocando ideias com ele em sua cela turca, onde cumpria pena de prisão perpétua, que o chefe histórico do movimento curdo, Abdullah Öcalan, imprimiu ao Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK) uma importante virada ideológica para superar o marxismo-leninismo dos primeiros tempos. O projeto internacionalista de “confederalismo democrático” adotado pelo PKK, em 2005, e depois por seu homólogo sírio, o Partido da União Democrática (PUD), visa reunir os povos do Oriente Médio numa confederação de comunas democrática, multicultural e ecológica.
Nascido em 1921 de pais judeus russos revolucionários emigrados para Nova York, Bookchin cresceu no Bronx, caldeirão das lutas trabalhistas norte-americanas. Engajado muito jovem nas fileiras comunistas, as quais abandonaria em 1936 durante a Guerra Civil Espanhola, ele militou ao mesmo tempo no seio do Congresso das Organizações Industriais (CIO) e do Congresso para a Igualdade Racial (CRE). De início operário da indústria automotiva (sobretudo durante a grande greve da General Motors, em 1945), esse autodidata ensinou em seguida Sociologia no Ramapo College, em Nova Jersey. Ao morrer, em 30 de julho de 2006, deixou cerca de vinte livros e centenas de artigos.
Ecologista radical e visionário, postulou a ideia segundo a qual a irracionalidade do capitalismo e sua fraqueza fatal não residiriam, como afirmava Marx, em sua propensão inelutável à autodestruição, mas em seu conflito com o ambiente natural, sua lógica de crescimento destrutivo ao mesmo tempo da natureza e da saúde humana.1 Em 1964, seu panfleto “Ecologia e pensamento revolucionário” fixou a ideia fundadora da ecologia social: “A obrigação imposta ao homem de dominar a natureza decorre diretamente da dominação do homem pelo homem”,2 esta última incluindo a dominação de gênero, de etnia, de raça, assim como de classe. Daí uma proposta que tem valor de programa: só uma ecologia social radical pode levar à superação do capitalismo.3 E, reciprocamente, uma revolução social aparece em Bookchin como a chave da mudança ecológica. Desde 1965, ele se preocupava com o risco do aquecimento global e com suas consequências sobre os equilíbrios naturais e sociais.
Contra uma ciência ideologicamente construída sobre uma “imagem rigorosamente reacionária”4 da natureza, que privilegiava a história da competição e da exploração dos recursos para a sobrevivência, Bookchin propôs uma compreensão racional do mundo natural, “criativo, cooperativo, fecundo”, como base de uma ética da liberdade. O espírito hierárquico que “define o outro em termos de superioridade ou de inferioridade”, prometia, “será substituído por uma abordagem ecológica da diversidade”.
Em 1971, a publicação da coletânea Para além da escassez impulsionou Bookchin às fileiras de proa da cena radical nova-iorquina e lhe conferiu audiência junto à Nova Esquerda norte-americana. Nela, ele afirmava que a abundância de riquezas criada pela tecnologia oferecia a possibilidade histórica de uma “realização das potencialidades sociais e culturais”5 da humanidade. Tecnologias libertadoras, descentralizadas e ecológicas poderiam permitir a transição da urbanização capitalista para a autêntica cidade democrática.
Bookchin insistia na necessidade de responder às questões ecológicas em vez de organizar a classe trabalhadora. Segundo ele, o sujeito revolucionário é o cidadão dominado, não o trabalhador explorado. Ele redefiniu o anarquismo como uma solução ética e social para os jovens desejosos não de serem liderados por uma vanguarda, segundo o esquema marxista-leninista, mas de se emanciparem dos “valores de hierarquia e dominação” – de que o marxismo não está isento. No entanto, suas posições sobre a tecnologia o distanciam dos movimentos da contracultura, decididamente tecnófobos.
Ele se opunha ao “ambientalismo”, esse “capitalismo verde”6 que persiste em ver o mundo natural como uma jazida de recursos exploráveis. Ele formulou também uma crítica da “ecologia profunda”, na qual via “sinais preocupantes” de autoritarismo.7 Um dos arautos dessa corrente, o biólogo norte-americano Paul Ehrlich, afirma que o que ameaça a biosfera é a superpopulação (The Population Bomb, 1968) e defende a “coerção” para limitar os nascimentos. Mas, para Bookchin, a noção de “ditadura ecológica” se mostra um oximoro.
A crise ecológica resulta, a seu ver, de relações sociais dominadas pela hierarquia e pelo capitalismo. Uma minoria consegue monopolizar e esgotar os recursos. Era por isso que importava a qualquer preço, segundo ele, evitar que o movimento ecologista se tornasse cão de guarda da elite empresarial, lutando contra os discursos moralizadores que visam as classes pobres. Os operários e os negros não estariam totalmente errados, segundo ele, ao denunciar o movimento ecologista como uma “cabala de brancos privilegiados e elitistas”, já que os verdadeiros responsáveis pelo desperdício são os “dirigentes dos grandes conglomerados”.
No Vermont de Bernie Sanders
Em 1971, Bookchin deixou Nova York para se instalar em Burlington, Vermont, que era o centro do Movimento das Comunas Free Vermont; o pensamento radical norte-americano se elaborava então na “Arcádia Vermontesa”. Ele fundou em 1976 o Instituto para a Ecologia Social, que iniciou os estudantes na agricultura biológica e nas energias renováveis, assim como na teoria social radical e na história revolucionária – um centro de ensino alternativo de onde emergiram vários movimentos, entre eles o feminismo de Ynestra King. Com os Burlington Greens, ele realizou várias campanhas de sensibilização ecológica e apresentou nas eleições municipais um programa de democratização das instituições municipais. O grupo forçou o prefeito de Burlington, um tal de Bernie Sanders…, a levar realmente em conta a voz das assembleias de bairro e a renunciar a várias megaobras, entre elas a construção de uma central elétrica e um projeto imobiliário nas margens do Lago Champlain.
Nesse fervilhar de experiências, Bookchin elaborou um programa político para a ecologia social: o “municipalismo libertário”,8 um projeto de “democracia comunal direta que se estenderia gradativamente sob formas confederativas”.9 Os militantes eram convidados a trabalhar por uma “reconstrução radical” das instituições locais pela base, a criar e a institucionalizar assembleias cidadãs, “formas de liberdade” muito fortes para suprimir o capitalismo e legítimas o bastante para impedir qualquer forma de tirania. Eles também tinham vocação para se lançar como candidatos às eleições municipais, para municipalizar a economia e para se confederar com outras comunidades, a fim de formar um poder alternativo para “combater a centralização do poder do Estado-nação”. A partir de 1977, Bookchin desempenhou papel preponderante na organização do movimento antinuclear Clamshell Alliance e colocou em pé com seu fundador, Howie Hawkins, uma rede da esquerda ecológica, a Left Green Network.
Nessa época, Bookchin se encontrou com os líderes dos Verdes Alemães (Die Grünen), que ganharam, em 1983, 27 cadeiras no Bundestag. Ele colocou-os em guarda contra a normalização dos partidos verdes e apoiou Jutta Ditfurth. Esta última seria descartada em 1989, em benefício de Joschka Fischer, que defendia uma aliança com o Partido Social-Democrata (SPD) – a “coalizão vermelho-verde” no poder de 1998 a 2005. A renúncia dos ecologistas ao próprio programa os conduziu ao fiasco,10 para grande decepção de Bookchin.
Os anarquistas, pensava, estavam inclinados a aceitar sem grande dificuldade o municipalismo libertário, federação de comunas autônomas na tradição de Pierre-Joseph Proudhon, Mikhail Bakunin, Pedro Kropotkin e Nestor Makhno. Em 1984, ele foi convidado para o encontro internacional “Ciao anarchici”, em Veneza. Janet Biehl, que foi sua companheira durante vinte anos e lhe consagrou uma biografia, conta que ele subiu à tribuna vestido com um uniforme de trabalho verde e uma cartela de giz de mecânico no bolso da camisa. “Ele lhes disse: ‘Os movimentos feministas, ecológicos e comunalistas devem criar comunidades humanas descentralizadas adaptadas a seus ecossistemas. Eles devem democratizar os vilarejos e as cidades, confederá-los e criar um poder dual contra o Estado’.”11
O encontro se revelou catastrófico. A crítica que lhe fizeram foi que os governos municipais eram apenas Estados-nações em miniatura; os conselhos de cidadãos, pequenos parlamentos. Os participantes rejeitaram o princípio do voto pela maioria, associado a uma tirania do maior número. Bookchin conclui disso que o anarquismo é fundamentalmente incompatível com o socialismo. Defendendo a soberania da pessoa, e não do povo, os anarquistas de sua época se deleitavam, a seu ver, com uma simples radicalidade “de estilo de vida”.12
Assim, ele decidiu se retirar da política e passou o resto da vida estudando os movimentos revolucionários, das revoltas de escravos no Mediterrâneo antigo à participação dos anarquistas na guerra da Espanha, em 1936, passando pela Comuna de Paris; a história das “formas de liberdade” que disputam a hegemonia com o Estado-nação.13 Se a revolução socialista não adveio pela tomada do poder nem das margens da sociedade, existe uma terceira via: realizá-la “numa arena onde o combate pode mobilizar o povo, ajudá-lo a se educar a si mesmo e a desenvolver uma política antiautoritária que inventaria uma nova esfera pública contra o Estado e o capitalismo”.14 Seu nome: “comunialismo”. Compreende-se que tal definição do combate político possa hoje mobilizar os militantes pela autonomia do Curdistão, divididos entre quatro países, expostos aos ataques do Estado turco e linha de frente na guerra contra a Organização do Estado Islâmico.
Seguindo os princípios do “confederalismo democrático” promovido por Öcalan, os cantões de Djezîrê, de Kobane e de Afrin criaram para si uma estrutura administrativa federal que agrupa os delegados dos conselhos populares (as “casas do povo”), com mandato outorgado pelas assembleias de comunas. A federação está encarregada das comissões para a defesa, saúde, educação, trabalhos e assuntos sociais. Cada conselho gera os recursos agrícolas e energéticos (o Rajava é rico em petróleo, mas não pode exportá-lo por causa do embargo) de maneira autônoma, cooperativa e ecológica.15 No Curdistão do Norte turco, o Congresso por uma Sociedade Democrática (DTK) federa desde 2010 os conselhos vindos das cidades, distritos e bairros da região. Quinhentos e um delegados têm assento no conselho. Entre eles, 60% são diretamente oriundos da sociedade e 40% são eleitos procedentes das instituições oficiais do governo. O DTK, que se considera um conselho dos conselhos, acolhe igualmente representantes das comunidades armênia, aramaica, yezidi, alevita e turcomena que fogem dos conflitos.
Bookchin renunciou à política, mas a tradução de suas obras permitiu a difusão de suas ideias. Em 1999, nas manifestações de Seattle contra a Organização Mundial do Comércio (OMC), militantes do movimento antiglobalização o convidaram a fazer uma palestra. Ele exibiu seu ceticismo diante dos grupos anarquistas violentos que proclamam a revolução ou círculos de afinidades que permanecem longe de construir “formas de liberdade”, instituições permanentes e estáveis, como as assembleias cidadãs. Nos anos 1970, as mobilizações efêmeras contra a Guerra do Vietnã o haviam persuadido de que as manifestações, por mais importantes que fossem, não podiam criar por si sós uma emancipação social; as “ofensivas de primavera” raramente iam além das “férias de verão”.16
Os movimentos de assembleias cidadãs, nos quais se expressa a demanda crescente de democracia direta, deram ao programa de Bookchin uma ressonância nova. Eles suscitaram reedições de seus livros e artigos, numa coletânea lançada nos Estados Unidos com um título eloquente: The Next Revolution (“A próxima revolução”). “Dos bairros da Comuna de Paris às assembleias gerais de Occupy Wall Street e em outros lugares”, pode-se ler na introdução, “esses conselhos democráticos auto-organizados percorrem a história como um fio vermelho”.17 A obra celebra como um precursor esse “especialista em revolução não violenta” e vê em seu projeto “uma política para o século XXI”.
Os limites das ocupações
Estaria ele encantado diante da ocupação democrática das praças? Incansável militante e crítico sem concessão, ele havia antecipado certo número de problemas com os quais esses movimentos são confrontados: as dificuldades inerentes à prática do consenso, ou a ideia de que os acampamentos podem tomar o lugar de poder popular. Para criar uma verdadeira força política, estes devem, segundo ele, ser institucionalizados em assembleias locais no seio das comunidades nos bairros e vilarejos.
Não é certo, aliás, que esses movimentos se juntem à radicalidade das propostas de Bookchin. Como, notadamente, garantir a segurança das comunas, em seu confronto inelutável com o Estado e o sistema capitalista? Bookchin pensava que seria preciso uma “milícia popular” para “defender pelas armas, se necessário, a economia municipalizada”, com base no modelo dos cidadãos-soldados atenienses (os hoplitas), da Makhnovchtchina, o exército revolucionário insurrecional ucraniano (1918-1921) de Makhno ou as milícias de operários e camponeses do governo anarquista da Catalunha em 1937.
Após a morte de Bookchin, durante os dez anos que foram necessários para escrever sua biografia, Janet Biehl – hoje a principal figura da ecologia social – assumiu um distanciamento em relação ao antiestatismo intransigente de seu antigo mentor. Sem o quadro de Estado-nação, como, pergunta ela, “corrigir as injustiças sociais e defender os direitos civis”, limitar o aquecimento climático ou mesmo assegurar a previdência social? Podemos estar seguros de que as comunas serão um lugar de racionalidade democrática, igualitária e ecológica, enquanto, observa ela, “certas localidades, como no sul dos Estados Unidos, são reacionárias” e outras se opõem à ação ambiental e “só se engajam nela se o governo federal forçá-las a isso”?18
Bookchin achava que esses problemas iriam ser resolvidos pela prática. Com frequência tido como utopista, muito radical ou muito crítico por seus contemporâneos, ele, no entanto, consagrou sua vida, como testemunha Biehl, a “encarnar o ideal da esquerda: democrática, racional, laica, não hierárquica, libertária e ecológica. Ele era internacionalista e antimilitarista. Ele era teoricamente coerente. Ele era humano e ético. Antes de tudo, ele era socialista”. O ser humano, acreditava ele, merecia a liberdade que ele prezava e uma vida decente. Ele era, portanto, muito inteligente para não viver numa sociedade racional.